01/01/2016

Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, de Padre Antônio Vieira

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O objetivo prático de Vieira: a conservação do reino português

Em conformidade com os tópicos anteriores a esta seção, observa-se que o tema da conservação do reino português é uma constante nos mais variados escritos de Vieira. No mesmo período em que escrevia o Papel Forte, também escreveu uma carta ao Marquês de Niza, seu principal correspondente entre os anos de 1647 e 1648, período de sua segunda missão diplomática, na qual novamente se preocupa em manter a guerra contra Castela, sem prejudicar a construção futura do Quinto Império. Este escrito mostra um diálogo entre Vieira e este Marquês, que era embaixador português em Paris com a missão de ajudar Portugal na guerra contra Castela e seu intuito era tentar unir aliados (no caso a França) para ajudar na vitória portuguesa contra os espanhóis.

Neste período a França estava em guerra contra Castela e o Cardeal e primeiro-ministro francês Giulio Mazzarino pediu ajuda a Portugal contra seu principal inimigo. Mas Vieira logo observa a astúcia deste Cardeal, por ser a favor da continuação desta guerra por “amor” a Portugal, pedindo que este ponto de vista fosse anunciado por alguns países da Europa: “e nos mandava repetir este desengano em Lisboa, em Paris e em Munster, e agora, que a conveniência ou a força o reduz a continuar a guerra, quer-nos vender a liga, como se deixara de fazer a paz por nossa causa”.

Na visão do jesuíta fazer uma liga com a França naquele período implicava em prestar mais serviço a este país do que a Portugal, pois a França era mais poderosa, “por ser o seu intento conquistar e o nosso defender, por ter ele um só inimigo e inferior, e os nossos serem dois e ambos em seu gênero superiores, como é a Holanda por mar e Castela por terra”. Além disso, para Vieira, após a guerra, Castela faria paz somente com a França e não com o seu país, concluindo que era Portugal que necessitava dos socorros da França e não o contrário.

Após estas explanações, ele ainda aponta a falta de credibilidade da França, uma vez que ela também estava interessada em parte das terras dos portugueses e na liberdade de comercializar nos portos lusos (além de comercializar com Castela). Vieira mostra sua desconfiança em relação à França, pois temia que Portugal perdesse territórios conquistados com tanto esforço e com tamanhos gastos:

Do primeiro temos exemplos antigos, quando os franceses começaram a conquistar primeiro o Rio de Janeiro, depois o Maranhão, e ultimamente, em tempo do Cardeal Richelieu , tiveram em pensamento a ilha de S. Lourenço, de que S.M foi avisado; e do segundo há os modernos, da licença, que alguns mercadores pediram e alcançaram, para ir aos portos de Brasil e Angola. Mas nenhuma nem outra coisa parece razão que se conceda à França; porque, como havíamos de dar de graça o que à custa de tanto sangue e dinheiro estamos defendendo?

Após mostrar os perigos de uma união com a França, o jesuíta continua o seu raciocínio explicando em que termos poderia ocorrer esta liga contra Castela e Holanda, e quais conquistas seriam interessantes para o reino português. Pois, além de se preocupar com a defesa de Portugal, vislumbra oportunidades surgidas para a expansão e desenvolvimento de seu país. Apostava que o reino português poderia se engajar em uma empresa que o levasse novamente a uma posição de destaque mundial, uma vez que era a nação destinada a ser soberana sobre todas as outras de acordo com as suas profecias. Para isso, segundo Vieira, era necessário que Portugal tivesse preponderância sobre o comércio com as Índias, pois para ele “o poder que se mandar às Índias se deve encaminhar contra os mesmos e portos que se embarca e conduz à prata, assim do Peru como a de Nova Espanha”, conseguindo, no mínimo, tomar a frota e obter todo o comércio e proveitos que a Espanha recebe das Índias.

