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O jesuíta, judeus e cristãos-
novos : profecias e a maior glória de Portugal
O pensamento de Vieira acerca dos judeus e cristãos-novos não deve ser
compreendido apenas como expressão de um pragmatismo cujo objetivo era o
soerguimento econômico do reino português. Deve ser inserido no imaginário
resultante do mito de Ourique, onde às vésperas de uma batalha contra um
numeroso exército de mouros, Cristo aparecera a Afonso Henriques, fundador do
reino e prometera auxiliá-lo, assim como o tomou sobre a sua proteção,
incumbindo-o de levar a fé católica a todos os recantos do mundo.
Tal idéia de vocação divina de Portugal ganhou força
principalmente a partir da passagem do século XV ao XVI, quando o reino avançou
nas navegações do oceano, à Índia. Como explicar que um reino tão pequeno em
extensão e número de pessoas pudesse realizar tão grande feito? Como explicar o
fato de que pudesse influenciar e dominar povos tão distantes? Somente a idéia
providencialista da eleição divina explicaria tal feito. A transformação de
Portugal no “novo povo eleito”, instrumento de Cristo para a conversão do
mundo, que estaria destinado a um grande futuro, seria um elemento permanente
no imaginário do reino ao longo dos séculos. Somente seria posta em xeque a
partir do século XVIII, através de intelectuais, como Alexandre Herculano, no século
XIX, que contestavam este elemento do imaginário lusitano.
A aliança com Deus se expressava também através no
terreno das decisões políticas. O estatuto que saiu da câmara municipal de
Lisboa, em agosto de 1385, reflete bem esta afirmação. Na iminência de um
confronto com as tropas castelhanas por conta das querelas sucessórias que
resultaram na Revolução de Avis e a aclamação de D. João I pelas cortes, estas
afirmavam por escrito o compromisso de inquirir sobre possíveis abusos contra
fé católica, abusos estes que provocavam a ira divina e que se refletia na
invasão dos exércitos inimigos. Segundo este documento, quem se desse à
feitiçaria, adivinhasse o futuro, fizesse benzeduras (remédios compostos por
ervas e rezas não aceitas pela ortodoxia religiosa) era
Outro elemento importante para a compreensão do pensamento vieirino é a
obra de Gonçalo Anes Bandarra, sapateiro da região de Trancoso, Portugal, que
vivera no século XVI. Tal personagem causou grande alvoroço nas populações
cristãs novas por conta de suas Trovas. Tal alvoroço é explicado por
Lipiner, grande estudioso no assunto, como fruto do trauma da conversão forçada
dos judeus ao catolicismo, primeiramente, e pelas tribulações ocasionadas pelas
muitas perseguições que sofreram.68
De acordo com a sua análise, tais tribulações criavam uma predisposição de
ânimo nestes indivíduos para seguir um messias, que os libertasse desta
situação.
Tal contexto era favorável à elevação de indivíduos à
condição de messias ou de profetas, indivíduos estes que, de alguma forma,
representassem um alento ou esperança num melhor futuro. Desta forma, podemos
observar, a título ilustrativo, a figura de David Rubeni, que aparecera em
Lisboa afirmando ser um enviado de um rei de uma nação judaica da Arábia que
descendia da tribo de Ruben, e solicitava do rei D. João III e do papa armas
para um exército 300.000 homens, com o objetivo de expulsar os turcos da
Palestina. Como bem nota Azevedo, este fato produziu grande alvoroço e
entusiasmo nas populações de cristãos novos, que viam a esperança messiânica
bem próxima. Azevedo faz notar que muitos acreditavam ser o misterioso
personagem o próprio messias. Azevedo mostra também o caso de Diogo Pires, que
circuncidou a si próprio com o objetivo de cair nas graças do pretenso enviado.
