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Escravidão negra.
As mesmas
considerações que definiam para António Vieira a origem dos povos ameríndios
não se aplicavam aos povos africanos, não permitindo seu enquadramento dentro
deste mesmo escopo. Isto porque os africanos não faziam parte das tribos
perdidas de Israel, não faziam parte do Novo Mundo e jamais neles poderia se
fixar as esperanças da Nova Igreja. Com relação a escravidão negra, coube à
Vieira a ambígua e difícil tarefa de incorporar e justificar ao seu projeto
Quinto Imperialista não só a realidade da violência das guerras de captura de
escravos, como também a violência do próprio cativeiro. Neste sentido, o
“Sermão Vigésimo Sétimo” da série Rosa Mística, revela a apropriação e
aplicação de diversos conceitos medievais que são expressões da longa
duração.
No sentido desta
longa Idade Média é de importante nota que, do falecimento de D.
Sebastião, cercado de misticismo, até a coroação do Restaurador D. João IV, a
nação portuguesa viveu momentos de incerteza e anos de subjugo, sobretudo
naqueles anos em que perdeu sua independência a D. Felipe II da Espanha. Os
anos de humilhação ao brio lusitano fomentariam um lugar propício ao culto
sebastiânico e mais tarde joanino. Compreender a União das Coroas Ibéricas
dentro de uma cosmologia cristã, que, obrigatoriamente, vê um propósito divino
em todos os acontecimentos terrestres foi tarefa difícil, complexa, mas
extremamente necessária por parte de teólogos portugueses.
O sentido
conferido à monarquia dual por parte do Padre António Vieira fez parte de uma
complexa rede de conexões em que tudo está ligado, mas, que não seqüência-se
como causa e efeito, isto porque ele teve como base uma visão historiográfica
que, e em muito, assemelhava-se à medieval. Os eventos históricos interpretados
pelo jesuíta não eram vistos como uma linha de sucessão onde o que acontecia
num determinado instante afetava diretamente o que aconteceria a seguir, mas
pelo contrário, na falta de um esquema claro, os eventos eram interpretados por meio de um ciclo causal onde o pecado
era seguido do castigo.
Ao avergonhar-se
da dependência lusa ao reino Castelhano, Vieira imediatamente atribuiu sentido
ao período da União das Coroas Ibéricas, através de uma lógica causal. “E
porque os nossos cativeiros começaram onde começa a África, ali permitiu
Deus a perda de El-rei Dom Sebastião, a quem se seguiu o cativeiro de sessenta
anos no mesmo reino”, assim o justifica Padre António Vieira. Claramente,
para o jesuíta, os cativeiros lusitanos na África teriam uma influência
direta sobre o castigo de sofrer a humilhante União.
O orador prega
aos escravos da Confraria do Rosário que, em conjunto com seus senhores,
assistiam na Bahia do pós União à prédica jesuítica. Esta extensa
oratória, disse Vieira aos escravos, tinha como objetivo principal, “vossa
consolação” e a promessa “a todos uma carta de alforria, com que
não só gozeis a liberdade eterna na segunda transmigração da outra vida, mas
também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira”.
Ao consolar os
africanos, ofertando-os uma “carta de alforria”, Vieira nos lega um profundo
conhecimento sobre a assimilação moderna do fenômeno conhecido simplesmente por
escravidão. As emoções, sentimentos e ressentimentos evocados pelo forte
peso da palavra sugerem um terror intrínseco a esta manifestação histórica. A “diabolicidade”,
palavra usada pelo próprio hermeneuta, própria da escravidão, acarretaria no
castigo, ou, na penalidade de perder seu rei e sua independência, imposta ao
Reino Português por determinação do Criador. Isto é, na visão vieiriana, o
horror da escravidão arrancou de Portugal seu prestígio e sua dignidade. E
ainda que Portugal tenha recebido as glórias e triunfos das inúmeras e bem
sucedidas conquistas, permitindo Deus desta forma que os negros fossem
escravizados, as derradeira conseqüências do mau uso da escravidão resultou na
perda da sua independência por 60 anos.
E ainda que velada sob as inúmeras e bem sucedidas
conquistas de territórios na África, Ásia e América, cedidas às armadas
portuguesas, arquitetadas, e, de vontade do próprio Deus, as conseqüências
derradeiras da escravidãoviolência viriam refletir de forma devastadora sobre o
Império Portuguese.
Dito isto, o
fato é que a escravidão, no momento de proferimento desta sermonária, já
tinha tomado proporções inimagináveis. A escravidão não poderia mais ser
contida ou revertida a ponto de sua anulação, além do que Vieira, apesar de
satanizar a escravidão, não demonstra indícios de que esta é a sua
vontade. Muito pelo contrário, a escravidão tinha sido
institucionalizada pela própria Igreja à qual Vieira pertencia, para
mais, a escravidão tornou-se parte fundamental da economia lusitana. Talvez por
isso, coube a Vieira somente a assimilação da escravidão dentro de um
projeto de bem-aventurança e paz eterna.
