19/03/2016

Sermão do nascimento da Virgem Maria, de Padre Antônio Vieira

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Palavra e Persuasão

 A  Idade  Moderna  já  foi  definida  como  sendo  “a  idade da  eloquência” (FUMAROLI 1980), tal a influência que a iconografia e a oratória, sobretudo em seu estilo religioso – a pregação –, estabeleceram no período. Devido a profundos reflexos do Concilio de Trento, a pregação tornou-se um dos principais motes da difusão e manutenção da fé e doutrina católica (MASSIMI, 2005 ). Deve ser levada também em conta a valorização da oralidade na cultura, a grande população iletrada, e acessibilidade restrita as Escrituras Sagradas.

Gozando de relevância e prestígio, a oratória religiosa recebeu grande atenção através do estudo pedagógico da retórica e seus efeitos (MASSIMI, 2005). Isso possibilitou um estudo da ars retorica em profundidade, desde a apropriação dos clássicos – Aristóteles e Cícero – até uma imbricação com valores do Humanismo – de grande influência no séc. XVII (MASSIMI, 2005). A persuasão, objeto e por vezes objetivo da retórica, se torna elemento central da pregação. É pela persuasão que se atinge a metanóia : ato de conversão. Os significantes palavra e verbo divino se mesclam, sendo a expressão verbal também possibilidade de manifestação divina, compondo assim o corpo místico e social da Igreja (MASSIMI, 2005).

Em  outra  perspectiva,  são  articulados  também  saberes  sobre  os  efeitos  da pregação nos ouvintes. Justaposto ao conhecimento retórico está o conhecimento sobre a  dinâmica  da  alma  humana.  Como,  para  esta  cultura,  através  da  enunciação  de palavras, alteram-se afetos, pensamentos lógicos e,  por conseguinte, a conduta? Há uma apropriação e produção de saberes psicológicos sobre a dinâmica interna da alma. Dessa maneira, a palavra conscientemente trabalhada por uma técnica – a retórica –, pode tocar e ordenar tal interioridade.

A Companhia de Jesus, partindo de uma matriz aristotélico-tomista, desenvolveu seu modelo de dinâmica anímica. Tal modelo é marcado tanto pela retomada da tradição em retórica como a produção em Coimbra de estudos e documentos acerca do tema (MASSIMI, 2005).

A ars retorica aparece como meio sensível para o desengano. É através da palavra laboriosa que o pregador acessa a interioridade de seus ouvintes, tocando apetites e paixões e ordenando-os de maneira mais apropriada. Lançando mão da proposta de “retórica jesuítica” Vieira aproxima retórica clássica e eloquência cristã, um modelo consagrado em seu tempo e iniciado por Agostinho em sua obra “Da Doutrina Cristã” (1991). Em um modo sacramental, a palavra pode exprimir verdade, já que seria uma forma de manifestação sensível de Deus, de modo que a persuasão provinda do modelo clássico se torna metanóia: processo de conversão da pessoa, fruto que se colhe da pregação.

Assim, inquerimos sobre a maneira do pregador utilizar os conhecimentos retóricos e psicológicos da época para construir seus sermões de modo a mobilizar as potências da alma.

No famoso “Sermão da Sexagésima”, o qual o próprio Vieira escolhe como prólogo à sua obra sermonaria o inaciano discute, dentre muitas outras coisas, sua concepção sobre o que vem a ser a pregação e como esta deve ser desenvolvida, bem como quem é o pregador. Em metalinguagem fala da pregação ao pregar. Teorética e práxis são contempladas neste eloquente exercício oratório. Sem adentrarmos nas particularidades deste sermão, pretendemos fazer luzir-lhe apenas uma faceta, a da constituição da palavra em sua força imagética e se u entrelaçamento com a dinâmica da alma.

Com rigor e ortodoxia, ao mesmo tempo utilizando-se do engenho, o pregador faz emergir a estrutura argumentativa subjacente aos sermões. Indica suas partes e funções de modo pedagógico segundo sua formação jesuítica. Observa-se enunciado no seguinte excerto, de maneira concisa e potente, o modo pelo qual deve o pregador ordenar seu discurso:

Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-ed prová-la com a Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirma-la com o exemplo, há-de amplifica-la com as causa, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há-de de responder as dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades, há-de impugnar refutar com toda a força da eloqüência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto. Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discurso, mas esse hão-de nascer todos da mesma matéria, e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? (Vieira, 1993, p. 90).