Fugiu de Portugal, indo parar na Turquia, onde adotou o nome de Salomão Malco,
onde ganha fama de profeta e anunciador do messias. Dizem os relatos a este
respeito que esteve em Roma no ano de 1531, caindo nas graças do papa Clemente VII a quem
tenta converter ao judaísmo! Foi preso e condenado à fogueira pelo Santo
Ofício, mas conseguira se salvar. Uns dizem que conseguira graças a um plano do
papa, que o substituiu por outro condenado na hora. E, pelo que parece, Malco
tinha gosto em buscar pessoas graúdas para a sua fé. Fugindo de Roma, Salomão
Malco chegou a Ratisbona onde estava a corte do imperador Carlos V, a quem
buscou converter. Foi preso e condenado à fogueira de onde não conseguira
escapar desta vez. Verdade ou exagero, a
história de Malco e Rubeni certamente fortalecia a fé e esperança daqueles
indivíduos que esperavam por uma redenção em suas vidas.
Em Portugal, observamos a figura de Luis Dias,
alfaiate de Setúbal, que se proclamava o próprio messias. Lipiner o analisa como um fruto das
circunstâncias históricas em que se encontrava a população cristã nova do
reino. Fora impelido para o cargo de messias por estes indivíduos, e o aceitou
de bom grado, talvez por ter visto sua estima crescer entre eles. O alfaiate
possuía erudição no que se refere às tradições judaicas e tornou-se um grande
objeto de euforia por parte dos cristãos novos portugueses, possuindo em seu
círculo pessoas dos mais variados estratos sociais, desde artesãos até pessoas
de camadas altas e cultas do reino. Tal exaltação chegou a atingir cristãos
velhos, convencendo a muitos acerca de ser o messias. Lipiner analisa este fato
como uma política que tinha como um dos objetivos minorar a ação repressora do
Santo Ofício. Outro exemplo que na época abalou o reino foi a conversão do
desembargador Gil Bugalho às palavras do alfaiate e ao judaísmo, tornando-se “o
melhor judeu que poderia ser” e sua mulher “a melhor judia que nunca vira”,
conforme as palavras de uma testemunha no tribunal inquisitorial.
A posição do Santo Ofício em relação a este réu foi
diferenciada, devido à sua posição na estratificação social, conforme o autor.
De início queriam reduzi-lo, ou seja, admoestá-lo à contrição por ter tomado um
caminho diferente da ortodoxia católica. Mas acabaram por condená-lo à fogueira
visto a sua obstinação. Aqui, mais uma vez convém lembrar que o objetivo
central do tribunal não era queimar o herege e sim convencê-lo de seus erros,
de acordo com as crenças da época. A nosso ver a atitude de indulgência para
com o desembargador também deve ser relacionada com esta característica e não
somente com diferenciações sociais. Prova disto foi o
fato deste personagem quase ter sido queimado da primeira vez em que foi para o
cadafalso, somente não o sendo por que confessou as suas culpas em última hora,
dizendo, como nota o próprio Lipiner, que “judaizou sem a intenção de fazer-se
judeu”.
Gonçalo Anes Bandarra, juntamente com Luis Dias,
assumiu o papel de portador da esperanças messiânicas dos cristãos-novos na
época. Embora a sua origem cristã- nova não seja consensual entre os
historiadores, viu-se cercado por estes devido às suas Trovas, que a viam como
obra profética. A vila em que vivia era um reduto conhecido de cristãos novos,
fato este que nos possibilita imaginar a amplitude do reboliço que causara
entre eles e também entre os cristãos velhos, seja por visualizarem sua oficina
com grande trânsito de cristãos novos indagando sobre a interpretação da sua
obra, seja pelo próprio conteúdo dela. Em Portugal, a força do judaísmo,
religião letrada, onde os seus seguidores tem contato com os escritos da Torá e
do Talmud, permitiu a existência de grande número de alfabetizados entre as
baixas camadas sociais, principalmente no que se refere aos oficiais mecânicos,
que compunham considerável número de judeus e, posteriormente, cristãos-novos.
