27/03/2016

Maria Rosa Mística - Sermão VIII, do Padre Antônio Vieira

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Escravidão negra.

As mesmas considerações que definiam para António Vieira a origem dos povos ameríndios não se aplicavam aos povos africanos, não permitindo seu enquadramento dentro deste mesmo escopo. Isto porque os africanos não faziam parte das tribos perdidas de Israel, não faziam parte do Novo Mundo e jamais neles poderia se fixar as esperanças da Nova Igreja. Com relação a escravidão negra, coube à Vieira a ambígua e difícil tarefa de incorporar e justificar ao seu projeto Quinto Imperialista não só a realidade da violência das guerras de captura de escravos, como também a violência do próprio cativeiro. Neste sentido, o “Sermão Vigésimo Sétimo” da série Rosa Mística, revela a apropriação e aplicação de diversos conceitos medievais que são expressões da longa duração.

No sentido desta longa Idade Média é de importante nota que, do falecimento de D. Sebastião, cercado de misticismo, até a coroação do Restaurador D. João IV, a nação portuguesa viveu momentos de incerteza e anos de subjugo, sobretudo naqueles anos em que perdeu sua independência a D. Felipe II da Espanha. Os anos de humilhação ao brio lusitano fomentariam um lugar propício ao culto sebastiânico e mais tarde joanino. Compreender a União das Coroas Ibéricas dentro de uma cosmologia cristã, que, obrigatoriamente, vê um propósito divino em todos os acontecimentos terrestres foi tarefa difícil, complexa, mas extremamente necessária por parte de teólogos portugueses.

O sentido conferido à monarquia dual por parte do Padre António Vieira fez parte de uma complexa rede de conexões em que tudo está ligado, mas, que não seqüência-se como causa e efeito, isto porque ele teve como base uma visão historiográfica que, e em muito, assemelhava-se à medieval. Os eventos históricos interpretados pelo jesuíta não eram vistos como uma linha de sucessão onde o que acontecia num determinado instante afetava diretamente o que aconteceria a seguir, mas pelo contrário, na falta de um esquema claro, os eventos eram interpretados por meio de um ciclo causal onde o pecado era seguido do castigo.

Ao avergonhar-se da dependência lusa ao reino Castelhano, Vieira imediatamente atribuiu sentido ao período da União das Coroas Ibéricas, através de uma lógica causal. “E porque os nossos cativeiros começaram onde começa a África, ali permitiu Deus a perda de El-rei Dom Sebastião, a quem se seguiu o cativeiro de sessenta anos no mesmo reino”, assim o justifica Padre António Vieira. Claramente, para o jesuíta, os cativeiros lusitanos na África teriam uma influência direta sobre o castigo de sofrer a humilhante União.

O orador prega aos escravos da Confraria do Rosário que, em conjunto com seus senhores, assistiam na Bahia do pós União à prédica jesuítica. Esta extensa oratória, disse Vieira aos escravos, tinha como objetivo principal, “vossa consolação” e a promessa “a todos uma carta de alforria, com que não só gozeis a liberdade eterna na segunda transmigração da outra vida, mas também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira”.

Ao consolar os africanos, ofertando-os uma “carta de alforria”, Vieira nos lega um profundo conhecimento sobre a assimilação moderna do fenômeno conhecido simplesmente por escravidão. As emoções, sentimentos e ressentimentos evocados pelo forte peso da palavra sugerem um terror intrínseco a esta manifestação histórica. A diabolicidade”, palavra usada pelo próprio hermeneuta, própria da escravidão, acarretaria no castigo, ou, na penalidade de perder seu rei e sua independência, imposta ao Reino Português por determinação do Criador. Isto é, na visão vieiriana, o horror da escravidão arrancou de Portugal seu prestígio e sua dignidade. E ainda que Portugal tenha recebido as glórias e triunfos das inúmeras e bem sucedidas conquistas, permitindo Deus desta forma que os negros fossem escravizados, as derradeira conseqüências do mau uso da escravidão resultou na perda da sua independência por 60 anos.

E ainda que velada sob as inúmeras e bem sucedidas conquistas de territórios na África, Ásia e América, cedidas às armadas portuguesas, arquitetadas, e, de vontade do próprio Deus, as conseqüências derradeiras da escravidãoviolência viriam refletir de forma devastadora sobre o Império Portuguese.

Dito isto, o fato é que a escravidão, no momento de proferimento desta sermonária, já tinha tomado proporções inimagináveis. A escravidão não poderia mais ser contida ou revertida a ponto de sua anulação, além do que Vieira, apesar de satanizar a escravidão, não demonstra indícios de que esta é a sua vontade. Muito pelo contrário, a escravidão tinha sido institucionalizada pela própria Igreja à qual Vieira pertencia, para mais, a escravidão tornou-se parte fundamental da economia lusitana. Talvez por isso, coube a Vieira somente a assimilação da escravidão dentro de um projeto de bem-aventurança e paz eterna.

