19/03/2016

Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, do Padre Antônio Vieira

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Vieira Retoma a Tradição: A Alma

Em outra perspectiva, recompusemos o que Vieira apresenta em seus sermões em termos conceituais sobre imaginação e memória, t anto como sentidos internos, ou segundo outras acepções. Para tal procuramos recons truir, mesmo que de modo fragmentário, a concepção de alma, enquanto psique, presente nos sermões.

Em um de seus sermões quaresmais Vieira procurou definir para sua audiência o que vem a ser uma alma. O pregador em seu discurso utilizou-se do recurso da amplificação. Assim, indica causas, efeitos e circunstâncias atribuídos à presença ou ausência da alma em um corpo. Apontou as capacidades percebidas e atribuídas aos homens, como manifestação desta “entidade”. Deste m odo, Vieira definiu no “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma” de 1655:

Mas já que somos tão corporais e damos tanto crédito aos olhos, os mesmos olhos quero que nos digam e que confessem o que é a alma. Quereis ver o que é uma alma? Olhai, (diz Santo Agostinho), para um corpo sem alma. Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências? Foram-se com a alma, porque eram suas. A retórica, a poesia, a filosofia, as matemáticas, a teologia, a jurisprudência, aquelas razões tão fortes, aqueles discursos tão deduzidos, aquelas sentenças tão vivas, aqueles pensamentos tão sublimes, aqueles escritos humanos e divinos que admiramos, e excedem a admiração, tudo isto era a alma [...] Finalmente os mesmos vícios nossos nos dizem o que ela é. Uma cobiça que nunca se farta, uma soberba que sempre sobe, uma ambição que sempre aspira, um desejo que nunca aquieta, uma capacidade que todo o mundo a não enche, como a de Alexandre, uma altiveza como a de Adão, que não se contenta menos que com ser Deus. Tudo isto, que vemos com nossos olhos, é aquele espírito sublime, ardente, grande, imenso: a alma. Até a mesma formosura, que parece dote próprio do corpo, e tanto arrebata e cativa os sentidos humanos, aquela graça, aquela proporção , aquela suavidade de cor; aquele ar, aquele brio, aquela vida: que é tudo senão alma? (VIEIRA, 1993, Vol. I, p.805-807)

O orador propôs uma reflexão do que vem a ser a alma. A proposição parte do negativo, ou seja, de um corpo sem alma. A alma aqui fora definida por sua ausência: um corpo sem alma, sem vida. Num processo de encadeamento argumentativo, Antônio Vieira definiu a alma como aquela que anima e caracteriza um corpo, ao mesmo tempo em que sensibiliza os sentidos dos que veem (observam e percebem) tal corpo. Tal opção argumentativa pareceu-nos conter já a priori certa noção de alma. É claro para Vieira que os dados da percepção e a corporeidade são estruturantes no homem, tanto para este se relacionar com o mundo, como para ser persuadido. O próprio autor escreve em seu “Sermão Da Primeira Dominga da Quaresma” de 1653: “Nós os homens, como nos governamos pelos sentidos corporais, e a nossa alma é espiritual, não a conhecemos; e como não a conhecemos, não a estimamos, e por isso a damos tão barata” (VIIERA, 1993, Vol. I, p. 849). Ainda neste sentido acrescentou em seu “Sermão Da Quinta Terça-Feira da Quaresma”:

Os olhos do ídolo (diz Agostinho) ainda que não vêem, vê-os o idólatra; os olhos de Deus, ainda que vêem tudo, o idólatra não os vê, e é tal a propensão e inclinação humana a nos deixarmos levar só do que vemos, que antes quer o idólatra dedicar os seu s sacrifícios aos olhos visíveis do ídolo, porque ele os vê, ainda que eles o não vejam, do que aos olhos invisíveis de Deus, ainda que eles o vejam, porque ele os não vê (VIEIRA, 1993, Vol. II, p. 85).

Deste modo, apresentou uma conceituação de alma em seu sentido mais amplo enquanto princípio vital: a alma que anima um corpo. Esta noção seria da esfera do supra-sensível e só pode ser reconhecida e manifestada no corpo, mas não é redutível a este. Também indica uma “essência”, do humano. Essência no sentido de congregar e manifestar elementos constituintes e peculiares ao homem. Nela constituem-se as capacidades, virtudes e vícios, a racionalidade e o passional, e até mesmo uma estética vinculada ao corpóreo.

Neste ponto a tradição faz-se presente. Banhando-s e na sistematização aristotélico-tomista, a passagem do sermão resgata alguns pressupostos da acepção grega de alma. A alma aparece enquanto forma substancial, não podendo ser detectada pelos sentidos, mas apenas capitada pelo raciocínio filosófico do intelecto. A alma seria a enteléquia de um corpo, no sentido do ser em ato. Porém, sem ser definidora em última instância do ser humano, desconsiderando o corpo. Como já comentado, para Tomas de Aquino o homem é sínolo, constituído de corporeidade e espiritualidade. A prerrogativa de matéria e forma está presente também em Aristóteles, como indicam Reale e Antíseri (1990):

... Aristóteles remete-se à sua concepção metafísica hilemórfica da realidade, segundo a qual todas as coisas em geral são sínolos de matéria e forma, onde a matéria é potência e a forma é enteléquia ou ato. [...] Os corpos vivos tem vida mas não são vida. Assim, são substrato material e potencial do qual a alma é a forma' e ‘ato’. [...] Portanto, a alma é inteléquia primeira de um corpofísico que tem a vida em potência (Reale & Antisseri, 1990, p. 198) .

Sugerindo não haver solução de continuidade neste ponto entre aristotelismo e visão vieiriana, o pregador ao referir-se a um milagre atribuído a Nossa Senhora do Rosário (Sermão Vigésimo Sexto), fala de uma jovem que se manteve viva por tempo sobre-humano, após ter sido atacada por lobos e ter as entranhas dilaceradas. Vieira argumenta que a dificuldade de uma alma entrar em um corpo está na necessidade de intervenção divina para tal, e na facilidade da mesma em desvincular-se do corpo, detendo-se neste segundo aspecto. O fato de a jovem manter-se viva seria “um prodígio estupendo” (Vieira, 1993, Vol. IV, p. 1178), pois “ não só decomposta, mas perdida toda

a fábrica interna daquele corpo, sem coração, nem entranhas; a alma, contudo o não deixasse e continuasse a obrar na falta dos mesmos instrumentos” (Vieira, 1993, Vol. IV, p. 1178). A alma é ato primeiro do corpo natural organizado. Sem um corpo organizado, não há alma, vai-se a vida. A alma é princípio formal, ato, enteléquia de um corpo orgânico:

“E a razão desta segunda parte é, porque a alma se define: actus corporis organici potentia vitam habentis. E faltando ao corpo a organização e instrumentos vitais, natural e necessariamente deve deixar, e apartar-se do mesmo corpo, porque estando nela ociosa, não seria acto” ( Vieira, 1993, Vol. IV, p. 1179).


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Fonte:
Sandro Rodrigues Gontijo
: “Imaginação e memória nos sermões de Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de  Mestre em Ciências, Área: Psicologia. Orientadora: Prof. Dra. Marina Massimi). Ribeirão Preto – SP, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br


Nota:
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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