Desta forma, o jesuíta, que estava muito bem informado sobre o que ocorria neste comércio em direção às Índias, assim como quais os interesses de cada país nesta transação, explica de que modo ocorreriam estes fatos em favor do reino português. A navegação por estes mares seria fácil e não duraria mais de dois meses, na visão de Vieira. Para ida e vinda, estavam à disposição dos lusos os seus portos e suas ilhas. Para a manutenção da guerra seria possível enviar socorros de mantimentos do Maranhão e do Pará, com grande abundância e rapidez. Além disso, muitos dos moradores dos portos e cidades das Índias, e grande parte dos pilotos e marinheiros das frotas eram portugueses e com eles poder-se-ia tirar bastante proveito, tanto para as notícias, quanto para as empresas necessárias naquele momento.

Após explicar detalhadamente e com muita lucidez de que modo Portugal tiraria proveito deste comércio em relação às Índias e quais seriam as necessidades deste reino para alcançar estes objetivos, o jesuíta vai além e afirma que também era possível obter a conquista do Rio da Prata,

[...] de que antigamente recebíamos tão consideráveis proveitos pelo comércio, e se podem conseguir ainda maiores, se ajudados dos de S. Paulo marcharmos, como é muito fácil, pela terra dentro, e conquistarmos algumas cidades sem defesa, além das minas das quais elas e Castela se enriqueciam, cuja prata por aquele caminho era possível trazer por muito menos despesas.

Vieira encerra a sua explanação mostrando que se Portugal não seguir as propostas sugeridas por ele, a França poderia tirar proveito desta situação em benefício próprio, conquistando o Rio da Prata e deixando os lusos de mãos vazias. Além disso, aborda algumas das “tentações” da França acerca das conquistas portuguesas. Ele afirma isso com base no passado francês com relação às conquistas portuguesas no Brasil. Uma destas tentações seria a tomada do Rio de Janeiro, “ajudando-se a ambição de uma espécie de justiça, porque antigamente, quando conquistamos aquelas terras, tomamo-las aos índios e a franceses, que eles ainda não estavam em lugar do mesmo porto fortificados”.

A partir destas análises feitas por Vieira acerca de uma possível união com os franceses contra o principal inimigo português – Castela, com as devidas desconfianças com relação às ousadas intenções de conquistas da França, seria lícito afirmar que o jesuíta, ao propor os termos exatos de como ocorreria esta união e quais os melhores caminhos comerciais a serem seguidos pelos lusos, ele quer manter, proteger e prevenir o reino português de Castela, dos holandeses e de possíveis conquistas francesas e também mostrar a possibilidade de se conquistar territórios como o Rio da Prata, a fim de que Portugal pudesse ampliar sua influência comercial e voltar a acumular riquezas (como a prata, por exemplo) para investir em seu reino, que voltaria a crescer e poderia retornar à sua posição hegemônica no cenário mundial, conforme já previa em suas profecias acerca do Quinto Império português.

Vale ressaltar que os jesuítas em geral, e Vieira em particular, tiveram contato com a corte, em vários Estados, e a maioria deles se envolveu em governos, pelo menos na condição de conselheiros eventuais. No caso de Vieira, este escreveu para governantes e expressou visões de mundo acerca da política dos mesmos, sendo Sermão do Bom Ladrão e o Papel Forte exemplos disso, porém no primeiro o jesuíta se dirige a príncipes e governantes em geral, tendo um ponto de vista eminentemente moral, diferente do segundo em que se direciona especificamente ao rei D. João IV, de forma pragmática e com objetivos práticos, que permitissem uma paz duradoura com os holandeses, que ameaçavam o reino português no momento.

