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Vieira e Aristóteles
O terceiro livro da Retórica de Aristóteles
contempla o estudo do estilo, destacando três elementos fundamentais do estilo
retórico: a metáfora, a antítese e o vigor. Os dois primeiros são considerados
os mais importantes; este tópico fará uma análise de ambas as figuras de
linguagem e de outros recursos estilísticos, traçando uma correspondência com o
mesmo procedimento em Vieira. Ao final, apontaremos semelhanças entre a
psicagogia e a retórica demonstrativa de Aristóteles e o discurso
lógico-emocional de Vieira.
Sobre a antítese, diz Aristóteles o seguinte: “Quando
o estilo apresenta esta forma, causa prazer, porque os contrários são fáceis de
compreender, e mais ainda quando são postos uns ao lado dos outros. Esta forma
assemelha-se também ao silogismo, pois o argumento peculiar à refutação
baseia-se nos contrários.”
No famosíssimo Sermão da Sexagésima de Vieira,
visualizemos um de seus mais conhecidos trechos antitéticos, nesse meta-sermão
que discute sobre a arte de pregar:
Todas as
estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que
faça favor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez
de palavras. Se de uma parte está Branco, da outra há de estar Negro, se de uma
parte está Dia, da outra há de estar Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra
hão de dizer Sombra; se de uma parte dizem Desceu, da outra hão de dizer Subiu.
Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todos hão de
estar sempre em fronteira com o contrário?
Fica claro que Vieira condena o jogo de antíteses, o “xadrez de
palavras” em favor de uma geometria estelar, em que as palavras devem ser como as estrelas, “muito
distintas, e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito
distinto, e muito claro” . Apesar da colocação de Antônio Sérgio, citado em
Coutinho, de que “António Vieira é um exemplar perfeito de Barroco conceptista
que não é nada cultista” e da violenta repulsa nutrida pelo próprio Vieira
quanto ao pregar culto, foi possível ao próprio Antônio Sérgio segmentar,
conforme consta em Coutinho , em um estudo seu no qual admitiu a incidência
fraca do cultismo em Vieira, quatro níveis de barroquismo cultista nos sermões
do padre jesuíta: “1) extravagâncias do idioma; 2) superabundância de descrição
alegórica; 3) excessos de metáforas, nas antíteses, nas hipérboles; 4) os jogos
verbais. João Mendes procura resolver esse impasse colocando que
Vieira, que
não é cultista no estilo, é-o, em ponto grande na concepção do discurso. Por
outras palavras: o conceitismo é um cultismo desenvolvido. O que é, para o
estilo, uma alusão rápida a um objecto distante, é, no sermão de Vieira, um
parágrafo inteiro, alusivo à realidade que vai tratando.
Esta discussão, contudo, não é de interesse imediato
e a ela voltaremos no capítulo 5. Com relação à antítese, concordaremos com
Gerárd Genette quando ele diz que é a antítese a figura de linguagem por
excelência da poética barroca, e é claro, por extensão, da literatura barroca
como um todo. Para ele, tal expressividade atua no plano descritivo e visual das coisas, é o
mundo sensível percebido pelo prisma das oposições. A relevância desta figura
de linguagem tanto para a retórica grega clássica quanto para o Barroco, e para
a retórica que ali se constituiu, é, dessa forma, mais um ponto de contato
entre ambas as oratórias.
