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Sermão de Santo Antonio
aos Peixes
O
Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado por Vieira em 1654 na Igreja de
São Luiz do Maranhão. O seu título deve-se ao fato de ter sido pronunciado no
dia da festa de Santo Antônio de Pádua (1195-1231), padre e doutor da igreja e
ao seu caráter claramente alegórico. Como
afirma o próprio Vieira afirma “esse sermão (que é todo alegórico) pregou o
Autor três dias antes de embarcar ocultamente para o reino” (VIEIRA: 2003, p.
317).
Esse é um dos mais criativos e fortes sermões de Vieira que foi pregado
no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios. Seu público era
composto Vieira
irá associar sua situação à vida do santo franciscano português.
Fernando de Bulhões y Taveira de Azevedo, nasceu em 1195, na cidade de
Lisboa, de família guerreira, descendente dos cruzados, tornou-se frade
franciscano, recebendo o nome de Antonio. Destacou-se como
eximiu pregador, teólogo e combatente das “heresias” em toda a Europa,
especialmente na cidade de Pádua, na Itália (LODI : 2001). Aproveitando-se de todas essas
semelhanças, em especial a de ser Antonio um “santo português”, Vieira ira
tomar uma de suas lendas hagiográficas como
mote para elaborar uma fina crítica aos costumes da colônia:
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges,
que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de
arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar
contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida (...) Pois que fez?
Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as
praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a
altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes.
Tomando por base o texto do Evangelho do Dia (Mateus, 5, 13): Vos
estis sal terrae (“Vos sois o sal da terra”) Vieira divide o sermão
em seis capítulos em que são feitos os louvores e as qualidades dos
peixes da colônia. O capítulo primeiro trata do exórdio; os capítulos II ao V a
confirmação e o capitulo VI a peroração.
Na abertura do sermão, Vieira, ao interpretar o
Evangelho, introduz a sua célebre pergunta: quais as causas da ineficácia dos
sermões? Relaciona a resposta ao texto bíblico e explica qual sua relação com a
festa do dia. Como um bom conceptista, sua argumentação apóia-se no paralelismo
sintático, na repetição anafórica das alternativas que constroem o núcleo
central do seu raciocínio: “Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não
se deixa salgar” (p. 317). Introduz a tese que “nas festas dos Santos
é melhor pregar como
eles, que pregar deles” (p. 318). Vieira procura, usando dessa alegoria,
reduzir o máximo possível a repetência inicial de seu auditório:
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao
menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só
cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não
há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária que já pelo costume quase se não
sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu e Inferno: e assim será menos
triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre
à lembrança destes dois fins (...) Isto suposto, quero hoje, à imitação de
Santo António, voltar- me da terra ao mar, e já que os homens se não
aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os
demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.
Segundo ainda o simbolismo do sal, que possui segundo
o Evangelho duas propriedades (conservar e preservar da corrupção), Vieira
dividiu o sermão igualmente em duas partes: os louvores dos peixes e os
defeitos dos peixes:
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho
do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se
experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas
mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter
as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o
bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que
isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar (...)
Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso
sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo
repreender-vos- ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações
do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de
mortos.
A maior das qualidades dos peixes é a obediência, ou
seja, o ato de ouvir atentamente o pregador e a mensagem do sermão,
Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o
verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela
obediência com que, chamados, acudistes todos pelas honra de vosso Criador e
Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouviste a palavra de Deus
da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e
grande afronta e confusão para os homens!
Entre as qualidades particulares dos peixes ele destaca as observadas na
rêmula (determinação para atingir seus objetivos), o torpedo (piedade),
quatro-olhos (prudência). Mas é na análise dos defeitos dos peixes que o sermão
se aprofunda. Entre os principais defeitos dois são destacados pelo jesuíta: os
peixes comem-se uns aos outros e são ignorantes e cegos. Na seqüência, o
pregador seleciona ainda quatro peixes e põe em destaque os seus defeitos. De
forma que os roncadores personificam a arrogância; os pegadores, a servidão ou
o parasitismo; os voadores, a ambição e o polvo a traição. Vejamos como isso se sucede no
texto:
A primeira coisa que chama a atenção ao lermos atentamente esse sermão é
a oposição entre duas formas de existência: a dos peixes (natural e boa) e a
dos homens (social e perversa). Assim, por exemplo, os peixes ouvem, mas não
falam; os homens falam muito e ouvem pouco. Os homens recusaram ouvir a palavra
de Deus e os peixes acorreram todos. Todos os animais se podem domesticar, os
peixes vivem em liberdade. O pregador nos leva a uma conclusão, repetida de
múltiplas formas e vezes: quanto mais longe dos homens, melhor. As qualidades
dos peixes derivam deles serem eles mesmos e os seus defeitos de imitarem os
mal feitos humano. Portanto o “estado de natureza” dos peixes é melhor que a
“civilização dos homens”,
(...) Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os
animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão
doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão
lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos
animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos
fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes
aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o
sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se
mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão
grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores
comumente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou
demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes
louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza,
era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato
e familiaridade com eles, Deus vos livre!