Vieira se destacou como um grande aconselhador de reis, príncipes e governantes em geral, sempre buscando a conservação do reino lusitano. Especificamente no Papel Forte, observa-se que ele queria muito mais do que a simples conservação do reino português, mas ambicionava uma ousada expansão territorial, à medida que ela fosse possível. Este conselho dado por Vieira ao rei português não é muito diferente dos conselhos dados por Maquiavel a príncipes, pois para ambos era mais fácil conquistar do que manter e, neste caso, pensava Vieira principalmente na conservação do reino português, pois para ele, era preciso primeiro garantir a existência e consistência deste reino, expandi-lo posteriormente seria mais simples.

Para corroborar o argumento descrito acima acerca da conservação do reino português, vale destacar o sermão de Santo Antônio, escrito por Vieira em 1642 e pregado na Igreja das Chagas de Lisboa, em período próximo da reunião das Cortes convocadas por D. João IV para tratar dos custeios da guerra contra Castela. Afirma “que os intentos de Castela, são recuperar o perdido; os intentos de Portugal são conservar o recuperado”. Em grande parte do sermão, o jesuíta compara o seu anseio de conservar o reino português, com as virtudes de Santo Antônio, dizendo que este santo é “conservador do que se pode perder”. Acrescenta as palavras ditas por Cristo aos seus apóstolos e a este santo: Vos estis sal terrae (Vós sois o sal da terra) que tratam novamente da conservação do reino português. O sal para Vieira é remédio da corrupção, mas é preservativo; “não remedeia o que se perdeu, mas conserva o que se pudera perder, que é o de que temos necessidade”. Assim, Cristo os chama de pescadores, para que todos os seus apóstolos pesquem por todo o mar do mundo, mas lembrando que eles são sal da terra, a fim de que não pequem e comam o que pescaram, mas que o conservem. Finalizando a argumentação, o jesuíta faz esta mesma analogia com o reino de Portugal, dizendo que “pescou Portugal o seu reino, Pescou Portugal a sua coroa; advirta agora Portugal que não pescou para comer, senão para conservar”. Este raciocínio remonta novamente a Maquiavel, pois como observado no Papel Forte, aqui segue a mesma idéia de que é mais fácil pescar do que manter.

Este sermão também trata dos tributos cobrados pelas cortes portuguesas, que, na visão de Vieira, deveriam ser modificados, uma vez que estes tributos não foram efetivos para a conservação reino. Ou seja, como os remédios foram ineficazes, era necessário “remediar os remédios”. Para isso o jesuíta recomenda que os tributos possam ser cobrados sem violência, de modo mais suave, pois como diz o próprio Cristo, “o meu jugo é suave, e o meu peso, leve” (Mt 11,30). Por isso há a necessidade de dividir esta cobrança, repartir estes impostos, pois a lei de Cristo deve ser igual para todos e não dá privilégios a ninguém. Pois para o jesuíta o maior jugo que pode ter um reino são os imoderados tributos. “Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos”. Desta forma sugere que no reino português haja igualdade na cobrança de impostos, sem privilégios (isenção de tributos) para nenhuma classe.

Para corroborar o seu argumento, Vieira volta a falar do sal, cuja matéria é formada por três elementos: o fogo, a água e o ar, que se uniram em uma diferente espécie e se converteram em sal. O elemento do fogo representa o estado eclesiástico “elemento mais levantado que todos, mais chegado ao céu e apartado à terra”, que é sustentado por todos os outros e a ninguém sustenta. O elemento do ar representa o estado da nobreza, por ser o elemento da respiração, “porque os fidalgos de Portugal foram o instrumento felicíssimo por que respiramos, devendo este reino eternamente à resolução de sua nobreza os alentos com que vive, os espíritos com que se sustenta”. Por último, o elemento da água, que representa o estado do povo, a massa que abastece os outros elementos. Segundo Vieira, estes são os três elementos de que se compõe a República, de modo que eles deixem de ser o que eram para se converter em uma espécie conservadora das coisas. Juntos, portanto, estes três elementos políticos “hão de deixar de ser o que são para se reduzirem unidos a um estado que mais convenha à conservação do reino”, consolidando deste modo o reino português.