Se descartarmos a possibilidade do próprio Bandarra ter sido cristão-novo, como
acreditam alguns estudiosos, o fato de viver em reduto de cristãos-novos e
travar contato com eles cotidianamente lhe davam efetivas possibilidade de
aprender as letras. Destes contatos, das leituras da bíblia que pegara
emprestada com o padre de sua paróquia, somadas ao seu dom para fazer versos e
à conjuntura de sua época, formar-se ia a obra que causou inquietação nas
populações cristã-nova de sua vila e do reino.
Ficavam indagando acerca de trechos que consideravam
como alegorias messiânicas, fato este possibilitado pelas dificuldades das
trovas, que poderiam sugerir diferentes interpretações, pela existência de
figuras e metáforas bíblicas de acordo com Lipiner. Na realidade, as Trovas
tinham um conteúdo que representavam uma crítica aos costumes do mundo e de
Portugal de seu tempo e tinha o objetivo de corrigir os seus males, assim como
também os da Igreja. Eram apresentadas como sonhadas, fato este que fez
Jaqueline Hermann interpretá-lo como uma tentativa do autor de fazer passá-la
por profética, tal como ocorria com os profetas do antigo
testamento que sonhavam a mensagem que Deus queria revelar ao povo hebreu. Mas
grande parte de suas estrofes se referem, em linguagem cheia de símbolos, desde
os tradicionalmente medievais até alguns caros ao judaísmo, às glórias antigas
do reino, principalmente às que viveu no reinado do Venturoso, em contraposição
às que vivia quando as escrevia, provavelmente entre os anos 1530 e 1540, sob o
reinado de D. João III. Sob sua Coroa o reino começa a presenciar o início da
crise do império ultramarino, cujas longas viagens empreendidas e o custo para
a manutenção dos domínios eram por demais onerosas. Sob o seu reinado, Portugal
perde importantes praças no norte da África para os mouros, acontecimentos bem
diferentes e contraditórios para os que esperavam um glorioso império,
instrumento de Cristo.
Desta forma, o sapateiro-profeta colocava as suas esperanças num reinado
vindouro, onde o reino retornaria à sua vocação dada pela divindade. Sob o
comando de um rei, Portugal retomaria seu destino glorioso. Hermann
fabulosamente nos mostra que este rei, na concepção de Bandarra, assim como em
muitos na população do reino, era tido como a idealização de um cavaleiro
medieval, onde numa cruzada, faria justiça aos que mereciam e castigaria os
infiéis. Com esta vitória do rei português o mundo experimentaria grande paz,
notoriamente no terreno religioso onde Todos terão um amor
Gentios como pagãos
Os judeus serão
cristãos,
Sem jamais haver
erros
Servirão um só
senhor
Jesus Cristo, que
nomeio
Todos crerão que já
veio
O Ungido Salvador
Embora fizesse sucesso entre muitos cristãos novos,
Bandarra, assim como o alfaiate-messias, Luis Dias, era encarado com
desconfiança e até mesmo hostilidades entre o rabinato ortodoxo (ou melhor, cripto-rabinos)
existente no reino. Isto porque não aceitavam os messianismos, ainda mais
quando misturavam doutrinas do antigo testamento com místicas e figuras
populares. Luis Dias, por exemplo, reformulou com o seu pensamento todo o
tradicional cenário da redenção dos judeus, passando este de Israel,
Jerusalém,mais especificamente, para Portugal. Esta atitude nos mostra que a
idéia de um glorioso destino para Portugal estava longe de estar presente
apenas nos círculos de cristãos velhos, mas era também compartilhada,
reapropriada e reinterpretada por camadas de cristãos novos. A idéia deste
destino é concebida e ganha corpo em ambiente cristão, mas também sofre uma
releitura por parte dos cristãos-novos, num verdadeiro exemplo de circularidade
cultural, conforme a definiu Ginzburg.
