02/01/2016

Sermão do Espírito Santo, de Padre Antônio Vieira


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Vieira e Aristóteles

O terceiro livro da Retórica de Aristóteles contempla o estudo do estilo, destacando três elementos fundamentais do estilo retórico: a metáfora, a antítese e o vigor. Os dois primeiros são considerados os mais importantes; este tópico fará uma análise de ambas as figuras de linguagem e de outros recursos estilísticos, traçando uma correspondência com o mesmo procedimento em Vieira. Ao final, apontaremos semelhanças entre a psicagogia e a retórica demonstrativa de Aristóteles e o discurso lógico-emocional de Vieira.

Sobre a antítese, diz Aristóteles o seguinte: “Quando o estilo apresenta esta forma, causa prazer, porque os contrários são fáceis de compreender, e mais ainda quando são postos uns ao lado dos outros. Esta forma assemelha-se também ao silogismo, pois o argumento peculiar à refutação baseia-se nos contrários.”

No famosíssimo Sermão da Sexagésima de Vieira, visualizemos um de seus mais conhecidos trechos antitéticos, nesse meta-sermão que discute sobre a arte de pregar:

Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça favor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está Branco, da outra há de estar Negro, se de uma parte está Dia, da outra há de estar Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra hão de dizer Sombra; se de uma parte dizem Desceu, da outra hão de dizer Subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todos hão de estar sempre em fronteira com o contrário?

Fica claro que Vieira condena o jogo de antíteses, o “xadrez de palavras” em favor de uma geometria estelar, em que as palavras devem ser como as estrelas, “muito distintas, e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto, e muito claro” . Apesar da colocação de Antônio Sérgio, citado em Coutinho, de que “António Vieira é um exemplar perfeito de Barroco conceptista que não é nada cultista” e da violenta repulsa nutrida pelo próprio Vieira quanto ao pregar culto, foi possível ao próprio Antônio Sérgio segmentar, conforme consta em Coutinho , em um estudo seu no qual admitiu a incidência fraca do cultismo em Vieira, quatro níveis de barroquismo cultista nos sermões do padre jesuíta: “1) extravagâncias do idioma; 2) superabundância de descrição alegórica; 3) excessos de metáforas, nas antíteses, nas hipérboles; 4) os jogos verbais. João Mendes procura resolver esse impasse colocando que

Vieira, que não é cultista no estilo, é-o, em ponto grande na concepção do discurso. Por outras palavras: o conceitismo é um cultismo desenvolvido. O que é, para o estilo, uma alusão rápida a um objecto distante, é, no sermão de Vieira, um parágrafo inteiro, alusivo à realidade que vai tratando.

Esta discussão, contudo, não é de interesse imediato e a ela voltaremos no capítulo 5. Com relação à antítese, concordaremos com Gerárd Genette quando ele diz que é a antítese a figura de linguagem por excelência da poética barroca, e é claro, por extensão, da literatura barroca como um todo. Para ele, tal expressividade atua no plano descritivo e visual das coisas, é o mundo sensível percebido pelo prisma das oposições. A relevância desta figura de linguagem tanto para a retórica grega clássica quanto para o Barroco, e para a retórica que ali se constituiu, é, dessa forma, mais um ponto de contato entre ambas as oratórias.

No trecho acima, bem se vê que Vieira aprendeu a lição do ritmo e da simetria ensinada pelos retores gregos, inclusive por Aristóteles. A respeito do ritmo, postula ele que “o discurso deve possuir ritmo, não metro; caso contrário, será poema. Mesmo assim esse ritmo não deve ser observado escrupulosamente; e esta condição será preenchida, se o ritmo não for além de certo grau”. Em um dos Sermões de Santo Antônio, Vieira parece abusar do preceito aristotélico, imprimindo tanta cadência e musicalidade no discurso que fica claro que tal efeito só poderia ser obtido às custas de uma escrupulosa metrificação. De fato, Afrânio Coutinho identifica nessa passagem “vários metros, do hexassílabo ao alexandrino”:

Dos animais terrestres/ o cão é tão doméstico,/ o cavalo tão sujeito,/ o boi tão serviçal,/ o bugio tão amigo, [...] o papagaio nos fala,/ o rouxinol nos canta,/ o açor nos ajuda, e nos recreia,/ e até as grandes aves de rapina/ encolhendo as unhas,/ reconhecem a mão de quem recebem/ o sustento. Os peixes pelo contrário/ lá se vivem nos seus mares, e rios,/ lá se mergulham nos seus pegos,/ lá se escondem nas suas grutas/ e não há nenhum tão grande que se fie do homem,/ nem tão pequeno que não fuja dele. [...] Cante-lhe aos homens o rouxinol,/ mas na sua gaiola;/ diga-lhe ditos o papagaio,/ mas na sua cadeia;/ vá com eles à caça o açor,/ mas nas suas pioses;/ faça-lhe bufonarias o bugio/, mas no seu cepo;/ contente-se o cão de lhe roer um osso,/ mas levado onde não quer pela trela;/ preze-se o boi de lhe chamarem formoso, ou fidalgo,/ mas com o jugo sobre a cerviz,/ puxando pelo arado, e pelo carro[...].

