10/01/2016

Sermão de Santo Antônio aos Peixes, de Padre Antônio Vieira


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Sermão de Santo Antonio aos Peixes

O Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado por Vieira em 1654 na Igreja de São Luiz do Maranhão. O seu título deve-se ao fato de ter sido pronunciado no dia da festa de Santo Antônio de Pádua (1195-1231), padre e doutor da igreja e ao seu caráter claramente alegórico. Como afirma o próprio Vieira afirma “esse sermão (que é todo alegórico) pregou o Autor três dias antes de embarcar ocultamente para o reino” (VIEIRA: 2003, p. 317).

Esse é um dos mais criativos e fortes sermões de Vieira que foi pregado no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios. Seu público era composto Vieira irá associar sua situação à vida do santo franciscano português.

Fernando de Bulhões y Taveira de Azevedo, nasceu em 1195, na cidade de Lisboa, de família guerreira, descendente dos cruzados, tornou-se frade franciscano, recebendo o nome de Antonio. Destacou-se como eximiu pregador, teólogo e combatente das “heresias” em toda a Europa, especialmente na cidade de Pádua, na Itália (LODI: 2001). Aproveitando-se de todas essas semelhanças, em especial a de ser Antonio um “santo português”, Vieira ira tomar uma de suas lendas hagiográficas como mote para elaborar uma fina crítica aos costumes da colônia:

Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida (...) Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes.

Tomando por base o texto do Evangelho do Dia (Mateus, 5, 13): Vos estis sal terrae (“Vos sois o sal da terra”) Vieira divide o sermão em seis capítulos em que são feitos os louvores e as qualidades dos peixes da colônia. O capítulo primeiro trata do exórdio; os capítulos II ao V a confirmação e o capitulo VI a peroração.

Na abertura do sermão, Vieira, ao interpretar o Evangelho, introduz a sua célebre pergunta: quais as causas da ineficácia dos sermões? Relaciona a resposta ao texto bíblico e explica qual sua relação com a festa do dia. Como um bom conceptista, sua argumentação apóia-se no paralelismo sintático, na repetição anafórica das alternativas que constroem o núcleo central do seu raciocínio: “Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar” (p. 317). Introduz a tese que “nas festas dos Santos é melhor pregar como eles, que pregar deles” (p. 318). Vieira procura, usando dessa alegoria, reduzir o máximo possível a repetência inicial de seu auditório:

Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu e Inferno: e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins (...) Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar- me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.

Segundo ainda o simbolismo do sal, que possui segundo o Evangelho duas propriedades (conservar e preservar da corrupção), Vieira dividiu o sermão igualmente em duas partes: os louvores dos peixes e os defeitos dos peixes:

Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar (...) Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos- ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos. 

A maior das qualidades dos peixes é a obediência, ou seja, o ato de ouvir atentamente o pregador e a mensagem do sermão,

Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pelas honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouviste a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens!

Entre as qualidades particulares dos peixes ele destaca as observadas na rêmula (determinação para atingir seus objetivos), o torpedo (piedade), quatro-olhos (prudência). Mas é na análise dos defeitos dos peixes que o sermão se aprofunda. Entre os principais defeitos dois são destacados pelo jesuíta: os peixes comem-se uns aos outros e são ignorantes e cegos. Na seqüência, o pregador seleciona ainda quatro peixes e põe em destaque os seus defeitos. De forma que os roncadores personificam a arrogância; os pegadores, a servidão ou o parasitismo; os voadores, a ambição e o polvo a traição. Vejamos como isso se sucede no texto:

A primeira coisa que chama a atenção ao lermos atentamente esse sermão é a oposição entre duas formas de existência: a dos peixes (natural e boa) e a dos homens (social e perversa). Assim, por exemplo, os peixes ouvem, mas não falam; os homens falam muito e ouvem pouco. Os homens recusaram ouvir a palavra de Deus e os peixes acorreram todos. Todos os animais se podem domesticar, os peixes vivem em liberdade. O pregador nos leva a uma conclusão, repetida de múltiplas formas e vezes: quanto mais longe dos homens, melhor. As qualidades dos peixes derivam deles serem eles mesmos e os seus defeitos de imitarem os mal feitos humano. Portanto o “estado de natureza” dos peixes é melhor que a “civilização dos homens”,

(...) Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comumente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!

Percebe-se que a primeira das características encontradas no mundo dos peixes é a autonomia “lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele”, seguida pela liberdade:

Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente- se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro.

Impossível não associar essas metáforas aos conceitos de Natureza e Bom selvagem encontrados no “pai da pedagogia moderna”: Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Diga-se de passagem, que havia um elemento inegavelmente comum aos dois educadores. Para ambos, educação e política estavam intimamente ligadas. Em Rousseau “uma é o pressuposto e o complemento da outra, e juntas tornam possível a reforma integral do homem e da sociedade, reconduzindo-a por vias novas – para a recuperação da condição natural, ou seja, por vias totalmente artificiais e não ingênuas, ativadas através de um radical esforço racional” (CAMBI, 1999, 343).

Além disso, ambos compartilham de belas e fortes “metanarrativas”: um deseja a redenção da humanidade, por meio da criação de um mundo sem escravidão ou violência, representado pelo Quinto Império; outro salvar o homem do mal, levando-o a se reencontrar com a liberdade e a natureza. Ao seu modo procuravam responder as exigências que a descoberta havia causado no próprio Ocidente. É nesse contexto de descoberta do Outro que surge o mito do bom selvagem, aliás, compartilhado por outros autores, por exemplo:

A percepção que Las Casas tem dos índios não é mais nuançada do que a de Colombo, no tempo em que este acreditava no “bom selvagem”, e Las Casas quase admite que projeta sobre eles seus ideal ; “os lucayos (...) viviam realmente como a gente da Idade do Ouro, uma vida que poetas e historiadores tanto louvavam”, escreve, ou ainda, a propósito de um Índio: “Tinha impressão de ver nele nosso pai Adão, no tempo em que viva no estado da Inocência”(TODOROV: 20003, p. 236).

