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Retórica
globalizada : O Sermão do Bom Ladrão, do Pe Antonio Vieira
O panorama
histórico e social, bem como literário, da época em que Vieira viveu,
permite-nos chegar a alguns pontos comuns, presentes em culturas de diferentes
períodos e regiões, de onde a motivação do tema que constitui a matéria deste
estudo. Algumas questões que afligem a sociedade de nossos dias tinham seus
sucedâneos no século em que viveu Vieira, que o atravessou quase que ponta a
ponta, de 1608 a
1697. Basicamente, as situações de conflito vicejavam aqui e ali, por
razões políticas, sociais e religiosas, com as quais Vieira devia se defrontar,
em sua condição de conselheiro e diplomata, enviado ao exterior para negociar
as causas de sua nação. Do conflito decorre, pois, a situação de negociação,
com os avanços e recuos que lhe são inerentes, uma vez que envolve concessões
das partes envolvidas.
Esses dois temas,
caros à Nova Retórica, serão alvo de nossas considerações no presente artigo.
Partimos da edição dos Sermões, organizada e comentada por Alcir Pécora,
em seu primeiro volume, no qual figura o Sermão do Bom Ladrão. Sabe-se
que o trabalho de interpretação filológica depende grandemente de uma boa
edição crítica e que os métodos estabelecidos para a sua elaboração têm se
tornado cada vez mais rigorosos e eficientes.
Vieira era zeloso
de seus textos e os revisava com freqüência, mesmo quando já publicados,
introduzindo alterações para futuras edições. O trabalho do filólogo faz-se
necessário, portanto, em todos os momentos da edição da obra de Vieira.
O uso da palavra era
por ele levado muito a sério, o que faz com que os jogos de palavras não sejam
meros jogos e diversões, mas um quebra-cabeças a inquietar o ouvinte/leitor e a
levá-lo à reflexão, tal como se tem no Sermão do Bom Ladrão :
“Alguns ministros de Sua Majestade não vem cá buscar o nosso bem, mas cá
vem buscar os nossos bens”.
Vem
cá vs cá vem, o nosso bem vs os
nossos bens. A oposição singular vs plural é aqui significativa,
opondo o concreto ao abstrato, assim como a ordem e tonicidade do advérbio “cá” e ainda a polissemia do verbo
“buscar”, equivalente a “promover”, no primeiro caso e a “apossar-se”, no
segundo. Todos esses recursos se conjugam no efeito de sentido resultante, de
onde a plurissignificação desencadeada pelo enunciado em questão, que exige um
certo malabarismo do ouvinte/leitor para captar esta proliferação de sentidos:
Não tem fim o furtar Com o fim do
governo
Esses traços estão
também ligados ao efeito-surpresa, quando joga com termos que se aparentam
foneticamente, tais como
Adão/ladrão e outros e que sugerem determinadas aproximações e
parentescos. Pelo recurso à etimologia, Vieira volta-se sobre as palavras,
sobre o seu suporte material, pondo em evidência o valor por ele dado às
palavras. Por outro lado, o recurso ao paradoxo evidencia as contradições e
introduz o ouvinte/leitor na decifração dos enigmas que constituem o emaranhado
da época.
Seu domínio do
latim e da língua vernácula era tal que, bem jovem ainda, deixou a cidade de Salvador , na Bahia , e foi
lecionar Retórica em Olinda/Pernambuco, um dos pólos de efervescência cultural
do Brasil colônia.
Os jogos de
linguagem barrocos encontram-se a partir do título do sermão, do Bom Ladrão
em que a adjetivação contrastante, própria do oxímoro, coloca o ouvinte/leitor
já numa atmosfera de indagação e de perplexidade. Haveria uma forma de
conciliar os contrários ? É bem notório que subjacente está a fómula já
consagrada do “bom samaritano” e outras semelhantes como “bom filho”, “boa mãe”
etc.
Nas Retóricas
de Ontem e de Hoje (org. MOSCA), aponta-se como uma das funções da retórica estimular a
polêmica, partindo da controvérsia , e a de exigir a presença de um
leitor/ouvinte também polêmico, inoculando a dúvida e também a reflexão crítica
(p. 49).
O título do sermão
confere, já de início, direção argumentativa ao texto, introduzindo a sutileza
vieiriana que imprimirá o tom a todo o sermão, a voz do texto, e conduzirá à
elaboração do eixo das idéias a serem comunicadas. Estabelece-se uma escala que
transita do execrável ao aceitável e que passará a servir de medida aos desvios
comportamentais da sociedade, nela incluindo os agentes governamentais,
apontados entre os primeiros, pelas aberrações cometidas. O fato de considerar o ladrão como parte da sociedade e de nela ver as
diversas condições de sua existência, atribuindo-lhe mesmo uma qualidade
positiva, “0 bom ladrão”, constitui por si só um instrumento de argumentação,
impedindo que se negue a sua existência, cabendo então demonstrar qual o mais
nocivo e prejudicial à coletividade.