Para que a união destes elementos atingisse à conservação do reino, era necessário que os três estados tivessem as mesmas obrigações, no referido caso, com relação ao pagamento de tributos (e não só o estado do povo). Para os eclesiásticos, sugere que temam a Deus, e busquem fazer a Tua vontade. Uma forma prática seria pagando corretamente os impostos, que devem ser considerados como uma dádiva e não como uma dívida (esta creditada aos seculares) confirmada nas próprias palavras de Cristo: “Pagai o de César a César, e o de Deus a Deus” (Mt 22,21). Da mesma forma mostra a importância da nobreza pagar os tributos (já que também era isenta no reino português) e novamente retorna ao exemplo de Cristo, que juntamente com os de sua casa pagava os impostos. Por que então a nobreza não os pagaria? Esta, em especial, cometeria uma grande pecado, caso faltasse à coroa com o ouro que dela recebia. O povo continuaria pagando os seus tributos, mas consciente de que os outros setores da sociedade também cumpririam esta obrigação.

Pode-se afirmar, portanto, que o objetivo central deste sermão é mostrar à corte portuguesa a necessidade de se conservar o reino de Portugal, e que uma ação decisiva neste sentido seria através de uma cobrança mais justa de tributos entre todos os estados do reino. O jesuíta insiste em que estes estados a paguem de forma equânime os impostos, fazendo analogias com as ordens de Cristo a seus apóstolos, que também pagavam tributos. Desta forma, haveria a união destes estados, a fim de que juntos estivessem em sintonia (assim como o fogo, a água e o ar) para o alcance de um objetivo maior, que é criar condições para a conservação do reino português, que passava por um período bastante conturbado e que precisa de mudanças. Este tipo de recurso ao exemplo de Cristo é também muito frequente no Sermão do Bom Ladrão, que analiso adiante.

O Sermão do Bom Ladrão foi pregado na igreja da Misericórdia de Lisboa em 1655, durante a breve estada de Vieira na Corte em busca de medidas que garantissem a condução dos resgates e governo dos índios pela Companhia de Jesus. Queria ele que este sermão pudesse atingir aos mais variados tipos de pessoas, inclusive aos reis e príncipes, que deveriam seguir o ensinamento do Rei supremo, que é o próprio Cristo, em uma ousada crítica à prática corrupta dos governantes deste período.

Um ponto importante ressaltado por Vieira neste escrito é com relação a uma antiga lei da Restituição, reservada aos penitentes que necessitavam quitar as suas dívidas. Segundo esta lei, o ladrão que quisesse ser perdoado de seus pecados, primeiro precisava restituir o que roubou se tivesse tal possibilidade. Este preceito era muito rigoroso no período e deveria ser seguido à risca, pois o ladrão que não restituísse o que tivesse roubado poderia perder a sua própria liberdade. Desta forma, o famoso e conhecido “bom ladrão” que estava junto à cruz de Cristo pôde se salvar tanto como o ladrão que tinha sido, mesmo sem ter com que restituir o que roubou, quanto como o cristão que começava a ser, mesmo sem o batismo. Como ladrão que tinha sido foi salvo por Cristo que derramou seu sangue na cruz, lhe suprindo também o Batismo. Por sua desnudez e pela sua impossibilidade, foi lhe suprida a restituição, podendo desta forma ter sido salvo.

Semelhante ao que ocorreu com São Dimas (o bom e pobre ladrão) foi a ação de Cristo com Zaqueu, um ladrão rico, que tinha muito a restituir, porém não podia Cristo lhe assegurar a salvação antes da devolução, por isso fez esta exigência ao penitente que atendeu ao pedido e restituiu tudo o que tinha mal adquirido em quatro dobros. O jesuíta insiste nestas comparações para advertir primeiramente os reis que a “salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se pode perdoar sem se restituir o roubado”.

