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Palavra e Persuasão
A Idade Moderna
já foi definida
como sendo “a
idade da eloquência” (FUMAROLI
1980), tal a influência que a iconografia e a oratória, sobretudo em seu estilo
religioso – a pregação –, estabeleceram no período. Devido a profundos reflexos
do Concilio de Trento, a pregação tornou-se um dos principais motes da difusão
e manutenção da fé e doutrina católica (MASSIMI, 2005 ). Deve ser levada também
em conta a valorização da oralidade na cultura, a grande população iletrada, e
acessibilidade restrita as Escrituras Sagradas.
Gozando de relevância e prestígio, a oratória religiosa
recebeu grande atenção através do estudo pedagógico da retórica e seus efeitos
(MASSIMI, 2005). Isso possibilitou um estudo da ars retorica em
profundidade, desde a apropriação dos clássicos – Aristóteles e Cícero – até
uma imbricação com valores do Humanismo – de grande influência no séc. XVII
(MASSIMI, 2005). A persuasão, objeto e por vezes objetivo da retórica, se torna
elemento central da pregação. É pela persuasão que se atinge a metanóia :
ato de conversão. Os significantes palavra e verbo divino se mesclam, sendo a
expressão verbal também possibilidade de manifestação divina, compondo assim o
corpo místico e social da Igreja (MASSIMI, 2005).
Em outra perspectiva,
são articulados também
saberes sobre os
efeitos da pregação nos ouvintes.
Justaposto ao conhecimento retórico está o conhecimento sobre a dinâmica
da alma humana.
Como, para esta
cultura, através da enunciação de palavras, alteram-se afetos, pensamentos
lógicos e, por conseguinte, a conduta?
Há uma apropriação e produção de saberes psicológicos sobre a dinâmica interna
da alma. Dessa maneira, a palavra conscientemente trabalhada por uma técnica –
a retórica –, pode tocar e ordenar tal interioridade.
A Companhia de Jesus, partindo de uma matriz
aristotélico-tomista, desenvolveu seu modelo de dinâmica anímica. Tal modelo é
marcado tanto pela retomada da tradição em retórica como a produção em Coimbra de
estudos e documentos acerca do tema (MASSIMI, 2005).
A ars retorica aparece como meio sensível para
o desengano. É através da palavra laboriosa que o pregador acessa a
interioridade de seus ouvintes, tocando apetites e paixões e ordenando-os de
maneira mais apropriada. Lançando mão da proposta de “retórica jesuítica” Vieira
aproxima retórica clássica e eloquência cristã, um modelo consagrado em seu
tempo e iniciado por Agostinho em sua obra “Da Doutrina Cristã” (1991). Em um
modo sacramental, a palavra pode exprimir verdade, já que seria uma forma de
manifestação sensível de Deus, de modo que a persuasão provinda do modelo
clássico se torna metanóia: processo de conversão da pessoa, fruto que se colhe
da pregação.
Assim, inquerimos sobre a maneira do pregador utilizar
os conhecimentos retóricos e psicológicos da época para construir seus sermões
de modo a mobilizar as potências da alma.
No famoso “Sermão da Sexagésima”, o qual o próprio
Vieira escolhe como prólogo à sua obra sermonaria o inaciano discute, dentre
muitas outras coisas, sua concepção sobre o que vem a ser a pregação e como
esta deve ser desenvolvida, bem como quem é o pregador. Em metalinguagem fala
da pregação ao pregar. Teorética e práxis são contempladas neste eloquente
exercício oratório. Sem adentrarmos nas particularidades deste sermão,
pretendemos fazer luzir-lhe apenas uma faceta, a da constituição da palavra em
sua força imagética e se u entrelaçamento com a dinâmica da alma.
Com rigor e ortodoxia, ao mesmo tempo utilizando-se do
engenho, o pregador faz emergir a estrutura argumentativa subjacente aos
sermões. Indica suas partes e funções de modo pedagógico segundo sua formação
jesuítica. Observa-se enunciado no seguinte excerto, de maneira concisa e
potente, o modo pelo qual deve o pregador ordenar seu discurso:
Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la
para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-ed prová-la com a
Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirma-la com o exemplo, há-de
amplifica-la com as causa, com os efeitos, com as circunstâncias, com as
conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar,
há-de de responder as dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades, há-de impugnar
refutar com toda a força da eloqüência os argumentos contrários, e depois disto
há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar.
Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto. Não
nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de
discurso, mas esse hão-de nascer todos da mesma matéria, e continuar e acabar
nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? (Vieira, 1993, p. 90).
Propõe Vieira: “Quereis
ver tudo isto
com os olhos?”.