Torna-se possível averiguar, através de uma análise sistemática, vestígios daquilo que representaria um projeto do Quinto Império, e portanto, esforços que visavam a legitimação e enquadramento da escravidão dentro de um projeto de conversão absoluta e escatológica. Isto é, desfrutando hoje de um olhar retrospectivo, observa-se, na sermonária em análise, questões pontuais que remetem à confirmação não só da tese do Quinto Império vieirense, mas também de suas heranças, ou melhor, de suas estruturas erguidas sobre a cosmologia medieval. Na busca incessante por esse enquadramento, Vieira conferiu posição de destaque à escravidão, dotando-a de um propósito divino e imaculado. A escravidão, que até então fora usada de forma indevida pelos portugueses, ainda assim continha um propósito nobre, digno e que deveria suscitar respeito.

Através do arrependimento sincero dos portugueses, seria possível quebrar esse ciclo causal de castigo e pecado e persuadir Deus de mudar Sua “idéia”. Bastaria que os portugueses usassem devotamente a escravidão visando, não os lucros da mercantilidade dos corpos, mas procurando abater o número de descrentes no mundo. Aqui está a grande diferença dos padrões de destino e fortuna que vigoravam na Antiguidade. A contrição verdadeira conduziria, possivelmente, à persuasão de Deus, para que Ele interrompesse esse castigo e mudasse o destino trágico ao qual Portugal, aparentemente, tendia. Nesta lógica, o destino não fazia parte de um determinismo absoluto e imutável, através de uma astúcia devota e piedosa, pessoas poderiam mudar seu destino fazendo uso, por exemplo, da penitência, contrição e da realização de boas obras. Portando-se como bons cristãos, os portugueses poderiam reaver seu destino glorioso que, para Vieira, incluía a missão inegável de liderar o mundo nesta nova era do Quinto Império.

Condenando as avarezas dos senhores de escravos, Vieira dispara, “antepondo a sua salvação aos ídolos de oiros, que são os vossos malditos e sempre mal logrados interesses? Por isso os vossos escravos não têm doutrina; por isso vivem morrem sem sacramentos”?, tanto mais que detalhou qual deveria ser o papel desempenhado por um senhor cristão e qual aquele que deveria ser cumprido por um escravo verdadeiramente convertido. Em sua prédica, o jesuíta descreve uma escravidão que, exercida corretamente, se enquadraria dentro dos preceitos do Cristianismo, e, conseqüentemente, serviria como fundação para a realização do profético Quinto Império.

A escravidão em si não seria contraditória e nem estaria em oposição ao cumprimento do Quinto Império. O que causou a perda da independência do reino português, o que infringiu a integridade lusitana, foi a má utilização da escravidão, era o animus deslocado de seu devido propósito, pois, a “diabolicidade” da escravidão estava em seu profano proveito. “Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos são das próprias!”, lamentou Vieira.

Ora, se o indevido cativo de gentes poderia justificar e resultar na perda do “Rei Encoberto”, sua retificação poderia, pelo menos simbolicamente, restituir o próprio. De forma que, imprescindivelmente, tornava-se necessário decodificar a correta atuação da escravidão dentro dos projetos e desígnios divinos. Seguindo a tradição retórica da época, Vieira faz uso de exemplos bíblicos, para instruir sobre o tipo de conduta na qual deveriam proceder os agentes de um sistema escravocrata justo, correto e cristão: “Oiçam primeiro os brancos um exemplo, em que vejam a sua deformidade, e logo mostraremos outros aos pretos, em que vejam a sua”.

Dirigindo-se aos senhores de escravos, o exegeta emprega o exemplo do “mais mau rei que houve entre todos os de Israel”, o rei acabe, que venda sua alma ao demônio, e questiona-os, “vede se é bom exemplo este para os régulos do nosso Recôncavo”. Ao fazer isto, Vieira declarava aos senhores de escravos que eles também ofertavam suas almas ao diabo por não se dedicarem com mais empenho à conversão e cristianização dos negros cativos. Acusando-os de má conduta Vieira diz: “É possível, que por acrescentar mais um braça de terra ao canavial, e meia tarefa mais ao engenho em cada semana, haveis de vender a vossa alma ao diabo?”, e mais, “não quereis que vão à porta de igreja. Consentis que os escravos e escravas andem em  pecado, e não lhe permitis que se casem, porque dizeis que casados servem menos bem”.

Neste sentido, Vieira critica a postura hipócrita dos senhores de escravos, que se dizem preocupados em agir cristãmente, mas que, por ganância, não permitem que seus escravos sejam convertidos a cristãos.

Prevaleça o meu serviço ao serviço de Deus, e, contanto que os meus escravos me sirvam melhor, vivam e morram em serviço do diabo!”.

Portanto, em contramão, os senhores que buscassem realmente a cristianização de seus escravos, permitindo-lhes acesso aos cultos eclesiásticos, à benção matrimonial, à catequização estariam contribuindo de forma decisiva para a evangelização universal e a realização do projeto do Quinto Império. Esta deveria ser a conduta dos senhores de engenhos que se prezavam em chamar de cristãos.