O fato de serem dos estratos sociais mais simples e considerados como
iletrados também gerava desconfianças entre os rabinos clandestinos do reino.
Como pessoas sem letras poderiam ter tamanho conhecimento ? Assim, pensavam
nobres e letrados do reino. Entretanto, esta mesma humildade poderia ser a
prova da inspiração divina das palavras destes homens, conforme argumentavam
alguns. A humildade na terra era uma das características atribuídas ao messias
e aos profetas nos círculos judaicos e desta maneira poderia comprovar a
veracidade destes homens.
A Igreja, arrogada portadora da verdade da salvação
desde os seus primórdios, como não podia deixar de ser, era a maior adversária
destas manifestações messiânicas, ainda mais provenientes de batizados na fé em
Cristo, mesmo que à força. O tribunal inquisitorial, recém instituído nesta
época fez grande esforço para reprimi-las. No entanto, os inquisidores ainda
não possuíam o conhecimento aprofundado do judaísmo, o que acarretava que muita
coisa passava despercebida. Somente ao longo dos anos, através de
interrogatórios numerosos e sistemáticos, os ministros do Santo Ofício
construíram uma malha de informações acerca das práticas, expressões, crenças e
pensamentos judaicos que permitiriam ao historiador atual pesquisar os aspectos
cotidianos da vida dos cristãos-novos no reino lusitano por estes tempos. Disto
depreende o fenômeno que Ronaldo Vainfas rabinos clandestinos no reino,
os processos inquisitoriais eram sumários, com poucas páginas, tendo em vista a
força que o judaísmo ainda tinha em Portugal; ao longo dos anos, quando este
judaísmo perdia muito de sua essência e força originais, existindo apenas em
alguns de seus aspetos rituais, os processos eram maiores, em comparação com os
anteriores. Isto se explica pelo fato de que os inquisidores iam adquirindo
conhecimento e experiência destas práticas gradativamente, aquisições estas
que, paradoxalmente, coincidiam com o declínio do judaísmo no reino.
A falta de conhecimento das crenças e dos rituais do
judaísmo por conta dos ministros do tribunal do Santo Ofício pode ter sido um
dos fatores que possibilitaram Bandarra ter alcançado uma condenação e penalidade
suave. Foi considerado “amigo de novidades”, que alvoroçavam as populações de
cristãos novos, sendo por isto proibido de escrever e falar assuntos
concernentes às escrituras sagradas. Não fora nem considerado cristão-novo por
parte dos inquisidores.
Mas o status do nosso humilde sapateiro mudaria definitivamente após o
desaparecimento do rei D. Sebastião nas areias marroquinas, após o fiasco da
batalha de Alçácer Quibir, no ano de 1578. Crescendo e sendo educado para a
retomada do projeto de dominação no norte da África, e assim, na mentalidade do
reino, do império universal, D. Sebastião, o “último rei cruzado”, conforme a
concepção de Hermann, buscou levar guerra aos mouros da região, tendo sido o
seu exército derrotado.
O período de dominação espanhola que daí decorreu
proporcionou a elevação de Bandarra à condição de profeta do reino, sobre quem
as populações lusitanas depositavam a esperança de um dia se libertar do julgo
do reino rival. E as Trovas do sapateiro acabaram se tornando a bíblia em que
estavam contidas estas esperanças.
O fato do rei D. Sebastião ter desaparecido no campo
de batalha, e ninguém ter encontrado o seu corpo, dava margem para a esperança
num possível retorno inesperado do monarca, que resgataria o reino português do
domínio castelhano. Este fenômeno é conhecido como Sebastianismo, crença que
comporta amplos aspectos e nem sempre fáceis de apreender. Este fenômeno já
sofreu diversas abordagens, mormente na a historiografia portuguesa,
muitas das quais extravasam para julgamentos que beiravam à passionalidade e ao
ressentimento. Desta maneira, pôde ser analisado como uma manifestação do
ímpeto da raça portuguesa, como em Oliveira Marins, ou como uma ignorância do
povo português. Mas, desabonadoras ou não,
todas as visões do Sebastianismo associam o surgimento e florescimento deste
movimento à dominação dos Felipes espanhóis.