E o que
ele engenhosamente traz na sequência é uma imagem metafórica (criada com
palavras). Compara o sermão a uma árvore com suas raízes, troncos, ramos,
folhas, varas, flores e frutos as quais se ligam a Evangelho, assunto e
matéria, discursos, ornamento de palavras, repreensões aos vícios, às sentenças
e ao “fim que se há de ordenar o
sermão” respectivamente (Vieira, 1993, Vol. I, p. 91). E assim, Vieira dá vida
“diante dos olhos” à sua estrutura formal retórica, ou seja, é possível “ver
pelos ouvidos” criando imagens metafóricas as quais presentificam conceitos e
objetos. Criar imagens torna a coisa presente: “ver é crer”. Vieira propõe
através do uso de metáforas toda uma construção imagética, requisitando
fantasmas (imagens) depositados na memória. O poder da imaginação na persuasão
é amplamente difundido pelos jesuítas, estes o experienciam em sua formação nos
Exercícios Espirituais proposto s por Inácio de Loyola (1985). No século XVII,
uma conceituação muito precisa do significado e do uso das metáforas
encontra-se na obra de Tesauro (1965). Para este pensador, a metáfora pode ser
definida como uma espécie de “óculo” aristotélico, conforme expressão utilizada
por Aristóteles (1994) na “Retórica”, cuja função é a d e pôr os objetos debaixo dos olhos para bem
observa-los. Ela torna a linguagem aguda, de modo análogo ao efeito que a
luneta produz na pupila. A metáfora penetra e investiga as noções mais
abstrusas para acoplá-las de modo genial, tendo como resultado uma dilatação do
campo semântico ordinário (TESAURO, 1965). Os vocábulos metafóricos carregam-se
por uma multidão de imagens e noções, proporcionando ao olhar interior um
espetáculo surpreendente: “parecendo à mente de quem ouve, ver num só vocábulo,
um teatro pleno de maravilhas” (conforme expressão de TESAURO, citado em JORI,
1998, p. 156, trad. nossa). A regra aristotélica da mesotes, ou seja, da
medida e da temperança, é rejeitada pelos autores seiscentistas, em favor da
afirmação da audácia do engenho humano que, ao criar metáforas, identifica um
conceito com outro aparentemente inconciliável. O engenho – faculdade intermédia
entre razão e imaginação – torna-se então através da metáfora, capaz de
expressar uma sorte de percepção sensorial do pensamento.
Porém, apesar do engenho do pregador, todo esse
universo metafórico já dispõe de lugares argumentativos pré-definidos,
construídos pela visão de mundo dos homens da época. Assim, quando Vieira lança
mão das possibilidades de sentido da metáfora, estes já possuem seu escopo
próprio, como já aludido por Pécora (2003) há toda uma máquina de composição
pronta a fornecer ao inaciano os tópicos, metáforas e invenções e seus
cruzamentos. A maestria de Vieira e sua marca enquanto sujeito histórico está
justamente no modo pelo qual opera tal máquina de composição.
Justaposto ao trabalho retórico, é possível
identificar alguns elementos nos textos dos sermões, que indicam como se dá o
processo de persuasão, havendo uma ação nos mecanismos internos da alma. Tais
mecanismos são bem estabelecidos e determinados pela filosofia da Segunda Escolástica
(ZANLONGHI, 2003). Nesta concepção a intelecção se dá tanto pela apreensão de
espécies sensíveis, como espécies inteligíveis (impressas e expressas),
sendo estas últimas do campo da imaginação.
No dinamismo psíquico, a transformação do objeto sensível
para a palavra acontece segundo certa ordem, segundo Zanlonghi (2003): o objeto
suscita, na inteligência do sujeito humano, a espécie sensívelimpressa, a qual
origina a espécie sensível expressa, ou seja, a imagem, ou fantasma da coisa.
Tal reprodução representativa do objeto, por sua vez, cria a espécie
inteligível impressa, ou seja, proporciona a assimilação intelectual do objeto
pela ação do intelecto agente, a saber, o seu reconhecimento pelo intelecto.
Finalmente, este reconhecimento produz a espécie inteligível expressa, ou seja,
à formulação do conceito, verbum mentis: a palavra. Em suma, o verbum
mentis humano necessita sempre de um veículo sensível: a imagem.
Portanto, a retórica enfatiza a função de sinal
que a imagem tem, utilizando-se de processos
analógicos e imaginativos.
Tomando-se novamente como exemplo o “Sermão da Sexagésima”,
é possível buscar alguns processos analógicos e imaginativos n a formulação de
conceitos. De conceitos mais simples e já estabelecidos, por
uso de metáforas, o pregador formula conceitos mais complexos e refinados,
facilitando deste modo a assimilação intelectual. Também envolve-se o ouvinte
ativamente na evidenciação dos sentidos os quais o pregador pretende desvelar.
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo mundo ,
disse-lhes desta maneira: (...) Ide, e pregai a toda criatura. Como assim,
Senhor? Os animais não são criaturas? As árvores não são criatura? As pedras
não são criaturas? Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras? Hão-de pregar aos
troncos? Hão-de pregar aos animais? Sim: diz S. Gregório, depois de Santo
Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do mundo,
muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em
todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar
homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras
(Vieira, 1993, p. 73-74).