No trecho acima, bem se vê que Vieira aprendeu a
lição do ritmo e da simetria ensinada pelos retores gregos, inclusive por
Aristóteles. A respeito do ritmo, postula ele que “o discurso deve possuir
ritmo, não metro; caso contrário, será poema. Mesmo assim esse ritmo não deve
ser observado escrupulosamente; e esta condição será preenchida, se o ritmo não
for além de certo grau”. Em um dos Sermões de Santo Antônio, Vieira parece
abusar do preceito aristotélico, imprimindo tanta cadência e musicalidade no discurso que
fica claro que tal efeito só poderia ser obtido às custas de uma escrupulosa
metrificação. De fato, Afrânio Coutinho identifica nessa passagem “vários
metros, do hexassílabo ao alexandrino”:
Dos animais
terrestres/ o cão é tão doméstico,/ o cavalo tão sujeito,/ o boi tão serviçal,/
o bugio tão amigo, [...] o papagaio nos fala,/ o rouxinol nos canta,/ o açor nos
ajuda, e nos recreia,/ e até as grandes aves de rapina/ encolhendo as unhas,/
reconhecem a mão de quem recebem/ o sustento. Os peixes pelo contrário/ lá se
vivem nos seus mares, e rios,/ lá se mergulham nos seus pegos,/ lá se escondem
nas suas grutas/ e não há nenhum tão grande que se fie do homem,/ nem tão
pequeno que não fuja dele. [...] Cante-lhe aos homens o rouxinol,/ mas na sua
gaiola;/ diga-lhe ditos o papagaio,/ mas na sua cadeia;/ vá com eles à caça o
açor,/ mas nas suas pioses;/ faça-lhe bufonarias o bugio/, mas no seu cepo;/
contente-se o cão de lhe roer um osso,/ mas levado onde não quer pela trela;/
preze-se o boi de lhe chamarem formoso, ou fidalgo,/ mas com o jugo sobre a
cerviz,/ puxando pelo arado, e pelo carro[...].
Ainda segundo Coutinho , também o uso sistemático de
substantivos e verbos paralelamente é prescrição aristotélica, em que se
percebe tanto nesse trecho como
em outros a presença marcante da simetria, do paralelismo das estruturas
frasais:
Salta o
coração, bate o peito, mudam-se as cores, chamejam os olhos, desfazem-se os
dentes, escuma a boca, morde-se a língua, arde a cólera, ferve o sangue, fumegam os espíritos; os pés, as
mãos, os braços, tudo é ira, tudo fogo, tudo veneno.
Tal estilo parece ser aquele que Aristóteles chama de
implexo ou periódico, o qual ele define do seguinte modo:
Esta forma de estilo é agradável e de
compreensão fácil; é agradável, porque é contrária à forma indeterminada e
também por que o ouvinte julga sempre reter alguma coisa por causa do caráter
determinado do que lhe é proposto; pelo contrário, é desagradável nada prever e
nada ver chegar a termo. Por outro lado, esta forma é fácil de compreender,
porque facilmente se retém; a razão disso é que o estilo periódico tem sua
harmonia, condição essencial para ser retido sem dificuldade. ...O estilo
formado de membros é acabado, cortado, fácil de pronunciar de um só fôlego, não
em suas diferentes divisões, como o estilo coordenado, mas no total.
Simetrias, geometrias, antíteses – o sentido da visão em destaque. Joel
Neves, em seu Idéias filosóficas do barroco mineiro, diz que “[o]
barroco vem privilegiar a visão como
sentido intelectual, ou sentido abstrato” de tal forma que, mesmo onde tal
sentido não esteja evidente, ele se manifesta sob a forma de movimento e
dinamismo, pressupondo o visual. Pródigo em metáforas, o sermão de Vieira é
justamente por isso pródigo em imagens, sem desobedecer ao mandamento
aristotélico. Aristóteles valoriza de tal modo o emprego da metáfora que,
conforme Plebe, chega a “sustentar que ela, longe de tornar a expressão
mais obscura, contribui para a clareza do estilo [...]. Essa força expressiva,
pela qual a metáfora obtém o efeito da clareza mais do que a própria palavra,
provém da força da semelhança, do análogon”. Diz Aristóteles que a
metáfora
[a]grada [...] se nos põe o objeto
diante dos olhos, pois deve-se mostrar o que é, mais do que o que deve ser.
Donde a necessidade de procurar estas três qualidades do estilo: a metáfora, a
antítese, o caráter expressivo. Das quatro espécies de metáforas, apreciamos
sobretudo as que se baseiam na analogia [...].[A metáfora] [...] faz as vezes
de uma tela.