Propõe Vieira:   “Quereis  ver  tudo  isto  com  os  olhos?”.  E  o  que  ele engenhosamente traz na sequência é uma imagem metafórica (criada com palavras). Compara o sermão a uma árvore com suas raízes, troncos, ramos, folhas, varas, flores e frutos as quais se ligam a Evangelho, assunto e matéria, discursos, ornamento de palavras, repreensões aos vícios, às sentenças e ao   “fim que se há de ordenar o sermão” respectivamente (Vieira, 1993, Vol. I, p. 91). E assim, Vieira dá vida “diante dos olhos” à sua estrutura formal retórica, ou seja, é possível “ver pelos ouvidos” criando imagens metafóricas as quais presentificam conceitos e objetos. Criar imagens torna a coisa presente: “ver é crer”. Vieira propõe através do uso de metáforas toda uma construção imagética, requisitando fantasmas (imagens) depositados na memória. O poder da imaginação na persuasão é amplamente difundido pelos jesuítas, estes o experienciam em sua formação nos Exercícios Espirituais proposto s por Inácio de Loyola (1985). No século XVII, uma conceituação muito precisa do significado e do uso das metáforas encontra-se na obra de Tesauro (1965). Para este pensador, a metáfora pode ser definida como uma espécie de “óculo” aristotélico, conforme expressão utilizada por Aristóteles (1994) na “Retórica”, cuja função é a d   e pôr os objetos debaixo dos olhos para bem observa-los. Ela torna a linguagem aguda, de modo análogo ao efeito que a luneta produz na pupila. A metáfora penetra e investiga as noções mais abstrusas para acoplá-las de modo genial, tendo como resultado uma dilatação do campo semântico ordinário (TESAURO, 1965). Os vocábulos metafóricos carregam-se por uma multidão de imagens e noções, proporcionando ao olhar interior um espetáculo surpreendente: “parecendo à mente de quem ouve, ver num só vocábulo, um teatro pleno de maravilhas” (conforme expressão de TESAURO, citado em JORI, 1998, p. 156, trad. nossa). A regra aristotélica da mesotes, ou seja, da medida e da temperança, é rejeitada pelos autores seiscentistas, em favor da afirmação da audácia do engenho humano que, ao criar metáforas, identifica um conceito com outro aparentemente inconciliável. O engenho – faculdade intermédia entre razão e imaginação – torna-se então através da metáfora, capaz de expressar uma sorte de percepção sensorial do pensamento.

Porém, apesar do engenho do pregador, todo esse universo metafórico já dispõe de lugares argumentativos pré-definidos, construídos pela visão de mundo dos homens da época. Assim, quando Vieira lança mão das possibilidades de sentido da metáfora, estes já possuem seu escopo próprio, como já aludido por Pécora (2003) há toda uma máquina de composição pronta a fornecer ao inaciano os tópicos, metáforas e invenções e seus cruzamentos. A maestria de Vieira e sua marca enquanto sujeito histórico está justamente no modo pelo qual opera tal máquina de composição.

Justaposto ao trabalho retórico, é possível identificar alguns elementos nos textos dos sermões, que indicam como se dá o processo de persuasão, havendo uma ação nos mecanismos internos da alma. Tais mecanismos são bem estabelecidos e determinados pela filosofia da Segunda Escolástica (ZANLONGHI, 2003). Nesta concepção a intelecção se dá tanto pela apreensão de espécies sensíveis, como espécies inteligíveis (impressas e expressas), sendo estas últimas do campo da imaginação.

No dinamismo psíquico, a transformação do objeto sensível para a palavra acontece segundo certa ordem, segundo Zanlonghi (2003): o objeto suscita, na inteligência do sujeito humano, a espécie sensívelimpressa, a qual origina a espécie sensível expressa, ou seja, a imagem, ou fantasma da coisa. Tal reprodução representativa do objeto, por sua vez, cria a espécie inteligível impressa, ou seja, proporciona a assimilação intelectual do objeto pela ação do intelecto agente, a saber, o seu reconhecimento pelo intelecto. Finalmente, este reconhecimento produz a espécie inteligível expressa, ou seja, à formulação do conceito, verbum mentis: a palavra. Em suma, o verbum mentis humano necessita sempre de um veículo sensível: a imagem.

Portanto, a retórica enfatiza a função de sinal que   a imagem tem, utilizando-se de processos analógicos e imaginativos.

Tomando-se novamente como exemplo o “Sermão da Sexagésima”, é possível buscar alguns processos analógicos e imaginativos n a formulação de conceitos. De conceitos mais simples e já estabelecidos, por uso de metáforas, o pregador formula conceitos mais complexos e refinados, facilitando deste modo a assimilação intelectual. Também envolve-se o ouvinte ativamente na evidenciação dos sentidos os quais o pregador pretende desvelar.