A crise no reino, principalmente no que diz respeito à
interrupção dos rumos em direção ao Império Universal, capenga desde o reinado
de D. João III, como vimos, levou ao desabrochar da esperança num futuro rei
salvador. Esta esperança, primeiramente identificada com o retorno de D.
Sebastião desaparecido, se mesclou com elementos antigos do pensamento medieval
europeu, como o mito do rei Encoberto. Baseava-se na existência de um rei
escondido, oculto aos demais olhos e que apareceria milagrosamente para
resgatar um reino e sua população das situações de miséria e opressão. O mito
ressurgia com força em contextos de crises que ocasionalmente os reinos europeus
poderiam passar.
Em Portugal, o mito do Encoberto veio ao encontro de elementos da
cultura hebraica, arraigados nas populações de cristãos-novos. Isto pela
característica “bandarrista” que possuía, ou seja, pela larga utilização das
Trovas do sapateiro de Trancoso como a justificação da crença num retorno
milagroso do rei salvador.
Foi nos círculos letrados do reino que sapateiro ganhou o título póstumo
de profeta. A não aceitação do domínio de Castela, e conseqüentemente, da
renúncia ao Império Universal, por parte de alguns, levou à utilização das
Trovas como âncora das esperanças no retorno do rei D. Sebastião. Como já nos
referimos, os versos do sapateiro, dava margem à variadas interpretações.
Criticava a realidade pela qual o reino passava, mas falava de um rei encoberto
que o resgataria desta situação e o reconduziria ao seu destino de glorioso
império. Escritos na época de D. João III e dentro do contexto do seu reinado,
os versos do sapateiro de Trancoso acabaram que por se transformar em obra
profética por parte da resistência de alguns letrados portugueses.
Foi o caso de D. João de Castro que, em 1603, publicou
a obra Paraphase et concordância de alguas Prophecias de Bandarra,
çapateiro de Trancoso, onde pela primeira vez se buscou relacionar os
acontecimentos históricos do reino lusitano com as Trovas de Bandarra, pelo
menos num texto publicado. O rei salvador dos versos do sapateiro seria
interpretado como o rei D. Sebastião para Castro. O fato de sido um homem
simples, mas cujas profecias em muito eram semelhantes às de santos conhecidos,
dava prova de que tinham saído mesmo espírito profético, de acordo com o nosso
intérprete, merecendo igual veneração. Argumentação que será utilizada décadas
mais tarde por Antônio Vieira, mas num contexto diferente, o do reinado de D.
João IV, conforme veremos.
As interpretações dadas pelos cristãos-novos às Trovas
eram acusadas como falácias por Castro, tendo elas sido proibidas pelo Santo
Ofício, por causa dos judeus. Estes apropriavam muitas profecias portuguesas
por conta das esperanças que ocasionavam
No número das quais são as de Bandarra, em que alguns dos ditos põe
muito o sentido, não tendo elas na verdade cousa, de que eles para si em
particular, possam pegar; porque onde elas falam da tribo de Rubem, não
prometem nada aos judeus, nem falam de judeu, senão de cristão, mas de sua
raça; nem dizem coisa que possam acrescentar a sua cegueira, mazela é tal e
andam eles tão sequiosos, que de qualquer cousa lançam mão e se perdem em
qualquer sombra , como é só de se falar na dita tribo, tomando para si as
felicidades que Bandarra promete.