Percebe-se que a primeira das características
encontradas no mundo dos peixes é a autonomia “lá se mergulham nos seus
pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se
fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele”, seguida pela liberdade:
Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no
muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol,
mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à
caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu
cepo; contente- se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela
trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre
a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar
freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe
comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com
grades de ferro.
Impossível não associar essas metáforas aos conceitos de Natureza
e Bom selvagem encontrados no “pai da pedagogia moderna”: Jean
Jacques Rousseau (1712-1778). Diga-se de passagem, que havia um elemento
inegavelmente comum aos dois educadores. Para
ambos, educação e política estavam intimamente ligadas. Em Rousseau “uma é o
pressuposto e o complemento da outra, e juntas tornam possível a reforma
integral do homem e da sociedade, reconduzindo-a por vias novas – para a
recuperação da condição natural, ou seja, por vias totalmente artificiais e não
ingênuas, ativadas através de um radical esforço racional” (CAMBI, 1999, 343).
Além disso, ambos compartilham de belas e fortes
“metanarrativas”: um deseja a redenção da humanidade, por meio da criação de um
mundo sem escravidão ou violência, representado pelo Quinto Império; outro
salvar o homem do mal, levando-o a se reencontrar com a liberdade e a natureza.
Ao seu modo procuravam responder as exigências que a descoberta havia causado
no próprio Ocidente. É nesse contexto de descoberta do Outro que surge o mito do bom selvagem,
aliás, compartilhado por outros autores, por exemplo:
A percepção que Las Casas tem dos índios não é mais nuançada do que a de
Colombo, no tempo em que este acreditava no “bom selvagem”, e Las Casas quase
admite que projeta sobre eles seus ideal ; “os lucayos (...) viviam realmente
como a gente da Idade do Ouro, uma vida que poetas e historiadores tanto
louvavam”, escreve, ou ainda, a propósito de um Índio: “Tinha impressão de ver
nele nosso pai Adão, no tempo em que viva no estado da Inocência”(TODOROV: 20003, p. 236).
Escrito
entre 1753 e 1754, o Emilio, ou da educação, irá propor uma pedagogia do
“retorno à natureza” na busca por recriar a bondade inerente ao ser humano que
havia sido perdida pelo contato com a civilização. Assim Vieira cita o exemplo
de Santo Antonio que abandonou a capital de Portugal , Lisboa, para se refugiar
na floresta, em busca da verdade:
Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um
grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta,
porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e
foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos
pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos
homens.
Rousseau
proporá o mesmo para o seu Emilio, que será educado no campo, longe das
influências corruptas do ambiente social, sujeito apenas às exigências da
natureza, pois como anuncia na primeira página do seu livro “Tudo é certo em
saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos dos homens”
(ROUSSEAU, sd, p.9). Sobre o conceito de Natureza Cambi faz a seguinte
observação:
Cabe lembrar, porém que “natureza”
no texto de Rousseau assume pelo menos três significados diferentes: 1. como oposição àquilo que é social; 2. como
valorização das necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres de
crescimentos; 3. como
exigência de um continuo contato com um ambiente físico não –urbano e por isso
considerado genuíno. Trata-se, desse modo, de operar uma “naturalização” do
homem, capaz de renovar a sociedade européia moderna que chegou a um estado de
evolução (e de corrupção) que torna impossível a sua reforma política, segundo
o modelo republicano - democrático do “pequeno estado”.(CAMBI: 1999, p. 546).
Embora Vieira não seja tão pessimista (e nem
idealista) quanto Rousseau, ele também defendia a necessidade de se reformar a humanidade,
para que era necessário justificar a existência de alguma coisa comum a brancos
e índios, homens e aos peixes: a natureza humana. Como sabemos essa era uma questão
importantíssima para os jesuítas, pois dela dependia a possibilidade da
evangelização. Aliando-se com Las Casas Vieira se opõe a Sepúlveda que nega a
humanidade aos “peixes”:
As “provas” recolhidas por Sepúlveda apontam para a mesma insuficiência:
o canibalismo, o sacrifício, humano, o enterro da esposa, todos implicam que
não se reconhece plenamente ao outro o estatuto de humano, simultaneamente
semelhante e diferente. ora, a pedra de toque da alteridade não é o Tu
presente e próximo, mas o ele ausente e afastado”. (TODOROV, 2003,p. 228).