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo mundo , disse-lhes desta maneira: (...) Ide, e pregai a toda criatura. Como assim, Senhor? Os animais não são criaturas? As árvores não são criatura? As pedras não são criaturas? Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras? Hão-de pregar aos troncos? Hão-de pregar aos animais? Sim: diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras (Vieira, 1993, p. 73-74).

Vieira parte do gênero das criaturas (criaturas racionais, sensitivas, vegetativas e insensíveis) e chega ao temperamento dos homens. Como ele o faz? O discurso começa criando imagens, as quais partem de elementos básicos (elementares) – gênero das criaturas – recapitulando da memória conceitos correspondentes a percepções concretas (homem, animal, planta, pedra). A seguir, age na potência cogitativa, reelaborando conceitos: aproximando imagens passo a passo – imagens (re)criadas por palavras que trazem carga afetiva. O homem degenerado (em) passa a ser criatura (perde a origem, o ser). Homem “degenerado emnão “é”, mas é “como se fosse”, ou seja, o homem degenerado em pedra, por exemplo, não se torna pedra, mas é “como se fosse” (forma intencional) pedra. Aqui se substitui a ideia concreta de pedra (criatura/objeto), pela representação simbólica/afetiva que ela nos traz (intencionalidade) – é a forma intencional presente na fantasia sendo apreendida e ordenadamente na cogitativa. Através da intencionalidade captada, é possível passar do plano concreto do sensível (dureza, solidez, impenetrabilidade), para o universal abstrato (insensibilidade). Insensibilidade é categoria que qualifica uma posição ética, que apesar de remeter a “temperamento”, “personalidade” e, portanto, requerer todo um processo de intelecção para definir o conceito, é acessível de forma bem mais direta, por ser intencional, se temos que “é como pedra”. O ouvinte pode não conseguir inteligir de forma direta, racionalizando, mas pode entender a intenção que o discurso propõe, e é por isso que o inteligir passa através da sensibilidade.

Cria-se assim, o conceito de homem-pedra, o qual é reelaborado na potência cogitativa e devolvido à memória, remetendo-se então ao tópico de “vontade endurecida”. Mais adiante no sermão o jesuíta recupera o tópico e conceito preestabelecidos. Ao evocá-los da memória trazem consigo todos os sentidos até então agregados, não sendo necessário retoma-los. O ouvinte já pode completar por si os sentidos dos conceitos apresentados:

Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras. A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pode abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga vis silicem, et eressae sunt aquale largissimae. Inratum est cor Pharaonis (Vieira, 1993, p. 80).

Vieira (1994) coloca como exemplo, a figura bíblica do Faraó e sua vontade endurecida para recapitular a ideia do homem-pedra. Retoma o último conteúdo da memória (homem-pedra), dá o exemplo bíblico e por indução 14 o aplica a todo um gênero (tipo) de ouvinte. Mobilizando novamente a potência cogitativa (através da capacidade intuitiva e indutiva do ouvinte) e estabelecendo uma “nova” memória procura persuadir.

Outro trecho aponta modalidades de mobilização do dinamismo psíquico, no entanto proposto de modo diferente. Parece-nos que o jesuíta busca uma reordenação de imagens e não uma aproximação delas. Vieira, partindo da parábola do semeador, busca dissociar o nome semeador com o ato de semear, valorizando este último. A palavra é redefinida enquanto conceito, palavra e ação são justapostas. Neste exemplo, a imagem evocada pela palavra deve ser uma ação e não um conceito abstrato.

A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: uma cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja; uma cousa é o governador outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeado, e outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são o que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as acções, a vida, o exemplo , as obras, são as que convertem o mundo (Vieira, 1993, p. 82).

Ao falar do pregador, de sua pessoa, novamente há uma reorganização na potência cogitativa, porém, ainda ao fazer associações, pretende-se dissociar elementos. Por exemplo, diferencia-se os termos: semeador-semear; soldado-pelejar; governador-governar; pregador-pregar. Desta maneira, o foco não está mais no nome (palavra) que remete a conceitos, mas parte de uma ação para definir o conceito. É o ato de semear que diz o que é o semeador e não a ideia do semeador. Obviamente, a ideia do semeador é a do que semeia, mas Vieira parece querer causar certo “estranhamento”, quebrando o óbvio ao partir da ação – para valorizá-la – e não do termo (nome). O nome sem a ação ficaria vazio, do mesmo modo como a pregação (nome) sem o exemplo (ação ) fica vazio.


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Fonte:
Sandro Rodrigues Gontijo: “Imaginação e memória nos sermões de Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de  Mestre em Ciências, Área: Psicologia. Orientadora: Prof. Dra. Marina Massimi). Ribeirão Preto – SP, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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