Ainda segundo Coutinho , também o uso sistemático de substantivos e verbos paralelamente é prescrição aristotélica, em que se percebe tanto nesse trecho como em outros a presença marcante da simetria, do paralelismo das estruturas frasais:


Salta o coração, bate o peito, mudam-se as cores, chamejam os olhos, desfazem-se os dentes, escuma a boca, morde-se a língua, arde a cólera, ferve o sangue,  fumegam os espíritos; os pés, as mãos, os braços, tudo é ira, tudo fogo, tudo veneno.

Tal estilo parece ser aquele que Aristóteles chama de implexo ou periódico, o qual ele define do seguinte modo:
 Esta forma de estilo é agradável e de compreensão fácil; é agradável, porque é contrária à forma indeterminada e também por que o ouvinte julga sempre reter alguma coisa por causa do caráter determinado do que lhe é proposto; pelo contrário, é desagradável nada prever e nada ver chegar a termo. Por outro lado, esta forma é fácil de compreender, porque facilmente se retém; a razão disso é que o estilo periódico tem sua harmonia, condição essencial para ser retido sem dificuldade. ...O estilo formado de membros é acabado, cortado, fácil de pronunciar de um só fôlego, não em suas diferentes divisões, como o estilo coordenado, mas no total.

Simetrias, geometrias, antíteses – o sentido da visão em destaque. Joel Neves, em seu Idéias filosóficas do barroco mineiro, diz que “[o] barroco vem privilegiar a visão como sentido intelectual, ou sentido abstrato” de tal forma que, mesmo onde tal sentido não esteja evidente, ele se manifesta sob a forma de movimento e dinamismo, pressupondo o visual. Pródigo em metáforas, o sermão de Vieira é justamente por isso pródigo em imagens, sem desobedecer ao mandamento aristotélico. Aristóteles valoriza de tal modo o emprego da metáfora que, conforme Plebe, chega a “sustentar que ela, longe de tornar a expressão mais obscura, contribui para a clareza do estilo [...]. Essa força expressiva, pela qual a metáfora obtém o efeito da clareza mais do que a própria palavra, provém da força da semelhança, do análogon”. Diz Aristóteles que a metáfora

[a]grada [...] se nos põe o objeto diante dos olhos, pois deve-se mostrar o que é, mais do que o que deve ser. Donde a necessidade de procurar estas três qualidades do estilo: a metáfora, a antítese, o caráter expressivo. Das quatro espécies de metáforas, apreciamos sobretudo as que se baseiam na analogia [...].[A metáfora] [...] faz as vezes de uma tela.

Vieira é inteiramente concordante com Aristóteles no que tange à importância da metáfora. Ao discorrer no Sermão da 1ª Sexta-feira da Quaresma sobre as razões de se manter uma crença inquebrantável nos mistérios da Fé, Vieira chega a equacionar que tal motivo (também chamado de objeto formal) decorre da autoridade da palavra de Deus, impondo-se sobre a razão humana: é porque Deus o disse. A percepção desse “objeto formal”, segundo Coutinho , era mediada pela “linguagem transfiguradora da metáfora – base de todo o conceito engenhoso”, de forma que a escolha de uma metáfora da qual brotariam alegorias iluminadoras era um procedimento cheio de riscos, sobre o qual Vieira presta contas no Sermão de São Pedro , de onde trouxemos os apontamentos que se seguem:

Suposto andarem tão válidas no púlpito, e tão bem recebidas do auditório as metáforas, mais por satisfazer ao uso, e gosto alheio, que por seguir o gênio, e ditame próprio, determinei na parte que me toca desta solenidade servir ao Príncipe dos Apóstolos também uma metáfora.

Em seu processo mental de rebusca, exemplificado no Sermão da Sexagésima , Vieira descreve seu tortuoso trajeto em que persegue imagem após imagem até o esgotamento das metáforas. Após coletar o que cada uma lhe oferece, a busca se interrompe por um instante:

Busquei-a primeiramente entre as pedras, por ser Pedro Pedra, e ocorreu-me o diamante: busquei-a entre as árvores, e ofereceu-me o cedro: busquei-a entre as aves, e levou-me os olhos a Águia: busquei-a entre os animais terrestres, e pôs-me diante o Leão: busquei-a entre os planetas, e todos me apontaram para o Sol: busquei-a entre os homens, e convidou-me Abraão: busquei-a entre os Anjos, e parei em Miguel. No diamante agradou-me o forte, no cedro o incorruptível, na Águia o sublime, no Leão o generoso, no Sol o excesso de Luz, em Abrão o patrimônio da Fé, em Miguel o selo da honra de Deus.