O jesuíta enfatiza os mais variados tipos de ladrões, em uma hierarquia que define as suas obrigações em termos de restituição. Quanto mais sobe na hierarquia dos ladrões, mais grave é o seu crime, pois os príncipes e reis, que ocupam o topo, além de não poderem roubar, devem impedir que alguém o faça. Desta forma, mostra as mais variadas formas de furtos ocorridas entre reis, países, príncipes, desde os roubos maiores até aqueles considerados insignificantes. Porém fica evidente a sua intenção de mostrar não só o lado do ladrão que rouba, mas também a do encarregado de evitar que ele atinja o seu objetivo, permitindo que o mal aconteça. “Aquele que tem obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou”. Até mesmo príncipes que por sua culpa deixassem crescer os ladrões em seu reino, seriam obrigados à restituição, pois são responsáveis pela manutenção da ordem e justiça em seu território. Pois conforme observou São Tomás, os príncipes “estão obrigados à restituição, como os ladrões, e pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o dano com que ofendem a justiça pública, de que eles estão postos por defensores”.

Esta Lei da Restituição é natural e divina e por isso, segundo Vieira, deveria ser respeitada. A partir desta premissa, o jesuíta faz ponderações sobre a importância do ajuste da lei positiva à lei natural, e por sua vez à lei divina e eterna, afirmando que não ficam somente no campo da prédica moral, pois visam mostrar “que o mais moral e o mais de acordo com a Fé, não somente é o mais justo quanto o mais eficiente politicamente”. Esta postura coincide com a encontrada por Bireley, principalmente em autores jesuítas que, desde o século XVI (em oposição a Maquiavel), buscaram demonstrar a viabilidade de reinos comandados por príncipes efetivamente cristãos, que floresceriam como as profecias bíblicas que há tempos prediziam. Exemplo claro disso é a construção do Quinto Império português que Vieira insiste tanto em sua concretização, fato presente na maioria de seus escritos, e este sermão não foge à regra, mesmo que de forma implícita.

O respeito pela Lei da Restituição, com a qual a lei positiva deve estar em sintonia, se aplica a príncipes que, em muitos casos, usam de violência para com os seus súditos e exigem pagamentos contra a sua vontade. Mas, para o jesuíta, semelhante à argumentação feita por Maquiavel, se estes “príncipes tiram dos súditos o que segundo a justiça lhes é devido para a conservação do bem comum, ainda que executem com violência não é rapina ou roubo”. Esta conservação do bem comum seria o fim último do governante, que para atingi-lo, poderia se utilizar dos meios que julgasse adequados para alcançar este objetivo (os fins justificam os meios). Ao mesmo tempo em que tenta justificar a ação de alguns príncipes e reis, Vieira exemplifica dois reinos que foram castigados por Deus pelos seus crimes: o de Judá e o de Israel, um com o cativeiro dos assírios, e o outro com o dos babilônios. O motivo da punição foi que os príncipes destes reinos, “em vez de guardarem os povos como pastores, os roubavam como lobos”.

O jesuíta conclui o seu argumento afirmando a necessidade daquele que furtou de restituir muito mais do que fora roubado e “que nem os reis, nem os ladrões, nem os roubados se podem molestar da doutrina que preguei, porque a todos está bem”. Deste modo Vieira explica em quais termos sua doutrina se aplica em cada um destes casos por ele citados.

Está bem aos roubados, porque ficarão restituídos do que tinham perdido; está bem aos reis, porque sem perda, antes com o aumento de sua fazenda, desencarregarão suas almas. E, finalmente, os mesmos ladrões, que parecem os mais prejudicados, são os que mais interessam. Ou roubaram com intenção de restituir, ou não: se com intenção de restituir, isso é o que eu lhes digo, e que o façam a tempo. Se o fizeram sem essa intenção, fizeram logo conta de ir ao inferno e não podem estar tão cegos que não tenham por melhor ir ao Paraíso. Só lhes pode fazer medo haverem de ser despojados do que despojaram aos outros, mas assim como estes tiveram paciência por força, tenham-na eles com merecimento.