Vieira parte do gênero das criaturas (criaturas
racionais, sensitivas, vegetativas e insensíveis) e chega ao temperamento dos
homens. Como ele o faz? O discurso começa criando imagens, as quais partem de
elementos básicos (elementares) – gênero das criaturas – recapitulando da
memória conceitos correspondentes a percepções concretas (homem, animal,
planta, pedra). A seguir, age na potência cogitativa, reelaborando conceitos:
aproximando imagens passo a passo – imagens (re)criadas por palavras que trazem
carga afetiva. O homem degenerado (em) passa a ser criatura (perde a
origem, o ser). Homem “degenerado em ” não “é”, mas é “como se
fosse”, ou seja, o homem degenerado em pedra, por exemplo, não se torna
pedra, mas é “como se fosse” (forma intencional) pedra. Aqui se substitui a
ideia concreta de pedra (criatura/objeto), pela representação simbólica/afetiva
que ela nos traz (intencionalidade) – é a forma intencional presente na
fantasia sendo apreendida e ordenadamente na cogitativa. Através da
intencionalidade captada, é possível passar do plano concreto do sensível
(dureza, solidez, impenetrabilidade), para o universal abstrato
(insensibilidade). Insensibilidade é categoria que qualifica uma posição ética,
que apesar de remeter a “temperamento”, “personalidade” e, portanto, requerer
todo um processo de intelecção para definir o conceito, é acessível de forma
bem mais direta, por ser intencional, se temos que “é como pedra”. O ouvinte
pode não conseguir inteligir de forma direta, racionalizando, mas pode entender
a intenção que o discurso propõe, e é por isso que o inteligir passa através da
sensibilidade.
Cria-se assim, o conceito de homem-pedra, o qual é
reelaborado na potência cogitativa e devolvido à memória, remetendo-se então ao
tópico de “vontade endurecida”. Mais adiante no sermão o jesuíta recupera o
tópico e conceito preestabelecidos. Ao evocá-los
da memória trazem consigo todos os sentidos até então agregados, não sendo
necessário retoma-los. O ouvinte já pode completar por si os sentidos dos
conceitos apresentados:
Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda
são piores que as pedras. A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pode
abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga vis silicem, et eressae
sunt aquale largissimae. Inratum est cor Pharaonis (Vieira, 1993, p.
80).
Vieira (1994) coloca como exemplo, a figura bíblica do
Faraó e sua vontade endurecida para recapitular a ideia do homem-pedra. Retoma
o último conteúdo da memória (homem-pedra), dá o exemplo bíblico e por indução 14
o aplica a todo um gênero (tipo) de ouvinte. Mobilizando novamente a potência
cogitativa (através da capacidade intuitiva e indutiva do ouvinte) e
estabelecendo uma “nova” memória procura persuadir.
Outro trecho aponta modalidades de mobilização do dinamismo
psíquico, no entanto proposto de modo diferente. Parece-nos que o jesuíta busca
uma reordenação de imagens e não uma aproximação delas. Vieira, partindo da
parábola do semeador, busca dissociar o nome semeador com o ato de semear,
valorizando este último. A palavra é redefinida enquanto conceito, palavra e
ação são justapostas. Neste exemplo, a imagem evocada pela palavra deve ser uma
ação e não um conceito abstrato.
A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso
Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai.
Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce
exiit qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita
diferença: uma cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja; uma cousa é o
governador outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeado, e
outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o
pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são o que dão
o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa
nada; as acções, a vida, o exemplo , as obras, são as que convertem o mundo
(Vieira, 1993, p. 82).
Ao falar do pregador, de sua pessoa, novamente há uma
reorganização na potência cogitativa, porém, ainda ao fazer associações,
pretende-se dissociar elementos. Por exemplo, diferencia-se os termos: semeador-semear;
soldado-pelejar; governador-governar; pregador-pregar. Desta maneira, o foco não
está mais no nome (palavra) que remete a conceitos, mas parte de uma ação para
definir o conceito. É o ato de semear que diz o que é o semeador e não a ideia do
semeador. Obviamente, a ideia do semeador é a do que semeia, mas Vieira parece
querer causar certo “estranhamento”, quebrando o óbvio ao partir da ação – para
valorizá-la – e não do termo (nome). O nome sem a ação ficaria vazio, do mesmo
modo como a pregação (nome) sem o exemplo (ação ) fica vazio.
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Fonte:
Sandro Rodrigues Gontijo: “Imaginação e memória nos sermões de Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. Orientadora: Prof. Dra. Marina Massimi). Ribeirão Preto – SP, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br
Sandro Rodrigues Gontijo: “Imaginação e memória nos sermões de Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. Orientadora: Prof. Dra. Marina Massimi). Ribeirão Preto – SP, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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