Esta opinião de Castro acerca da “mácula” que as Trovas sofreram a
partir dos cristãos novos do reino visava, antes de tudo, desculpar a própria
figura do sapateiro de Trancoso. Sua elevação a profeta, e portador das
esperanças num glorioso futuro português, precisava que estivesse quites com a
ortodoxia católica. Daí, a necessidade de mostrar que seu pensamento foi
mal-interpretado e a sua condenação pelo Santo Ofício foi ocasionada por um
engano proporcionado pela “cegueira” dos cristãos-novos que, na ânsia pela
vinda do messias, enganavam-se e punham outros em engano.
Apesar de terem sido condenadas pelo Santo Ofício, é
certo que as Trovas eram bastante conhecidas, podendo tal condenação ser
encartada como “letra morta”. Figurava importante ponto de apoio para as
esperanças no retorno do rei D. Sebastião desaparecido, e da resistência contra o
domínio castelhano, mormente a partir do governo de Felipe III. O desrespeito
aos Estatutos de Tomar causou muitas insatisfações entre a nobreza portuguesa,
conforme vimos, e certamente contribuiu para o aumento dos anseios num rei
salvador.E desta maneira, as Trovas divulgavam-se nestes meios. Podemos
afirmar, inclusive, a sua divulgação entre os diversos domínios portugueses
além-mar. Lipiner, por exemplo, afirma já circularem na colônia no final do
século XVI.
Foi na colônia que Vieira tomou conhecimento das
Trovas do sapateiro, provavelmente nos próprios colégios da Companhia de Jesus,
visto terem sido os jesuítas portugueses ferrenhos resistentes à dominação
castelhana e entusiasmados propagadores da crença sebastianista, seja no reino,
seja em seus domínios.
Já em 1634, Vieira pregou na Bahia o sermão de S.
Sebastião, por ocasião das comemorações do dia do mesmo santo. Em seu discurso
existem elementos que fazem referencias à crença sebástica. Deste modo, por
exemplo, S. Sebastião, santo crivado pelas flechas dos romanos, encobriu a
realidade da vida debaixo da opinião da morte, pois embora todos o tivessem
deixado por morto no dia da campanha, foi retirado dela à noite vivo,
são, valente e forte, como o era antes. Se é certo que foi atado no
tronco, crivado por setas, quem o acreditará vivo? [...] Assim, crêem os
bárbaros, assim crê o tirano, que já está satisfeito, assim o choram os amigos,
assim o lamenta a Igreja e suspira a cristandade, mas o que importa que esteja
Sebastião morto na opinião, se estava vivo na realidade? Isto é ser Sebastião o
encoberto”.
Impossível não enxergar a alusão e comparação do santo
com o rei desaparecido. A existência de tais alusões e comparações não é fato
analisado com consenso entre os estudiosos. João Lúcio de Azevedo analisa este
discurso como uma sátira política do jesuíta aos sebastianistas. Isto porque o
sentimento português ainda não havia aflorado no padre, não lhe fazendo
diferença ser súdito de rei estrangeiro, pois nascera como tal. Neste sentido,
o padre não comungava com a posição de muitos de seus compatriotas da
Companhia, que optaram pela resistência ao reino estrangeiro, seja em escritos,
seja por seus sermões.
Tal tese parece verossímil se atentarmos que o
padre louvava os atos de Felipe IV e criticava os que esperavam no retorno de
D. Sebastião, dias antes da chegada das noticias da Restauração, conforme
expomos no capitulo anterior.
Com base naqueles dizeres podemos abrir um leque de
possibilidades sobre a atitude do padre: ele poderia ter acreditado nas esperanças
sebastianistas até o ano de 1640, quando viu a não concretização das profecias
esperadas para aquele ano (vale lembrar que as noticias da Restauração ainda
não tinham chegado aos baianos); poderia também nunca ter acreditado na crença
sebástica como sugere Azevedo ; poderia acreditar piamente no sebastianismo,
mas como estava na frente de autoridades representantes do monarca espanhol e
por ocasião de uma mercê dada à sua ordem religiosa, era necessário louvar o
monarca Felipe IV. Sebastianista ou não; partidário ou resistente a Castela: é
muito difícil afirmar sobre os posicionamentos políticos do padre nos os anos
anteriores à Restauração. As fontes que poderiam iluminar a este respeito são
escassas, fazendo os estudiosos que tentam elucidar sobre isto caminhar em
pantanosos terrenos, muitas vezes de conjecturas.