Portanto, é claro o objetivo do autor de alertar especialmente os reis e príncipes sobre a necessidade de assegurar para que não haja furtos em seus reinos e que também possam ser justos na restituição das pessoas que foram de certa forma injustiçadas ou até mesmo roubadas. Porém, não descarta a hipótese de que se o objetivo do rei for a conservação do reino, este pode até agir com violência em relação aos seus súditos, exigindo deles o necessário para atingir este objetivo. Conclui que a justiça de sua doutrina deveria ser seguida, fazendo com que especialmente o rei português pudesse escutá-lo para manter a ordem e a justiça em seu reino de modo a atingir a sua conservação.

Este objetivo de Vieira persiste em seus escritos, mesmo bem próximo do fim de sua vida, quando escreve em 1689 uma carta ao Conde de Ericeira, D. Luíz de Meneses, autor de Portugal restaurado (1679), que narra as tribulações vivenciadas por Portugal desde a tomada de poder por D. João IV, até 1668, ano da assinatura da paz com Castela. Nesta pormenorizada narrativa, Vieira só é citado uma vez e em poucas linhas. Isso parece incomodar o jesuíta, que nesta carta enfatiza toda a sua atuação diplomática em favor da conservação do reino português nos termos que lhe pareciam mais justos, repetindo, portanto, os seus objetivos ao longo da década de 1640, que se mantêm vivos até a sua velhice. Em suma, Vieira dá sugestões para a reconstrução do reino luso, de modo que sua profecia acerca do Quinto Império ainda pudesse se realizar.

Vieira inicia seu argumento mostrando que D. João IV não estava satisfeito com os avisos pouco coerentes dos embaixadores da França e da Holanda e desejou que o jesuíta o informasse do estado das coisas de Portugal com toda a “certeza, sinceridade e desengano, o que os embaixadores não faziam, querendo, com bom zelo, antes agradar do que entristecer, que era a moeda que então corria, tão falsa como perigosa”.

Deste modo rebate os seus críticos que afirmavam que seus negócios haviam desvanecido, esclarecendo de que forma a sua primeira proposta ao reino português traria imensos benefícios aos lusos.

Sua proposta era de novamente construir duas companhias de comércio nos moldes holandeses, uma oriental e outra ocidental,

[...] para que, sem empenho algum da real fazenda, por meio da primeira se conservasse o comércio da Índia, e por meio da segunda, o do Brasil, trazendo ambas em suas armadas, defendido dos holandeses, o que eles nos tomavam, e bastaria sustentar a guerra contra Castela.

O jesuíta vai além, afirmando que este negócio “não se desvaneceu, e somente tardou em se aceitar, até que a experiência desenganou aos ministros, que a princípio porventura o não capacitaram”. Mas a Companhia Ocidental teve muita eficácia e utilidade, trazendo ao Brasil os suprimentos necessários para sustentar a guerra contra Castela, não permitindo que esta voltasse a exercer domínio sobre o reino português. Além disso, esta empresa foi útil para restaurar Pernambuco e também para acudir com grandes cabedais as necessidades deste reino, abalado pela guerra.

A partir daí o jesuíta faz referências a diversos negócios e propostas feitas por ele e aceitas pelo rei português de muito bom grado. Por exemplo, no período em que a Holanda invadiu o Brasil (neste caso específico, a Bahia), ele fizera uma proposta que fora criticada pelos ministros como estando muito crua. Vieira logo responde se referindo a um diálogo entre ele e o rei, que o chama de profeta. Desta forma o jesuíta afirma “que meu intento era que, vindo as fragatas de Holanda tivesse S.M. duas armadas, uma que ficasse em Portugal, e outra que fosse socorrer Bahia”; e não se passaram nem seis meses, quando o rei o mandou chamar de “Carcavelos, onde estava convalescente, a Alcântara”.