Vieira é inteiramente concordante com Aristóteles no que tange à
importância da metáfora. Ao discorrer no Sermão da 1ª Sexta-feira da
Quaresma sobre as razões de se manter uma crença inquebrantável nos
mistérios da Fé, Vieira chega a equacionar que tal motivo (também chamado de
objeto formal) decorre da autoridade da palavra de Deus, impondo-se sobre a
razão humana: é porque Deus o disse. A percepção desse “objeto formal”, segundo
Coutinho , era mediada pela “linguagem transfiguradora da metáfora – base de todo
o conceito engenhoso”, de forma que a escolha de uma metáfora da qual brotariam alegorias iluminadoras era um procedimento
cheio de riscos, sobre o qual Vieira presta contas no Sermão de São Pedro
, de onde trouxemos os apontamentos que se seguem:
Suposto
andarem tão válidas no púlpito, e tão bem recebidas do auditório as metáforas,
mais por satisfazer ao uso, e gosto alheio, que por seguir o gênio, e ditame
próprio, determinei na parte que me toca desta solenidade servir ao Príncipe
dos Apóstolos também uma metáfora.
Em seu processo mental de rebusca, exemplificado no Sermão
da Sexagésima , Vieira descreve seu tortuoso trajeto em que persegue imagem
após imagem até o esgotamento das metáforas. Após coletar o que cada uma lhe
oferece, a busca se interrompe por um instante:
Busquei-a
primeiramente entre as pedras, por ser Pedro Pedra, e ocorreu-me o diamante:
busquei-a entre as árvores, e ofereceu-me o cedro: busquei-a entre as aves, e
levou-me os olhos a Águia: busquei-a entre os animais terrestres, e pôs-me
diante o Leão: busquei-a entre os planetas, e todos me apontaram para o Sol: busquei-a
entre os homens, e convidou-me Abraão: busquei-a entre os Anjos, e parei em
Miguel. No diamante agradou-me o forte, no cedro o incorruptível, na Águia o
sublime, no Leão o generoso, no Sol o excesso de Luz, em Abrão o patrimônio da
Fé, em Miguel o selo da honra de Deus.
Perseverante,
contudo, o orador jesuíta reenceta sua tarefa e cumpre seu propósito:
Desenganado
pois de não achar em todos os tesouros da natureza alguma tão perfeita, de
cujas propriedades pudesse formar as partes do meu panegírico; (que esta é a
obrigação da metáfora) despedindo-me dela, e deste pensamento, recorro ao
Evangelho para mudar de assunto, e que me sucedeu? [...] As mesmas palavras do
tema me descobriram, e ensinaram a mais própria, a mais alta, a mais elegante, a
mais nova metáfora, que eu não podia imaginar de S. Pedro. E qual é? Quase
tenho medo de o dizer. Não é coisa alguma criada, senão o mesmo Autor e Criador
de todos. Onde as grandezas de S. Pedro se não podem declarar por metáfora,
como eu cuidava, ou se há, ou pode haver alguma metáfora de S. Pedro, e só
Deus. Isso é o que há de pregar, e esta nova, e altíssima metáfora, que hei de
prosseguir. Vamos ao Evangelho.
Agora, uma última imagem. Trata-se da metáfora do
espelho/espelhamento, também presente no Sermão da Sexagésima , e
reveladora, a nosso ver, de inusitados aspectos na obra de Vieira. A simetria
tripartida dos argumentos, aponta Graça Paulino (38), garante “a eficácia na
transmissão da mensagem”:
Fazer pouco
fruto da palavra de Deus no mundo pode proceder de um de três princípios: ou da
parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio
de um sermão há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a
doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento,
percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem ver a si
mesmo são necessárias três cousas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é
cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite,
não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho, e há
mister olhos. Que cousa é a conversão de uma alma senão um homem dentro de si,
e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessário luz, e
é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus
concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o
conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes
três concursos: de Deus, do pregador e ouvinte; por qual deles havemos de
entender que falta? Por parte do ouvinte, ou parte do pregador, ou por parte de
Deus?