Perseverante, contudo, o orador jesuíta reenceta sua tarefa e cumpre seu propósito:

Desenganado pois de não achar em todos os tesouros da natureza alguma tão perfeita, de cujas propriedades pudesse formar as partes do meu panegírico; (que esta é a obrigação da metáfora) despedindo-me dela, e deste pensamento, recorro ao Evangelho para mudar de assunto, e que me sucedeu? [...] As mesmas palavras do tema me descobriram, e ensinaram a mais própria, a mais alta, a mais elegante, a mais nova metáfora, que eu não podia imaginar de S. Pedro. E qual é? Quase tenho medo de o dizer. Não é coisa alguma criada, senão o mesmo Autor e Criador de todos. Onde as grandezas de S. Pedro se não podem declarar por metáfora, como eu cuidava, ou se há, ou pode haver alguma metáfora de S. Pedro, e só Deus. Isso é o que há de pregar, e esta nova, e altíssima metáfora, que hei de prosseguir. Vamos ao Evangelho.

Agora, uma última imagem. Trata-se da metáfora do espelho/espelhamento, também presente no Sermão da Sexagésima , e reveladora, a nosso ver, de inusitados aspectos na obra de Vieira. A simetria tripartida dos argumentos, aponta Graça Paulino (38), garante “a eficácia na transmissão da mensagem”:

Fazer pouco fruto da palavra de Deus no mundo pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem ver a si mesmo são necessárias três cousas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho, e há mister olhos. Que cousa é a conversão de uma alma senão um homem dentro de si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessário luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e ouvinte; por qual deles havemos de entender que falta? Por parte do ouvinte, ou parte do pregador, ou por parte de Deus?

E agora, uma última comparação. A vertente da retórica que recebeu o nome de psicagogia nasceu a partir da distinção feita por Parmênides entre mundo da verdade e mundo da opinião. Nesse âmbito, é possível identificar uma linha retórica orientada para a contraparte irracional do homem via poder enfeitiçante da palavra e ciente da instabilidade, da ilusão do mundo da doxa – a psicagogia – e uma outra retórica voltada para o raciocínio científico e para a demonstração lógica do mundo da verdade. As primeiras escolas de retórica grega, sofísticas e pitagóricas, não atribuíam à psicagogia menos valor do que era atribuído à demonstração. É dessas águas que Aristóteles bebe para fundar uma retórica que contemple os dois discursos indistintamente, fundindo o estudo das “paixões” (páthe) com a técnica demonstrativa baseada nos entimemas. O interesse pelas “paixões” só acontece na fase recente de Aristóteles, que assume de uma vez por todas o potencial persuasivo da emoção. A respeito dessa nova investidura do orador, Plebe afirma que ele “deve possuir a capacidade de incitar paixões no ouvinte. Não basta que o orador se mostre numa dada atitude; é necessário que ele procure também tornar favorável à sua a postura emotiva do ouvinte”. Citando Aristóteles , temos: “As paixões são os meios pelos quais se fazem mudar os homens nos seus juízo e que têm por conseqüência o prazer e a dor, como, por exemplo, a cólera [orgé], a compaixão [eleos], o temor [phobos] e todas as outras paixões semelhantes e aquelas que lhe são contrárias”.

Uma única diferença separa Aristóteles e Vieira na ordem de primazia do lógico e do emocional: em Aristóteles, historicamente falando, a lógica vem primeiro e as “paixões” aparecem depois; em Vieira acontece o contrário, mas sem o ingrediente histórico: a emoção sempre esteve à frente, em alto relevo, apoiada por convincentíssimas concatenações. De resto, o propósito do incitamento das paixões é o mesmo em ambos.


Como é de seu estilo, Vieira usa de uma lógica persuasiva irretorquível e intrincada, cruzando referências do Velho e do Novo Testamento com o intuito de apoiar a tese que apresenta. Essas, todavia, não são características particulares de sua prosa, mas da literatura de toda uma época. Ao que já dissemos, acrescente-se toda a sensorialidade extravagante característica do Barroco e deixemos, mais uma vez, Laterza Filho falar por nós:

Dessa forma, talvez pudéssemos entender a literatura barroca (e, por extensão, também as outras manifestações artísticas da mesma época) como um “momento literário” em que o “lógico” servisse de apoio ao “afetivo” e ao “imaginativo”, postos em primeiro plano. Ademais, essa postura poderia ser entendida não apenas no nível da confecção da obra literária, ou de sua manifestação já acabada, mas também como uma maneira convencional de aproximação dessa mesma obra: uma espécie de pré-diposição fruitiva, convencionalmente estabelecida, que põe em relevo menos o lógico que o afetivo ou o imaginativo, direcionando, com isso, uma forma particular de compreensão.

Visto dessa forma,e levando-se em conta que o texto barroco alegoriza em si as emoções a serem infundidas em quem ouve, depreende-se daí que a evidenciação textual (e oral) do extrato afetivo e imaginativo procura ressonância destas mesmas disposições emocionais na platéia. Em outras palavras, apesar de estruturada na lógica formal, a pregação de Vieira nem sempre é dirigida à razão, mas à emoção. O bom sermão é menos um convite a um exercício intelectual do que a uma comoção do ouvinte. Tal qual o próprio Vieira, na conhecida prédica, esclarece, a verdadeira pregação

não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para confuso e atônito, sem saber de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto.


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Fonte:
Henrique Romaniello Passos: “Vieira e Bach: uma retórica do espelhamento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Literatura. Área de concentração: Teoria da Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova). Belo Horizonte, 2006. 

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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