02/01/2016

Sermão do Bom Ladrão, de Padre Antônio Vieira

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Retórica globalizada : O Sermão do Bom Ladrão, do Pe Antonio Vieira

O panorama histórico e social, bem como literário, da época em que Vieira viveu, permite-nos chegar a alguns pontos comuns, presentes em culturas de diferentes períodos e regiões, de onde a motivação do tema que constitui a matéria deste estudo. Algumas questões que afligem a sociedade de nossos dias tinham seus sucedâneos no século em que viveu Vieira, que o atravessou quase que ponta a ponta, de 1608 a 1697. Basicamente, as situações de conflito vicejavam aqui e ali, por razões políticas, sociais e religiosas, com as quais Vieira devia se defrontar, em sua condição de conselheiro e diplomata, enviado ao exterior para negociar as causas de sua nação. Do conflito decorre, pois, a situação de negociação, com os avanços e recuos que lhe são inerentes, uma vez que envolve concessões das partes envolvidas.

Esses dois temas, caros à Nova Retórica, serão alvo de nossas considerações no presente artigo. Partimos da edição dos Sermões, organizada e comentada por Alcir Pécora, em seu primeiro volume, no qual figura o Sermão do Bom Ladrão. Sabe-se que o trabalho de interpretação filológica depende grandemente de uma boa edição crítica e que os métodos estabelecidos para a sua elaboração têm se tornado cada vez mais rigorosos e eficientes.

Vieira era zeloso de seus textos e os revisava com freqüência, mesmo quando já publicados, introduzindo alterações para futuras edições. O trabalho do filólogo faz-se necessário, portanto, em todos os momentos da edição da obra de Vieira.

O uso da palavra era por ele levado muito a sério, o que faz com que os jogos de palavras não sejam meros jogos e diversões, mas um quebra-cabeças a inquietar o ouvinte/leitor e a levá-lo à reflexão, tal como se tem no Sermão do Bom Ladrão : “Alguns ministros de Sua Majestade não vem cá buscar o nosso bem, mas cá vem buscar os nossos bens”.

Vem cá vs cá vem, o nosso bem vs os nossos bens. A oposição singular vs plural é aqui significativa, opondo o concreto ao abstrato, assim como a ordem e tonicidade do advérbio “cá” e ainda a polissemia do verbo “buscar”, equivalente a “promover”, no primeiro caso e a “apossar-se”, no segundo. Todos esses recursos se conjugam no efeito de sentido resultante, de onde a plurissignificação desencadeada pelo enunciado em questão, que exige um certo malabarismo do ouvinte/leitor para captar esta proliferação de sentidos:

Não tem fim o furtar Com o fim do governo

Esses traços estão também ligados ao efeito-surpresa, quando joga com termos que se aparentam foneticamente, tais como Adão/ladrão e outros e que sugerem determinadas aproximações e parentescos. Pelo recurso à etimologia, Vieira volta-se sobre as palavras, sobre o seu suporte material, pondo em evidência o valor por ele dado às palavras. Por outro lado, o recurso ao paradoxo evidencia as contradições e introduz o ouvinte/leitor na decifração dos enigmas que constituem o emaranhado da época.

Seu domínio do latim e da língua vernácula era tal que, bem jovem ainda, deixou a cidade de Salvador, na Bahia, e foi lecionar Retórica em Olinda/Pernambuco, um dos pólos de efervescência cultural do Brasil colônia.

Os jogos de linguagem barrocos encontram-se a partir do título do sermão, do Bom Ladrão em que a adjetivação contrastante, própria do oxímoro, coloca o ouvinte/leitor já numa atmosfera de indagação e de perplexidade. Haveria uma forma de conciliar os contrários ? É bem notório que subjacente está a fómula já consagrada do “bom samaritano” e outras semelhantes como “bom filho”, “boa mãe” etc.

Nas Retóricas de Ontem e de Hoje (org. MOSCA), aponta-se como uma das funções da retórica estimular a polêmica, partindo da controvérsia , e a de exigir a presença de um leitor/ouvinte também polêmico, inoculando a dúvida e também a reflexão crítica (p. 49).