E agora, uma última comparação. A vertente da
retórica que recebeu o nome de psicagogia nasceu a partir da distinção feita
por Parmênides entre mundo da verdade e mundo da opinião. Nesse âmbito, é
possível identificar uma linha retórica orientada para a contraparte irracional
do homem via poder enfeitiçante da palavra e ciente da instabilidade, da ilusão
do mundo da doxa – a psicagogia – e uma outra retórica voltada para o
raciocínio científico e para a demonstração lógica do mundo da verdade. As
primeiras escolas de retórica grega, sofísticas e pitagóricas, não atribuíam à
psicagogia menos valor do que era atribuído à demonstração. É dessas águas que
Aristóteles bebe para fundar uma retórica que contemple os dois discursos
indistintamente, fundindo o estudo das “paixões” (páthe) com a técnica
demonstrativa baseada nos entimemas. O interesse pelas “paixões” só acontece na
fase recente de Aristóteles, que assume de uma vez por todas o potencial
persuasivo da emoção. A respeito dessa nova investidura do orador, Plebe afirma
que ele “deve possuir a capacidade de incitar paixões no ouvinte. Não basta que
o orador se mostre numa dada atitude; é necessário que ele procure também
tornar favorável à sua a postura emotiva do ouvinte”. Citando Aristóteles ,
temos: “As paixões são os meios pelos quais se fazem mudar os homens nos seus
juízo e que têm por conseqüência o prazer e a dor, como, por exemplo, a cólera
[orgé], a compaixão [eleos], o temor [phobos] e todas as outras paixões
semelhantes e aquelas que lhe são contrárias”.
Uma única diferença separa Aristóteles e Vieira na ordem de primazia do
lógico e do emocional: em Aristóteles, historicamente falando, a lógica vem
primeiro e as “paixões” aparecem depois; em Vieira acontece o contrário, mas sem
o ingrediente histórico: a emoção sempre esteve à frente, em alto relevo,
apoiada por convincentíssimas concatenações. De resto, o propósito do
incitamento das paixões é o mesmo em ambos.
Como é de seu estilo, Vieira usa de uma lógica persuasiva irretorquível e intrincada, cruzando referências do Velho e do Novo Testamento com o intuito de apoiar a tese que apresenta. Essas, todavia, não são características particulares de sua prosa, mas da literatura de toda uma época. Ao que já dissemos, acrescente-se toda a sensorialidade extravagante característica do Barroco e deixemos, mais uma vez, Laterza Filho falar por nós:
Dessa forma, talvez pudéssemos entender a literatura barroca (e, por extensão, também as outras manifestações artísticas da mesma época) como um “momento literário” em que o “lógico” servisse de apoio ao “afetivo” e ao “imaginativo”, postos em primeiro plano. Ademais, essa postura poderia ser entendida não apenas no nível da confecção da obra literária, ou de sua manifestação já acabada, mas também como uma maneira convencional de aproximação dessa mesma obra: uma espécie de pré-diposição fruitiva, convencionalmente estabelecida, que põe em relevo menos o lógico que o afetivo ou o imaginativo, direcionando, com isso, uma forma particular de compreensão.
Visto dessa forma,e levando-se em conta que o texto barroco alegoriza em si as emoções a serem infundidas em quem ouve, depreende-se daí que a evidenciação textual (e oral) do extrato afetivo e imaginativo procura ressonância destas mesmas disposições emocionais na platéia. Em outras palavras, apesar de estruturada na lógica formal, a pregação de Vieira nem sempre é dirigida à razão, mas à emoção. O bom sermão é menos um convite a um exercício intelectual do que a uma comoção do ouvinte. Tal qual o próprio Vieira, na conhecida prédica, esclarece, a verdadeira pregação
não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para confuso e atônito, sem saber de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto.
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Fonte:
Henrique Romaniello Passos: “Vieira e Bach: uma retórica do espelhamento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Literatura. Área de concentração: Teoria da Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova). Belo Horizonte, 2006.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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