Torna-se
possível averiguar, através de uma análise sistemática, vestígios daquilo que
representaria um projeto do Quinto Império, e portanto, esforços que visavam a
legitimação e enquadramento da escravidão dentro de um projeto de
conversão absoluta e escatológica. Isto é, desfrutando hoje de um olhar
retrospectivo, observa-se, na sermonária em análise, questões pontuais que
remetem à confirmação não só da tese do Quinto Império vieirense, mas também de
suas heranças, ou melhor, de suas estruturas erguidas sobre a cosmologia
medieval. Na busca incessante por esse enquadramento, Vieira conferiu
posição de destaque à escravidão, dotando-a de um propósito divino e
imaculado. A escravidão, que até então fora usada de forma indevida pelos
portugueses, ainda assim continha um propósito nobre, digno e que deveria
suscitar respeito.
Através do
arrependimento sincero dos portugueses, seria possível quebrar esse ciclo
causal de castigo e pecado e persuadir Deus de mudar Sua “idéia”. Bastaria que
os portugueses usassem devotamente a escravidão visando, não os lucros
da mercantilidade dos corpos, mas procurando abater o número de descrentes no
mundo. Aqui está a grande diferença dos padrões de destino e fortuna que
vigoravam na Antiguidade. A contrição verdadeira conduziria, possivelmente, à
persuasão de Deus, para que Ele interrompesse esse castigo e mudasse o destino
trágico ao qual Portugal, aparentemente, tendia. Nesta lógica, o destino não
fazia parte de um determinismo absoluto e imutável, através de uma astúcia
devota e piedosa, pessoas poderiam mudar seu destino fazendo uso, por exemplo,
da penitência, contrição e da realização de boas obras. Portando-se como bons
cristãos, os portugueses poderiam reaver seu destino glorioso que, para Vieira,
incluía a missão inegável de liderar o mundo nesta nova era do Quinto Império.
Condenando as
avarezas dos senhores de escravos, Vieira dispara, “antepondo a sua salvação
aos ídolos de oiros, que são os vossos malditos e sempre mal logrados
interesses? Por isso os vossos escravos não têm doutrina; por isso vivem morrem
sem sacramentos”?, tanto mais que detalhou qual deveria ser o papel
desempenhado por um senhor cristão e qual aquele que deveria ser
cumprido por um escravo verdadeiramente convertido. Em sua prédica, o jesuíta
descreve uma escravidão que, exercida corretamente, se enquadraria
dentro dos preceitos do Cristianismo, e, conseqüentemente, serviria como
fundação para a realização do profético Quinto Império.
A escravidão
em si não seria contraditória e nem estaria em oposição ao cumprimento do Quinto
Império. O que causou a perda da independência do reino português, o que
infringiu a integridade lusitana, foi a má utilização da escravidão, era
o animus deslocado de seu devido propósito, pois, a “diabolicidade”
da escravidão estava em seu profano proveito. “Oh trato desumano, em que a
mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se
tiram das almas alheias, e os riscos são das próprias!”, lamentou
Vieira.
Ora, se o
indevido cativo de gentes poderia justificar e resultar na perda do “Rei
Encoberto”, sua retificação poderia, pelo menos simbolicamente, restituir o
próprio. De forma que, imprescindivelmente, tornava-se necessário decodificar a
correta atuação da escravidão dentro dos projetos e desígnios divinos.
Seguindo a tradição retórica da época, Vieira faz uso de exemplos bíblicos,
para instruir sobre o tipo de conduta na qual deveriam proceder os agentes de
um sistema escravocrata justo, correto e cristão: “Oiçam primeiro os brancos
um exemplo, em que vejam a sua deformidade, e logo mostraremos outros aos
pretos, em que vejam a sua”.
Dirigindo-se aos
senhores de escravos, o exegeta emprega o exemplo do “mais mau rei que houve
entre todos os de Israel”, o rei acabe, que venda sua alma ao demônio, e
questiona-os, “vede se é bom exemplo este para os régulos do nosso
Recôncavo”. Ao fazer isto, Vieira declarava aos senhores de escravos
que eles também ofertavam suas almas ao diabo por não se dedicarem com mais
empenho à conversão e cristianização dos negros cativos. Acusando-os de má
conduta Vieira diz: “É possível, que por acrescentar mais um braça de terra
ao canavial, e meia tarefa mais ao engenho em cada semana, haveis de vender a
vossa alma ao diabo?”, e mais, “não quereis que vão à porta de igreja. Consentis
que os escravos e escravas andem em pecado,
e não lhe permitis que se casem, porque dizeis que casados servem menos bem”.
Neste sentido,
Vieira critica a postura hipócrita dos senhores de escravos, que se dizem
preocupados em agir cristãmente, mas que, por ganância, não permitem que seus
escravos sejam convertidos a cristãos.
“Prevaleça o
meu serviço ao serviço de Deus, e, contanto que os meus escravos me
sirvam melhor, vivam e morram em serviço do diabo!”.
Portanto, em
contramão, os senhores que buscassem realmente a cristianização de seus
escravos, permitindo-lhes acesso aos cultos eclesiásticos, à benção
matrimonial, à catequização estariam contribuindo de forma decisiva para a
evangelização universal e a realização do projeto do Quinto Império. Esta
deveria ser a conduta dos senhores de engenhos que se prezavam em chamar de
cristãos.