Mas após as notícias da aclamação do novo rei em Portugal, Vieira
abraçou a causa da liberdade do reino frente à Castela de corpo e alma. Nos
primeiros anos da Restauração vêmo-lo esgrimar com os sebastianistas ainda
reticentes em relação ao novo monarca, buscando provar que este era o
verdadeiro Encoberto das profecias do reino. Em 1641, o jesuíta profere o
chamado sermão dos Bons Anos na capela real de Lisboa, onde espeta os ainda
partidários do rei-defunto.
“E já que vai de esperanças não deixemos passar
sem ponderação aquelas palavras misteriosas da profecia [...] de propósito
reparei nelas, para refutar com as suas próprias armas alguma relíquia, que
dizem que ainda há aquela seita, ou desesperação dos que esperavam por el-rei
D. Sebastião, de gloriosa e lamentável memória.[...] que seria remido Portugal
inesperadamente por um rei não esperado. Segue-se logo evidentemente que não
podia ser el-rei D. Sebastião ser o libertador de Portugal porque o libertador
prometido havia de ser um rei não esperado [...] e
el-rei D. Sebastião era tão esperado vulgarmente, como sabemos todos”.
Neste sermão, alegava o padre que não tinha o objetivo
de discorrer acerca das profecias que falavam da restauração da coroa
portuguesa em 1640, mas o grandioso futuro que teria pela frente. Deus ordenara
que a Restauração fosse muitos anos profetizada por oráculos, assim como o nome
do libertador do reino, para que não se duvidasse do seu sucesso quando chegado
o seu momento. Isto porque o grande desejo por um acontecimento e a dificuldade
da sua realização os tornam pouco críveis quando se tornam realidade. E Deus
quis que o reino lusitano ficasse tanto tempo cativo porque o que é muito tempo
esperado será muito tempo possuído
O muito, quer Deus que não custe pouco, e era justo que a tanta glória
precedesse tanta esperança e quem havia de gozar sempre suspirasse muito.
Assim como o mundo esperou tanto tempo para a redenção do Cristo, como
esperou muito tempo para a Sua ressurreição, Portugal esperou muito tempo por
sua redenção. O que tinham em comum estes fatos? Eles haveriam de ser para
sempre possuídos. Desta maneira, observamos Vieira atribuindo um sentido para a
dominação castelhana, que eram primícias do destino glorioso português. O rumo
deste destino fora retomado com a Restauração.
Acerca destes acontecimentos já tinha profetizado São
Frei Gil: o reino de Portugal, morrendo o seu último rei sem filho herdeiro,
gemeria e suspiraria muito. Mas Deus se lembraria do reino e o remiria não
esperadamente por um rei não esperado. Depois de remido, Portugal conquistaria
a África e o Império Otomano cairia sujeito e rendido a seus pés. A Casa Santa
de Jerusalém seria recuperada. Ressuscitaria a idade dourada, havendo paz
universal no mundo. Vemos nesta idéia que o padre já tinha grande conhecimento
acerca das profecias do reino, adquiridas provavelmente junto aos jesuítas da
colônia. A semente do seu Quinto Império, que o levaria a um grande debate
teológico com os inquisidores
portugueses anos depois, provavelmente já germinava em suas idéias. Reflete
também o ideal cruzado presente no reino, com o subjugo do mundo mulçumano,
idéia esta que teve em D. Sebastião o seu ultimo grande representante.