O título do sermão confere, já de início, direção argumentativa ao texto, introduzindo a sutileza vieiriana que imprimirá o tom a todo o sermão, a voz do texto, e conduzirá à elaboração do eixo das idéias a serem comunicadas. Estabelece-se uma escala que transita do execrável ao aceitável e que passará a servir de medida aos desvios comportamentais da sociedade, nela incluindo os agentes governamentais, apontados entre os primeiros, pelas aberrações cometidas. O fato de considerar o ladrão como parte da sociedade e de nela ver as diversas condições de sua existência, atribuindo-lhe mesmo uma qualidade positiva, “0 bom ladrão”, constitui por si só um instrumento de argumentação, impedindo que se negue a sua existência, cabendo então demonstrar qual o mais nocivo e prejudicial à coletividade.

Trata-se, pois, de um discurso deliberativo, no sentido que lhe atribui a Antiga Retórica, em que o Bem Comum era o alvo das propostas, voltado para o futuro, com base na análise do presente. Não deixa, entretanto, de ser também um discurso epidítico, por ser de ocasião, trata-se da rememoração da Sexta-feira Santa, e igualmente por proceder à censura de comportamentos não elogiosos, mas tidos como habituais na sociedade de então, quais sejam, as diversas modalidades de furto, sobretudo as de cunho institucional, acobertadas que eram pelos poderosos.

As situações de conflito e de negociação, a que nos referimos, são enfrentadas por Vieira, favorecidas pelo seu caráter multifacetário, que lhe possibilitava ir além de suas funções como sacerdote e missionário, fazendo de seu discurso um campo político dos mais férteis. Essas atribuições o levavam a reivindicações conflituosas e ao confronto de posições, nem sempre aceitas com tranqüilidade. Havia, pois, que sustentar uma argumentação cerrada com os opositores, no esforço de conduzi-los às mudanças necessárias e que ele vislumbrava com sabedoria. Tomamos aqui, tal como temos feito em outros estudos, a argumentação como sendo uma ação pelo discurso, na intenção de mudança ou tão somente de reforço (retórica de manutenção), vale dizer, “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”, segundo a definição do Tratado da Argumentação, de Perelman e Olbrechts-Tyteca (T.A., p.04).

Nos seus textos da obra conhecida como profética, O Quinto Império do Mundo, História do Futuro, Clavis Prophetarum, Apologia das Coisas Profetizadas, na realidade, o que Vieira fazia eram prospecções decorrentes do exame do panorama que tinha diante dos olhos e que era por ele vivenciado em seus contatos políticos dentro e fora do país e a partir do conhecimento que tinha de seu auditório, também variado em sua composição, e que cabia abranger com a sua oratória polivalente. No Tratado da Argumentação, o auditório é definido como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (p. 22), sendo em função dele que as técnicas discursivas são mobilizadas.

Tão hábil era Vieira que modulava o seu discurso tendo em vista as várias porções da sociedade que tinha diante de si em suas falas e que se viam nelas concernidas de uma ou de outra maneira: monarcas, nobres, senhores, burocratas/administradores, religiosos, escravos negros, índios, colonizadores e colonizados. Nada escapava ao seu modo abrangente de encarar os problemas.

A função do Estado, tão discutida em nossos dias, quanto à maior ou menor participação deste na regulação dos mecanismos sociais e econômicos, constitui o foco do Sermão do Bom Ladrão. É a instituição política que se vê imputada de males coletivos, em grande escala, o que faz com que “bom ladrão” soe como um eufemismo. O argumento básico utilizado é o pragmático ou ad consequentiam, definido como “aquele que permite apreciar um ato ou acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis” (T.A.p. 303). De fato, para apreciar um acontecimento, tomado aqui em sentido amplo, há que relacioná-lo aos seus efeitos, daí passar-se ao vínculo causal, que se estabelece nas ligações de sucessão. Pode-se perceber a importância deste tipo de argumento, entre os demais, o que faz com que muitas vezes ele venha a prevalecer, desde que haja um acordo quanto aos juízos de valor implicados. Assim sendo, o argumento pragmático permite apreciar alguma coisa, consoante as suas conseqüências presentes ou futuras, o que o liga diretamente à ação e, em havendo um acordo pelo senso comum, não requer muita justificação, constituindo um ponto de partida. Trata-se, na realidade, de “diminuir as distâncias entre os sujeitos envolvidos”, na perspectiva de Michel Meyer, do Centre Européen pour l’étude de l’Argumentation (Bruxelas), constituindo as diferenças entre eles o espaço tensivo em que a retórica irá atuar no esforço de um melhor entendimento.

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Fonte:
Lineide Salvador Mosca (FFLCH/USP): “Retórica globalizada : O Sermão do Bom Ladrão, do Pe Antonio Vieira
”. Disponível em: http://gerar-usp.org/


Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. 

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