Antes de
citar um exempla da
História Sagrada, Vieira
disse,
“Passemos ao
exemplo mais próprio dos escravos”, trata-se do trecho no qual o rei
Antíoco determina aos seus escravos que “se não guardasse a Lei de
Deus, senão somente as suas”. No relato bíblico os escravos “miserávies,
fracos e vis”, procurando “ganhar a graça dos senhores,
obedeceram, e fazendo-se gentios, venderam as suas almas”, já “os
fortes constantes e gloriosos por não venderem as almas, perderam
animosamente as vidas”. Neste trecho do sermão o hermeneuta
oferece dois exemplos de comportamento de cativos, um bom, e outro mau. Ou
seja, existe uma linha de conduta dentro da qual os escravos deveriam se
entrosar. “Ditosos de vós”, disse-os Vieira,
“aqueles que de
tal modo se compuseram com a sorte de seu meio cativeiro que se sirvam da sua
própria servidão, e se saibam aproveitar do que nela, e com ela, podem merecer”.
Logo, aqueles
que soubessem seguir o exemplo dos bons escravos seriam recompensados, pois, “neste
mesmo estado da primeira transmigração, que é a do cativeiro temporal,
vos estão Deus e sua Santíssima Mãe dispondo e preparando para a segunda
transmigração, que é a da liberdade eterna”. Tanto que desafia-os Vieria,
“Julgai agora vós,” questiona-os, “que achais na mesma fortuna de
escravos, quais destes obraram melhor: se os que venderam a alma para agradar aos
senhores, ou os que quiseram antes perder a vida, que cativar a alma”?
Para Vieira não
havia dúvida de que os senhores de engenhos não tinham poder absoluto sobre
seus escravos. Vieira e grande parte de seus contemporâneos acreditavam que o
homem era composto de duas partes: o corpo e a alma, e que somente o corpo era
sujeito a escravidão. Portanto, “se o senhor mandasse ao escravo, ou
quisesse da escrava, coisa que ofenda gravemente a alma e a consciência;
assim como ele não pode querer nem mandar, assim o escravo é obrigado a não
obedecer”. De maneira que, “se por isso vos ameaçarem e castigarem,
sofrei animosa e cristãmente, ainda que seja por toda vida, que esses castigos
são martírios.”
Neste momento
peculiar da história lusitana, nesta encruzilhada geográfica que era o
Recôncavo Baiano, via-se “a transmigração imensa de gentes e nações
etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América”. Aqui,
envolto deste contexto dinâmico onde diariamente eram “desovados”
“quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos”, Vieira formula,
com base nos textos sacros, o comportamento idílico do escravo cristão.
Referindo-se ao cativeiro temporal, o jesuíta busca instruir seu rebanho, “E
para que saibas como vos deveis portar nele, e não sejais vós mesmos os
que acrescenteis, vos quero, primeiro que tudo, explicar qual ele é, e em que
consiste”.
Somente quando
todos os agentes da escravidão atuassem conforme as leis da boa conduta, a escravidão
viria a realizar todo seu potencial de propósito divino, que, mais tarde, no
amadurecimento do pensamento vieiriano, viria a se consolidar no projeto do
Quinto Império. Conforme a decodificação hermenêutica apresentada neste sermão,
diabolicidade não estava no fenômeno da escravidão em si, antes, esta
era resultado das más intenções e vis atuações exercidas por seus agentes
históricos.
O propósito
nobilíssimo da escravidão africana fica evidenciado quando Vieira, devotamente
orgulhoso, dirigindo-se aos negros da Confraria da Nossa Senhora do Rosário,
diz, “Mas quando hoje os vejo tão devotos e festivais diante dos
altares da Senhora do Rosário, todos irmãos entre si, como filhos da mesma
Senhora, já me persuado sem dúvida, que o cativeiro da primeira transmigração é
ordenado por sua misericórdia para a liberdade da segunda”. Neste
víés, a escravidão era, para Vieira, um instrumento de catequização e
conversão, condições essenciais para a realização do Quinto Império.
Tanto na escravidão africana como ameríndia, a guerra
ficava justificada como uma primeira etapa para a conversão universal. O uso da força era permitida na concepção vieirense porque dela
resultava o domínio dos portugueses sobre estas gentes que, por conseguinte,
permitiria os missionários pacificação suficiente para dar início ao processo
de evangelização e de doutrinação católica. No entanto, como se pode observar,
existia uma diferença notável entre ambas
“escravidões”.
No caso africano, tratava-se de um castigo permitido por Deus por estes O terem
resistido. O castigo africano era similar ao do povo judaico, que fora
castigado por seus desvios morais durante os setenta anos nos quais ficaram
escravizados pelos egípcios, Já no caso dos ameríndios, esta escravidão não
poderia se justificar com o pressuposto do castigo, isto porque como parte das
tribos perdidas de Israel, os ameríndios precisavam primeiramente se inteirar
dos eventos relacionados e resultantes da vinda do Messias.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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