Vieira sabia disso quando jogava com a dialética
entre peixes e homens, mares e praças, campos e cidades: “E, entretanto vós,
peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis sós convosco, sim,
mas como peixe
na água. De casa e das portas adentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o
qual vos quer lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória”.
Sabemos o que está em jogo nessa frase. Ter ou não
memória não era uma questão de biologia ou psicologia, mas de ontologia e
política. Ao defender a existência da memória nos peixes, Vieira está lhes
dando o atributo fundamental para os homens, segundo o pensamento da segunda
escolástica. Mas se os peixes são como os homens
como explicar tanta
diferença entre os seus mundos?Aqui, a argumentação é bem mais complexa:
“antes, porém, que vos vades, assim como
ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.
Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa
que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros”.
Porém, o que pode ser motivo de justificativa para a
arrogância dos homens torna-se uma forma de explicar os peixes “Olhai, peixes,
lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os
olhos para os matos e para o sertão? Para cá,
para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se
comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os
Brancos”.
Eis o nó gótico da alteridade, a justificativa para toda guerra justa ou
omissão. Vieira procura desmanchar esse nó, no que foi seguido Las Casas e
Montaigne. Diante do sacrifício humano dos astecas ou da antropofagia dos
tupis, como
continua sendo cristão e defendendo a humanidade de seres tão diferentes?
Todorov mostra como
Las Casas foi avançando lentamente nesse sentido. Os argumentos encontrados na
sua Apologia e Apologética Histórica seguem diversos caminhos.
Em primeiro lugar, ele mostra que o fato do canibalismo
ser um mal, isso não implica que sua eliminação pela violência traga
necessariamente o bem, é possível que provoque ainda mais mal (que é a história
da colonização); depois lembra que há costumes diferentes e que bons cidadãos
são aqueles que cumprem as leis dos seus países, portanto teoricamente um índio
poderia estar simplesmente cumprindo seu dever etc; lembra, ainda, que o
sacrifício humano é mais comum que se imagina, sendo encontrado inclusive em
diversas passagens da Escritura.Porém como lembra Todorov:
A segunda afirmação (que aparece em primeiro lugar na argumentação de
Las Casas) é ainda mais ambiciosa: trata-se de provar que o sacrifício é
aceitável não somente depor razões de fato como também de direito. Ao fazê-lo, Las Casas
é levado a pressupor uma nova definição do sentimento religioso, e é aí que seu
raciocínio é particularmente interessante. Os argumentos são tirados da “razão
natural”, de considerações a priori acerca da natureza humana. (TODOROV, 2003, 273)
As conseqüências são semelhantes às apresentadas por
Vieira, nessa longa passagem:
Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele
concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas,
vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é
andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo
e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os
legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos
defuntos e ausentes; come- o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come -o
o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade
lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a
cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim,
ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já
se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e
menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa
crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.
Igual
conclusão chega Las Casas por outro caminho:
É, pois, ao enfrentar o argumento mais incomodo que Las Casas se vê
obrigado a modificar sua posição e ilustra assim uma nova variante do amor pelo
outro; um amor não mais assimilacionista, mas, de certo modo, distributivo:
cada um tem seus próprios valores; a comparação só pode ser feita no nível das
relações entre o ser e o seu deus – e não no nível das substâncias: só há
universais formais. Embora afirme a existência de um único deus, Las Casas não
privilegia a priori a via cristã de se chegar a ele. A igualdade já não é
estabelecida à custa da identidade, não se trata de um valor absoluto: cada um
tem o direito de se aproximar de deus pelo caminho que lhe convier. Não há mais
um verdadeiro Deus (o nosso), mas uma coexistência de universos possíveis: se
alguém o considerar verdadeiro(...).(TODOROV, 2003, p. 276)
Isso faz com que Todorov (com um pouco de exagero)
afirme que “Las Casas, sub-repticiamente, deixa a teologia e passa a praticar
uma espécie de antropologia religiosa, o que, nesse contexto, é realmente
subversivo, pois parece que quem assume um discurso sobre a religião dá um
passo em direção ao abandono do próprio discurso religioso” (idem, p. 276-277).
