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Vieira Retoma a
Tradição: A Alma
Em outra perspectiva, recompusemos o que Vieira
apresenta em seus sermões em termos conceituais sobre imaginação e memória, t
anto como sentidos internos, ou segundo outras acepções. Para tal procuramos
recons truir, mesmo que de modo fragmentário, a concepção de alma, enquanto
psique, presente nos sermões.
Em um de seus sermões quaresmais Vieira procurou definir
para sua audiência o que vem a ser uma alma. O pregador em seu discurso
utilizou-se do recurso da amplificação. Assim, indica causas, efeitos e circunstâncias
atribuídos à presença ou ausência da alma em um corpo. Apontou as capacidades
percebidas e atribuídas aos homens, como manifestação desta “entidade”. Deste m
odo, Vieira definiu no “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma” de 1655:
Mas já que somos tão corporais e damos tanto crédito
aos olhos, os mesmos olhos quero que nos digam e que confessem o que é a alma.
Quereis ver o que é uma alma? Olhai, (diz Santo Agostinho), para um corpo sem
alma. Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências? Foram-se com a
alma, porque eram suas. A retórica, a poesia, a filosofia, as matemáticas, a
teologia, a jurisprudência, aquelas razões tão fortes, aqueles discursos tão deduzidos,
aquelas sentenças tão vivas, aqueles pensamentos tão sublimes, aqueles escritos
humanos e divinos que admiramos, e excedem a admiração, tudo isto era a alma
[...] Finalmente os mesmos vícios nossos nos dizem o que ela é. Uma cobiça que
nunca se farta, uma soberba que sempre sobe, uma ambição que sempre aspira, um
desejo que nunca aquieta, uma capacidade que todo o mundo a não enche, como a
de Alexandre, uma altiveza como a de Adão, que não se contenta menos que com
ser Deus. Tudo isto, que vemos com nossos olhos, é aquele espírito sublime,
ardente, grande, imenso: a alma. Até a mesma formosura, que parece dote próprio
do corpo, e tanto arrebata e cativa os sentidos humanos, aquela graça, aquela
proporção , aquela suavidade de cor; aquele ar, aquele brio,
aquela vida: que é tudo senão alma? (VIEIRA, 1993, Vol. I, p.805-807)
O orador propôs uma reflexão do que vem a ser a alma.
A proposição parte do negativo, ou seja, de um corpo sem alma. A alma aqui fora
definida por sua ausência: um corpo sem alma, sem vida. Num processo de
encadeamento argumentativo, Antônio Vieira definiu a alma como aquela que anima
e caracteriza um corpo, ao mesmo tempo em que sensibiliza os sentidos dos que
veem (observam e percebem) tal corpo. Tal opção argumentativa pareceu-nos
conter já a priori certa noção de alma. É claro para Vieira que os dados da
percepção e a corporeidade são estruturantes no homem, tanto para este se
relacionar com o mundo, como para ser persuadido. O próprio autor escreve em
seu “Sermão Da Primeira Dominga da Quaresma” de 1653: “Nós os homens, como nos
governamos pelos sentidos corporais, e a nossa alma é espiritual, não a
conhecemos; e como não a conhecemos, não a estimamos, e por isso a damos tão
barata” (VIIERA, 1993, Vol. I, p. 849). Ainda neste sentido acrescentou em seu
“Sermão Da Quinta Terça-Feira da Quaresma”:
Os olhos do ídolo (diz Agostinho) ainda que não vêem,
vê-os o idólatra; os olhos de Deus, ainda que vêem tudo, o idólatra não os vê,
e é tal a propensão e inclinação humana a nos deixarmos levar só do que vemos,
que antes quer o idólatra dedicar os seu s sacrifícios aos olhos visíveis do
ídolo, porque ele os vê, ainda que eles o não vejam, do que aos olhos
invisíveis de Deus, ainda que eles o vejam, porque ele os não vê (VIEIRA, 1993,
Vol. II, p. 85).
Deste modo, apresentou uma conceituação de alma em seu
sentido mais amplo enquanto princípio vital: a alma que anima um corpo. Esta
noção seria da esfera do supra-sensível e só pode ser reconhecida e manifestada
no corpo, mas não é redutível a este. Também indica uma “essência”, do humano.
Essência no sentido de congregar e manifestar elementos constituintes e
peculiares ao homem. Nela constituem-se as capacidades, virtudes e vícios, a
racionalidade e o passional, e até mesmo uma estética vinculada ao corpóreo.
Neste ponto a tradição faz-se presente. Banhando-s e
na sistematização aristotélico-tomista, a passagem do sermão resgata alguns
pressupostos da acepção grega de alma. A alma aparece enquanto forma
substancial, não podendo ser detectada pelos sentidos, mas apenas capitada pelo
raciocínio filosófico do intelecto. A alma seria a enteléquia de um corpo, no
sentido do ser em ato. Porém, sem ser definidora em última instância do ser
humano, desconsiderando o corpo. Como já comentado, para Tomas de Aquino o
homem é sínolo, constituído de corporeidade e espiritualidade. A prerrogativa de matéria e forma está presente também em Aristóteles,
como indicam Reale e Antíseri (1990):
... Aristóteles remete-se à sua concepção metafísica
hilemórfica da realidade, segundo a qual todas as coisas em geral são sínolos
de matéria e forma, onde a matéria é potência e a forma é enteléquia ou ato.
[...] Os corpos vivos tem vida mas não são vida. Assim, são substrato material
e potencial do qual a alma é a forma' e ‘ato’. [...] Portanto, a alma é
inteléquia primeira de um corpofísico que tem a vida em potência (Reale &
Antisseri, 1990, p. 198) .
Sugerindo não haver solução de continuidade neste ponto
entre aristotelismo e visão vieiriana, o pregador ao referir-se a um milagre
atribuído a Nossa Senhora do Rosário (Sermão Vigésimo Sexto), fala de uma jovem
que se manteve viva por tempo sobre-humano, após ter sido atacada por lobos e
ter as entranhas dilaceradas. Vieira argumenta que a dificuldade de uma alma entrar
em um corpo está na necessidade de intervenção divina para tal, e na facilidade
da mesma em desvincular-se do corpo, detendo-se neste segundo aspecto. O fato
de a jovem manter-se viva seria “um prodígio estupendo” (Vieira, 1993, Vol. IV,
p. 1178), pois “ não só decomposta, mas perdida toda
a fábrica interna daquele corpo, sem coração, nem
entranhas; a alma, contudo o não deixasse e continuasse a obrar na falta dos
mesmos instrumentos” (Vieira, 1993, Vol. IV, p. 1178). A alma é ato primeiro do
corpo natural organizado. Sem um corpo organizado, não há alma, vai-se a vida.
A alma é princípio formal, ato, enteléquia de um corpo orgânico:
“E a razão desta segunda parte é, porque a alma se
define: actus corporis organici potentia vitam habentis. E
faltando ao corpo a organização e instrumentos vitais, natural e necessariamente
deve deixar, e apartar-se do mesmo corpo, porque estando nela ociosa, não seria
acto” ( Vieira, 1993, Vol. IV, p. 1179).
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Fonte:
Sandro Rodrigues Gontijo: “Imaginação e memória nos sermões de Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. Orientadora: Prof. Dra. Marina Massimi). Ribeirão Preto – SP, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br
Fonte:
Sandro Rodrigues Gontijo: “Imaginação e memória nos sermões de Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. Orientadora: Prof. Dra. Marina Massimi). Ribeirão Preto – SP, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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