Antes  de  citar  um exempla  da  História  Sagrada,  Vieira  disse,

Passemos ao exemplo mais próprio dos escravos”, trata-se do trecho no qual o rei Antíoco determina aos seus escravos que “se não guardasse a Lei de Deus, senão somente as suas”. No relato bíblico os escravos “miserávies, fracos e vis”, procurando “ganhar a graça dos senhores, obedeceram, e fazendo-se gentios, venderam as suas almas”, já “os fortes constantes e gloriosos por não venderem as almas, perderam animosamente as vidas”. Neste trecho do sermão o hermeneuta oferece dois exemplos de comportamento de cativos, um bom, e outro mau. Ou seja, existe uma linha de conduta dentro da qual os escravos deveriam se entrosar. “Ditosos de vós”, disse-os Vieira,

“aqueles que de tal modo se compuseram com a sorte de seu meio cativeiro que se sirvam da sua própria servidão, e se saibam aproveitar do que nela, e com ela, podem merecer”.

Logo, aqueles que soubessem seguir o exemplo dos bons escravos seriam recompensados, pois, “neste mesmo estado da primeira transmigração, que é a do cativeiro temporal, vos estão Deus e sua Santíssima Mãe dispondo e preparando para a segunda transmigração, que é a da liberdade eterna”. Tanto que desafia-os Vieria, “Julgai agora vós,” questiona-os, “que achais na mesma fortuna de escravos, quais destes obraram melhor: se os que venderam a alma para agradar aos senhores, ou os que quiseram antes perder a vida, que cativar a alma”?

Para Vieira não havia dúvida de que os senhores de engenhos não tinham poder absoluto sobre seus escravos. Vieira e grande parte de seus contemporâneos acreditavam que o homem era composto de duas partes: o corpo e a alma, e que somente o corpo era sujeito a escravidão. Portanto, “se o senhor mandasse ao escravo, ou quisesse da escrava, coisa que ofenda gravemente a alma e a consciência; assim como ele não pode querer nem mandar, assim o escravo é obrigado a não obedecer”. De maneira que, “se por isso vos ameaçarem e castigarem, sofrei animosa e cristãmente, ainda que seja por toda vida, que esses castigos são martírios.”

Neste momento peculiar da história lusitana, nesta encruzilhada geográfica que era o Recôncavo Baiano, via-se “a transmigração imensa de gentes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América”. Aqui, envolto deste contexto dinâmico onde diariamente eram “desovados” “quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos”, Vieira formula, com base nos textos sacros, o comportamento idílico do escravo cristão. Referindo-se ao cativeiro temporal, o jesuíta busca instruir seu rebanho, “E para que saibas como vos deveis portar nele, e não sejais vós mesmos os que acrescenteis, vos quero, primeiro que tudo, explicar qual ele é, e em que consiste”.

Somente quando todos os agentes da escravidão atuassem conforme as leis da boa conduta, a escravidão viria a realizar todo seu potencial de propósito divino, que, mais tarde, no amadurecimento do pensamento vieiriano, viria a se consolidar no projeto do Quinto Império. Conforme a decodificação hermenêutica apresentada neste sermão, diabolicidade não estava no fenômeno da escravidão em si, antes, esta era resultado das más intenções e vis atuações exercidas por seus agentes históricos.

O propósito nobilíssimo da escravidão africana fica evidenciado quando Vieira, devotamente orgulhoso, dirigindo-se aos negros da Confraria da Nossa Senhora do Rosário, diz, “Mas quando hoje os vejo tão devotos e festivais diante dos altares da Senhora do Rosário, todos irmãos entre si, como filhos da mesma Senhora, já me persuado sem dúvida, que o cativeiro da primeira transmigração é ordenado por sua misericórdia para a liberdade da segunda”. Neste víés, a escravidão era, para Vieira, um instrumento de catequização e conversão, condições essenciais para a realização do Quinto Império.

Tanto na escravidão africana como ameríndia, a guerra ficava justificada como uma primeira etapa para a conversão universal. O uso da força era permitida na concepção vieirense porque dela resultava o domínio dos portugueses sobre estas gentes que, por conseguinte, permitiria os missionários pacificação suficiente para dar início ao processo de evangelização e de doutrinação católica. No entanto, como se pode observar, existia uma diferença notável entre ambas


“escravidões”. No caso africano, tratava-se de um castigo permitido por Deus por estes O terem resistido. O castigo africano era similar ao do povo judaico, que fora castigado por seus desvios morais durante os setenta anos nos quais ficaram escravizados pelos egípcios, Já no caso dos ameríndios, esta escravidão não poderia se justificar com o pressuposto do castigo, isto porque como parte das tribos perdidas de Israel, os ameríndios precisavam primeiramente se inteirar dos eventos relacionados e resultantes da vinda do Messias.


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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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