Las Casas, ao se abrir à presença desafiadora do Outro, transformou-se
(ou converteu-se), sem perder sua própria identidade, e nesse encontro, ampliou
sua visão de mundo. Segundo Todorov “ao afirmar a igualdade em detrimento da
hierarquia, Las Casas reata com um tema cristão clássico, como
indica a referência a São Paulo ,
citada também na Apologia e em outra, a do Evangelho segundo São Mateus: “Tudo
o que quereis que os homens façam por vós fazei-o por eles” (7,12). ‘É algo’,
comenta Las Casas, ‘que todo homem conhece, percebe e compreende graças à luz
natural que foi repartida entre nossos espíritos” (TODOROV: 2203, p. 278).
Assim os conceitos de “participação” e “revelação natural”, oriundos do tomismo
são utilizados (e resignificados) na interpretação dos problemas do novo mundo.
Ora, o reconhecimento, embora diferente, de Vieira da
alteridade dos peixes é o que lhe permite entender melhor a ipsidade
dos homens. Assim deixando de lado as considerações moralistas, pode
concentrar-se na crítica ética:
Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só
vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo
contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande
para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem
pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho:
Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces
invicem se devorantes: “Os homens com suas más e perversas cobiças,
vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros” Tão alheia cousa é, não
só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento,
todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!
Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste
escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais
quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
E
ainda:
Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a
sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais
pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os
comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os
devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e
das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por
um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui
devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis:
não como os outros comeres, senão como pão.
De forma que se o canibalismo dos índios era
esporádico a exploração dos brancos era constante:
A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne,
há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes
meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e
continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão
quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e
em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que
os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não
comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Vieira se aproxima aqui de Michel de Montaigne
(1533-1592), que foi um dos primeiros a chamar a atenção para a influência que
a cultura exerce sobre o conhecimento e a educação. No seu livro Ensaios
(1580; 1595) realiza a primeira crítica contundente à idéia de “bárbaro”
presente na filosofia desde Aristóteles.Todo o capítulo XXXI é dedicado a
analisar esse fato, tendo por base os escritos de Villegaignon (1510-1571) na
“França Antártica”, ou seja, no Brasil, pois como ele mesmo afirma “essa descoberta
de um imenso país parece de grande alcance e prestar-se a sérias reflexões”
(MONTAIGNE: 1996, p.193). Após realizar uma comparação entre os costumes dos
homens no decorrer da história até chegar aos índios brasileiros, conclui seu
argumento afirmando “acho [..] que nesse povo não há nada de bárbaro e de
selvagem, pelo que me contaram senão que cada um chama bárbaro aquilo que não é
de seu uso”, visto que a barbárie, se existir, é uma constante a todos os
homens e não apenas aos índios “penso que há mais barbárie em comer vivo que
comê-lo morto [...] podemos bem chamá-los de bárbaros, segundo as regras da
razão, mas não em relação a nós mesmos, que os superamos em todo tipo de
barbárie” (MONTAIGNE, 1996, p. 195 e 199).
Montaigne
admite certo relativismo cultural ao lembrar que “[...] e é natural, porque só
podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela
idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste, a religião é sempre a
melhor, a administração excelente e tudo o mais perfeito [...]” (p.195); para
depois reintroduzir a questão da ética, só que agora incorporando a sua
argumentação o olhar do outro, ao relatar a percepção deste sobre a sociedade
européia:
[...] observaram que há entre nós gente alimentada, gozando as
comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados,
miseráveis mendigam às portas dos outros [ em sua linguagem metafórica as tais
infelizes chamam “metades”] ; e acham extraordinário que essas metades de
homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos
demais (MONTAIGNE, 1990,
p. 203).
Mas
os sermões de Vieira não eram aulas de etnografia. Seu objetivo final não era
tornar o auditório mais culto, porém santo. A mudança de atitude e não a
simples contemplação:
Parece-vos bem isto, peixes? Representa--me que com o movimento das
cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vós
estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e
maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os
pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes
inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão
também de noite, às claras e às escuras, como
também fazem os homens.
A conclusão de Vieira é
que a violência é uma constante das sociedades, pois onde há poder há dominação
e resistência: Entre os peixes e os homens a preferência de Vieira é pelos
primeiros, “ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural
irregularidade!”. Isso longe de igualar os povos, pode nos ajudar a pensar e a
melhorar nossos costumes e instituições.
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Fonte:
Rodson
Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como
cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697” . (Tese apresentada ao
Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a
orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema,
recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
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