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Guerra como punição, castigo
Amplamente
referenciado na Bíblia, o conceito do “castigo” não era em nada incongruente
com os ideais cristãos, e rapidamente este conceito foi absorvido pela Igreja
como expressão bélica. Para a Santa
Sé, a “imagem do
terrível Senhor justiceiro do Antigo Testamento, é também o Deus dos exércitos
que aqui se manifesta, cuja compaixão pelos seus é inseparável da punição
impiedosa dos que se lhes opõem”. Ou seja, o Deus Bíblico era também um Deus
que fazia uso da força para castigar seus inimigos. Contudo, e apesar dos
claros indícios apontados nas Sagradas Escrituras, evidenciando a participação
do Divino na prática de atos de violência, ainda assim, a idéia de um Deus
violento provocou certo desconforto fazendo com que vários filósofos medievais
se debruçassem sobre a tentativa de entender e justificar esse comportamento
violento exibido por Deus contra seus opositores.
A conclusão
encontrada e compartilhada por vários pensadores era a de que nenhuma ação de
Deus poderia ser fruto do ódio, portanto, a conduta divina só poderia ter sido
uma com base no amor e piedade, ainda que estas fossem violentas e direcionadas
aos seus inimigos. Estes sentimentos de benevolência infinita teriam sido
utilizados na aplicação do castigo. A punição era, portanto, um ato de amor, no
qual Deus oferecia aos pecadores a oportunidade de purificação. Ao serem castigados e derrotados, os pecadores reconheceriam seus
erros e poderiam mostrar contrição, o arrependimento como um passo central para
a purificação, de acordo com os preceitos cristãos.
O uso da violência como punição, ou castigo por um mal
recebido ficou sendo muito comum e largamente difundido na Europa medieval e
continuará sendo amplamente articulado no período colonial. O castigo que uma
guerra e eventual derrota bélica poderiam oferecer marcou uma etapa
imprescindível para o estabelecimento do reino de Deus na terra. Afinal, o
reino de Deus na terra só poderia se concretizar uma vez que toda a humanidade
fosse devidamente punida e/ou convertida. O castigo, assim, assinalava um dos
primeiros passos para o reino de Deus. Por isso, em 1385, vê-se João das Regras
nas cortes de Coimbra dissertar sobre a soberania do papa no exercício
da punição corpórea ou espiritual.
Trata-se de um
texto curiosíssimo da primeira parte da Crónica do Rei D. João I de
Fernão Lopes. Neste suposto testemunho, o jurista português discursa
sobre uma lista de razões pelas quais acreditava que a Rainha Beatriz não
poderia ser a herdeira legítima do reino português, após a morte de seu marido
o Rei D. Fernando. Dentre as razões fornecidas pelo jurista, registrou-se um
pequeno trecho sobre como a conceituação e o exercício do direito de punir e
castigar eram entendidos e compreendidos no período da Alta Idade Média
portuguesa. O objetivo de João das Regras era o de legitimar um possível
conflito no futuro, caso certos comportamentos não fossem evitados. Se a Rainha
Beatriz não desiste da idéia de clamar para si a soberania da coroa portuguesa,
então o Mestre de Avis se veria obrigado a fazer uso da força contra os aliados
da rainha. Neste cenário, a guerra seria entre cristãos, daí a necessidade de
João das Regras justificar a recorrência ao uso da força entre seus irmãos de
fé.
Na oratória,
João das Regras informa “que o Papa, afora pecado, todallas cousas
pode sobre a terra assi como Deos” e que “em tamto que nom soomente sobre os
Christaãos”. Ou seja, é como se o papado preenchesse
o lugar de Deus na terra, sendo o papa o mestre não somente dos cristãos mas
também “sobre todollos Imfiees”. Isto “porque todos som suas ovelhas”
tanto “os maaos e os boõs” de forma que ele “tem poderio e jurdiçom” sobre
todos. A soberanía papal não deve ser questionada, e João das Regras enfatiza “nem
devemos demandar rrazom”, afinal saber “que o Papa
que he Vigairo de Christo” é legitimação suficiente deste poder. E o
canonista conclui em tom alertador, “Pois se os Judeus e os Imfiees o Papa
pode castigar e punir dos Christãaos nom he de teer duvida”.
Como João das
Regras descreve, o poder de punir e castigar é divino, descende de Cristo à São
Pedro e de São Pedro é herdado pelos demais papas. Os guerreiros cristãos, como
militantes de Cristo e da Santa Igreja, podem e devem punir quaisquer
comportamentos que desviam de uma conduta verdadeiramente cristã.
Com o passar dos
séculos Deus continuou sendo visto pelo Padre António Vieira como Senhor dos
Exércitos. Tanto que Vieira vai teologizar sobre esta concepção em uma de suas
oratórias, na qual afirmou que a glória “maior ou a mais gloriosa, que há no
mundo, é a glória das armas e das batalhas, porque nelas se mede o poder
dos príncipes, e se ganham ou defendem os reinos e as cidades”. A
importância da glória militar é tamanha, que ela é “a matéria principal
dos ciúmes de Deus”, por isso Deus quer que esta glória em particular
“seja sempre
toda, e só sua: Gloriam meam alteri non dabo (Isaías, XLVIII, 11)”.