O cumprimento de todas as profecias concernentes à Restauração
prognosticava os sucessos futuros do reino
Tudo o que disse, ou foram profecias cumpridas, ou benefícios da mão de
Deus; e em profecias e benefícios começados, o mesmo é referir o passado, que
prognosticar e segurar o futuro.
As profecias se cumprem pelo sucesso das coisas profetizadas e quando
uma se cumpre, é conseqüência infalível o cumprimento de todas as outras. Os
portugueses, tendo ciência das profecias que se cumpriram na aclamação de D.
João IV, O Encoberto, não deveriam
ser hereges da boa razão, e de uma fé mais que humana, dando todos os
parabéns a Portugal e chamando- lhe mil vezes feliz.
As profecias concernentes à Restauração necessitavam
de fé para serem acreditadas. Os sucessos futuros de Portugal necessitavam
apenas da boa razão para isto, pois
os efeito presentes das passadas, são novas profecias do futuro.
Provado os desígnios divinos para com Portugal, os portugueses tinham
que voltar-se para a sua missão e vocação
Grande ânimo, valente soldados, grande
confiança, valorosos portugueses, que assim como vencestes felizmente estes
inimigos, assim haveis de vencer todos os demais, que como são vitórias dadas
por Deus, este pouco sangue, que derramastes em fé de seu poderoso braço, é
prognostico certíssimo o muito que haveis de derramar vencedores: não digo
sangue de católicos, que espero em Deus que se hão de se desapaixonar muito cedo
os nossos competidores, e que o nosso valor e em seu desengano, hão de estudar
a verdade de nossa justiça; mas sangue de hereges na Europa, moiros na África,
sangue de gentios na Ásia e na América, vencendo e sujeitando todas as partes
do mundo a um só império, para todas em uma só coroa se meterem gloriosamente
debaixo dos pés de São Pedro.[...] Venha a nós, Senhor, o vosso reino: vosso,
porque vosso é o reino de Portugal, que assim nos fizestes mercê de o dizer a
seu primeiro fundador el-rei D. Afonso Henriques.
Termina o sermão com as palavras do Pai Nosso adaptado à missão do reino
no mundo, na confirmação das palavras de Cristo ao seu primeiro soberano
Santificado e glorificado sejas, Senhor o vosso
nome; porque ao nome santíssimo de Jesus, como a primeiro e principal
Libertador reconhecemos dever a liberdade que gozamos; [...] venha a nós,
Senhor, o Vosso reino: porque vosso é o reino de Portugal , que assim fizestes
mercê de o dizer a seu primeiro fundador el-rei D. Afonso Henriques: Volo in
te, et in semine tuo Imperium mihi stabilire.
Desta maneira, buscou Vieira provar para o seu
auditório que os acontecimentos que ocorriam na vida política de Portugal
estavam de acordo com as profecias há muito conhecidas no reino, estando, por
isto, fundamentadas na razão. Obviamente, Vieira não fora o único a proclamar
os desígnios divinos da Restauração. O jesuíta Bartolomeu Pereira, por ocasião
do sermão da Aclamação, em 1640, afirmava que era milagre Portugal ter
ressurgido no dia de São Francisco Xavier
Que havendo ressuscitado 25 mortos, era bem que
ressuscitasse esta coroa em seu dia para cumulo e coroa de suas glorias. [...]
milagre foi ressuscitar o nosso reino no dia em que a Igreja celebre a
Ressurreição Universal do Dia do Juízo e que se cumprisse nesta de Portugal
tudo o que o divino Paulo Universal que se faria em um momento em um abrir e
fechar de olhos, na voz de um Arcanjo São Miguel.
---
Fonte:
Fonte:
Salomão Pontes Alves: “O paladino dos hereges: a defesa dos
cristãos - novos e judeus pelo Padre Antônio Vieira”. (Defesa apresentada ao
programa de pós-graduação em história social da Universidade Federal Fluminense
como requisito para obtenção do grau de mestre em História. Orientador: Ronaldo Vainfas). Niterói, 2007.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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