Trata-se, pois, de
um discurso deliberativo, no sentido que lhe atribui a Antiga Retórica, em que
o Bem Comum era o alvo das propostas, voltado para o futuro, com base na
análise do presente. Não deixa, entretanto, de ser também um discurso
epidítico, por ser de ocasião, trata-se da rememoração da Sexta-feira Santa, e
igualmente por proceder à censura de comportamentos não elogiosos, mas tidos
como habituais na sociedade de então, quais sejam, as diversas modalidades de
furto, sobretudo as de cunho institucional, acobertadas que eram pelos
poderosos.
As situações de
conflito e de negociação, a que nos referimos, são enfrentadas por Vieira,
favorecidas pelo seu caráter multifacetário, que lhe possibilitava ir além de
suas funções como sacerdote e missionário, fazendo de seu discurso um campo
político dos mais férteis. Essas atribuições o levavam a reivindicações
conflituosas e ao confronto de posições, nem sempre aceitas com tranqüilidade.
Havia, pois, que sustentar uma argumentação cerrada com os opositores,
no esforço de conduzi-los às mudanças necessárias e que ele vislumbrava
com sabedoria. Tomamos aqui, tal como temos feito em outros estudos, a
argumentação como sendo uma ação pelo discurso, na intenção de mudança
ou tão somente de reforço (retórica de manutenção), vale dizer, “provocar ou
aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao
assentimento”, segundo a definição do Tratado da Argumentação, de
Perelman e Olbrechts-Tyteca (T.A., p.04).
Nos seus textos da
obra conhecida como profética, O Quinto Império do Mundo, História do
Futuro, Clavis Prophetarum, Apologia das Coisas Profetizadas, na realidade,
o que Vieira fazia eram prospecções decorrentes do exame do panorama que
tinha diante dos olhos e que era por ele vivenciado em seus contatos políticos
dentro e fora do país e a partir do conhecimento que tinha de seu auditório,
também variado em sua composição, e que cabia abranger com a sua oratória
polivalente. No Tratado da Argumentação, o auditório é definido como “o conjunto daqueles
que o orador quer influenciar com sua argumentação” (p. 22), sendo em função dele que as técnicas
discursivas são mobilizadas.
Tão hábil era
Vieira que modulava o seu discurso tendo em vista as várias porções da
sociedade que tinha diante de si em suas falas e que se viam nelas concernidas
de uma ou de outra maneira: monarcas, nobres, senhores,
burocratas/administradores, religiosos, escravos negros, índios, colonizadores
e colonizados. Nada escapava ao seu modo abrangente de encarar os problemas.
A função do
Estado, tão discutida em nossos dias, quanto à maior ou menor participação
deste na regulação dos mecanismos sociais e econômicos, constitui o foco do Sermão
do Bom Ladrão. É a instituição política que se vê imputada de males
coletivos, em grande escala, o que faz com que “bom ladrão” soe como um eufemismo. O
argumento básico utilizado é o pragmático ou ad consequentiam, definido como “aquele que permite
apreciar um ato ou acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou
desfavoráveis” (T.A.p. 303). De fato, para apreciar um acontecimento, tomado
aqui em sentido amplo, há que relacioná-lo aos seus efeitos, daí passar-se ao
vínculo causal, que se estabelece nas ligações de sucessão. Pode-se perceber a
importância deste tipo de argumento, entre os demais, o que faz com que muitas
vezes ele venha a prevalecer, desde que haja um acordo quanto aos juízos
de valor implicados. Assim sendo, o argumento pragmático permite apreciar
alguma coisa, consoante as suas conseqüências presentes ou futuras, o que o
liga diretamente à ação e, em havendo um acordo pelo senso comum, não requer
muita justificação, constituindo um ponto de partida. Trata-se, na realidade,
de “diminuir as distâncias entre os sujeitos envolvidos”, na perspectiva de
Michel Meyer, do Centre Européen pour l’étude de l’Argumentation (Bruxelas),
constituindo as diferenças entre eles o espaço tensivo em que a retórica irá
atuar no esforço de um melhor entendimento.
[…]
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Fonte:
Lineide Salvador Mosca (FFLCH/USP): “Retórica globalizada : O Sermão do Bom Ladrão, do Pe Antonio Vieira”. Disponível em: http://gerar-usp.org/
Lineide Salvador Mosca (FFLCH/USP): “Retórica globalizada : O Sermão do Bom Ladrão, do Pe Antonio Vieira”. Disponível em: http://gerar-usp.org/
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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