Esta é a razão ou é “Por esta causa, sendo Deus senhor de todas as cousas,
tomou por título particular o de Senhor dos Exércitos: Dominus Exercituum”.
O que isto significa é que é importante que os homens entendam que
Ele “é o que dá as vitórias, e o que as tira.” Prova disto é que “os
que nas batalhas parecem acasos, são acenos de seu poder, e ordens
secretas de sua providência”, como sucede nos casos nos quais Ele “permitia
muitas vezes, que grandes exércitos saíssem vencidos, e que poucos
homens, e mal disciplinado, fossem vencedores” ou até mesmo “desbaratava
poderosos exércitos por meio de uma mulher”. Feitos “impossíveis”
como estes aconteciam e acontecem única e exclusivamente porque é Ele é
quem, em última instância, coordena as batalhas.
O teólogo
explica em um outro sermão que com freqüência o Dominus Exercituum usa
as guerras e batalhas para aplicar justiça, e já que “o maior mal de
todos os males (não digo bem), o mal que é só mal, e sumo mal, é o
pacado; porque assim como Deus por essência é o sumo bem, assim o pecado, por
ser ofensa de Deus, é o sumo mal”, Deus faz uso da violencia das
guerras e do cativeiro forçado para castigar os pecadores, aplicando essa
justiça tanto aos infiéis quanto aos cristãos. Isto porquanto por mais
ilimitada que fosse a misericórdia de Deus, esta não era impedimento para a
aplicação da Sua justiça. Por isso o pregador cita Eclesiástico (Eclis., V, 7),
“Não vos fieis demasiadamente da minha misericórdia, diz Deus; porque
a misericórdia e a justiça em mim estão muito perto uma da outra”.
Aliás, a ira e o
castigo de Deus eram importantíssimos pois, como está escrito na Bíblia (Sl.,
VII, 7 e 4), e esclarecido por Vieira no “Sermão do Quarto Sábado da Quaresma”,
quando “os homens virem que o castigo não tarda, nem se dilata, logo
todos obedecerão prontamente, e servirão a Deus, e nenhum haverá que se atreva
a pecar”. Justo é então que “Mostre-se Vossa Majestade irado todas as
vezes que for ofendido, e assim como a cominação da pena anda junta com o
preceito, ande também a execução do castigo junta com o pecado”. Ou
seja, quanto mais castigos fossem aplicados aos pecadores, mais os
homens seriam desencorajados a pecar.
No entanto, com
base na Epístola de S. João, Vieira constrói a idéia de que o pecado referido
como ad mortem no texto epistolar não significasse “nenhum pecado particular, nem de sua natureza mais grave
que os outros, senão qualquer pecado mortal, ainda de muito inferior malícia
aos referidos” (do homicício, do adultério, da inveja, da blasfémia,
da infidelidade, da apostasia, da obstinação). Para Vieira, o pecado ad
mortem é aquele para o qual “não se deve orar, como incapaz de
perdão, irremissível e sem remédio”, é “o último, e o que acaba de encher a
medida que Deus tem taxado a cada homem; porque tanto que a medida se encheu
com qualquer pecado que seja, já não há lugar de perdão, nem de conversão: Et
super quatuor non convertam eum”.
Este pecado
limite que “enche a medida” é catastrófico, porquanto sinaliza um ponto
sem volta. Neste sentido, é importantíssimo não permitir que se peque, pois
ainda que a pessoa se confesse e receba absolvisão de pecados, o pecado
absolvido continua contando para a medida ad mortem. “Porque ainda
que estejam perdoados quanto à culpa, e satisfeitos quanto à pena, para
encherem o número, e perfazerem a conta basta haverem sido”. De modo que, “é
justo castigo de Deus que não aproveite a confissão aos que pecam fiados na
confissão para remédio da fraqueza, e não para estímulo da malícia. É medicina
para sarar, e não carta de seguro para adoecer”.
Do pecado
particular do homem que confia demais na confissão, Vieira passa ao coletivo
dos povos, indutivamente, uma vez que “Deus e sua justiça sempre é o
mesmo e a mesma.” Tanto que quando “[o]s moradores de Jerusalém pecavam
dissoluta e desaforadamente como se para eles não houvera lei nem castigo: e
toda a sua confiança se fundava, em que Deus tinha o seu Templo na mesma
Jerusalém”, o castigo lhes sobreveio na forma de cativeiro, como
profetizado por Jeremias (Jerem., VII, 4), considerando que o menor dos pecados
cometido por uma única pessoa pode pôr em risco não só sua vida, mas também
pode ser aplicado à colectividade. Quando cometido o pecado ad mortem e
preenchida a “medida” que Deus determinou ao grupo, então não
haveria perdão, não adiantaria a confissão, contrição ou conversão que
reparasse o dano. Neste sentido, a prevenção de todo e qualquer pecado, ainda
que por meio de castigos violentos, é justificado.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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