Vieira faz questão de mostrar no escrito as palavras do rei proferidas a ele, especialmente quando o chama de profeta, enfatizando sua ação, o jesuíta insiste em mostrar aos ministros que o projeto que antes tinham como cru, era o que eles utilizaram naquele momento:

Sois profeta; ontem à noite chegou caravela da Bahia com que um padre da Companhia chamado Felipe Franco, e traz por novas ficar Sigismundo fortificado em Taparica. Que vos parece que façamos? Respondi: ‘O remédio, senhor, é muito fácil. Não disseram os ministros a V.M. que aquele negócio era muito cru? Pois os que então o acharam cru cozamno agora’. Era mandado chamar o Conselho de Estado; e, porque não havia de acabar senão de noite, disse S.M. que me recolhesse à quinta, e tornasse ao outro dia Tornei, e soube que todo o Conselho tinha representado a importância de ser socorrida a Bahia [...].

Outro projeto, de suma importância, incentivado pelo jesuíta para o reino português admitir, foi a entrega de Pernambuco aos holandeses no período em que este país invadiu parte do nordeste brasileiro. Vieira refuta a possibilidade de ser acusado de o negócio ter desvanecido, uma vez que esta campanha foi mandada por D. João IV a ele, que tinha por obrigação obedecer. A princípio, foi aceito pelo Conselho de Estado português, pela necessidade que havia a nação de manter a paz com a Holanda. Mas, após a chegada em Lisboa do sobrinho de Gaspar Dias com novas proposições e esperanças contrárias ao que em Holanda se tratava, ele, além de alvoroçar o povo, convenceu muitos conselheiros de Estado, a quem informava e dizia que se arrependessem do que tinham votado. O jesuíta lamenta sobre esta decisão dizendo que era uma “lástima que alguns deles soubessem tão pouco de Holanda e Pernambuco, que por ouvirem falar no Arrecife, diziam que tínhamos reduzidos os holandeses a um penhasco, dominando atualmente estes todas as costas do mar com dezessete fortalezas”.

Mas o rei de Portugal, sabendo da impossibilidade de se fazer guerra com os holandeses, mandou Vieira redigir um papel, explicando aos portugueses sobre os mais diversos motivos para a entrega de Pernambuco aos holandeses, apesar dos acontecimentos posteriores e inesperados não confirmarem esta sugestão.

Vieira conclui que os negócios enviados a ele pelo rei português eram muito diferentes do que se podia cuidar e poucos ministros sabiam do que realmente se tratava, ficando assim sujeitos a juízos e conjecturas errôneas. Mas na situação de muitos dos jesuítas, em geral, e de Vieira em particular, como consultor, aconselhador e confessor de reis, tal era a confiança depositada por D. João IV em seus negócios, que, segundo ele, não se desvaneceram. O rei continuou a encarregá-lo de negociações com vários países, como Paris, Roma, Holanda, acreditando mais em suas palavras do que a de muitos embaixadores e ministros para lidar com as pendências de seu reino. Aqui novamente detecto o empenho do jesuíta em oferecer ações pragmáticas de conservar o reino português, com o intento de realização de suas profecias acerca do Quinto Império. Especificamente nesta carta, Vieira tem a seu favor a confiança que D. João IV depositava em seu vigor e inteligência prática para lidar com os negócios do reino, o que sugere serem bem pensadas e prudentes as propostas de Vieira para com a sua nação neste período. Porém, como visto, elas não puderam se concretizar naquele momento, o que fará Vieira continuar a sua busca de realização do objetivo profético em torno do reino português.


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Fonte:
Leonardo Soares Barbosa: “O Quinto Império: profecia e pragmatismo nos escritos de padre Antônio Vieira”. (Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em História na área de concentração: Narrativas, Imagens e Sociabilidades, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Profª. Drª. Beatriz Helena Domingues). Juiz de For a, 2010.


Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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