Escrito entre 1753 e 1754, o Emilio, ou da educação, irá propor uma pedagogia do “retorno à natureza” na busca por recriar a bondade inerente ao ser humano que havia sido perdida pelo contato com a civilização. Assim Vieira cita o exemplo de Santo Antonio que abandonou a capital de Portugal, Lisboa, para se refugiar na floresta, em busca da verdade:

Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens.

Rousseau proporá o mesmo para o seu Emilio, que será educado no campo, longe das influências corruptas do ambiente social, sujeito apenas às exigências da natureza, pois como anuncia na primeira página do seu livro “Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos dos homens” (ROUSSEAU, sd, p.9). Sobre o conceito de Natureza Cambi faz a seguinte observação:

Cabe lembrar, porém que “natureza” no texto de Rousseau assume pelo menos três significados diferentes: 1. como oposição àquilo que é social; 2. como valorização das necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres de crescimentos; 3. como exigência de um continuo contato com um ambiente físico não –urbano e por isso considerado genuíno. Trata-se, desse modo, de operar uma “naturalização” do homem, capaz de renovar a sociedade européia moderna que chegou a um estado de evolução (e de corrupção) que torna impossível a sua reforma política, segundo o modelo republicano - democrático do “pequeno estado”.(CAMBI: 1999, p. 546).

Embora Vieira não seja tão pessimista (e nem idealista) quanto Rousseau, ele também defendia a necessidade de se reformar a humanidade, para que era necessário justificar a existência de alguma coisa comum a brancos e índios, homens e aos peixes: a natureza humana. Como sabemos essa era uma questão importantíssima para os jesuítas, pois dela dependia a possibilidade da evangelização. Aliando-se com Las Casas Vieira se opõe a Sepúlveda que nega a humanidade aos “peixes”:

As “provas” recolhidas por Sepúlveda apontam para a mesma insuficiência: o canibalismo, o sacrifício, humano, o enterro da esposa, todos implicam que não se reconhece plenamente ao outro o estatuto de humano, simultaneamente semelhante e diferente. ora, a pedra de toque da alteridade não é o Tu presente e próximo, mas o ele ausente e afastado”. (TODOROV, 2003,p. 228).

Vieira sabia disso quando jogava com a dialética entre peixes e homens, mares e praças, campos e cidades: “E, entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis sós convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas adentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quer lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória”.

Sabemos o que está em jogo nessa frase. Ter ou não memória não era uma questão de biologia ou psicologia, mas de ontologia e política. Ao defender a existência da memória nos peixes, Vieira está lhes dando o atributo fundamental para os homens, segundo o pensamento da segunda escolástica. Mas se os peixes são como os homens como explicar tanta diferença entre os seus mundos?Aqui, a argumentação é bem mais complexa: “antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros”.

Porém, o que pode ser motivo de justificativa para a arrogância dos homens torna-se uma forma de explicar os peixes “Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos”.

Eis o nó gótico da alteridade, a justificativa para toda guerra justa ou omissão. Vieira procura desmanchar esse nó, no que foi seguido Las Casas e Montaigne. Diante do sacrifício humano dos astecas ou da antropofagia dos tupis, como continua sendo cristão e defendendo a humanidade de seres tão diferentes? Todorov mostra como Las Casas foi avançando lentamente nesse sentido. Os argumentos encontrados na sua Apologia e Apologética Histórica seguem diversos caminhos.

Em primeiro lugar, ele mostra que o fato do canibalismo ser um mal, isso não implica que sua eliminação pela violência traga necessariamente o bem, é possível que provoque ainda mais mal (que é a história da colonização); depois lembra que há costumes diferentes e que bons cidadãos são aqueles que cumprem as leis dos seus países, portanto teoricamente um índio poderia estar simplesmente cumprindo seu dever etc; lembra, ainda, que o sacrifício humano é mais comum que se imagina, sendo encontrado inclusive em diversas passagens da Escritura.Porém como lembra Todorov:

A segunda afirmação (que aparece em primeiro lugar na argumentação de Las Casas) é ainda mais ambiciosa: trata-se de provar que o sacrifício é aceitável não somente depor razões de fato como também de direito. Ao fazê-lo, Las Casas é levado a pressupor uma nova definição do sentimento religioso, e é aí que seu raciocínio é particularmente interessante. Os argumentos são tirados da “razão natural”, de considerações a priori acerca da natureza humana. (TODOROV, 2003, 273)

As conseqüências são semelhantes às apresentadas por Vieira, nessa longa passagem:

Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come- o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come -o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.

Igual conclusão chega Las Casas por outro caminho:

É, pois, ao enfrentar o argumento mais incomodo que Las Casas se vê obrigado a modificar sua posição e ilustra assim uma nova variante do amor pelo outro; um amor não mais assimilacionista, mas, de certo modo, distributivo: cada um tem seus próprios valores; a comparação só pode ser feita no nível das relações entre o ser e o seu deus – e não no nível das substâncias: só há universais formais. Embora afirme a existência de um único deus, Las Casas não privilegia a priori a via cristã de se chegar a ele. A igualdade já não é estabelecida à custa da identidade, não se trata de um valor absoluto: cada um tem o direito de se aproximar de deus pelo caminho que lhe convier. Não há mais um verdadeiro Deus (o nosso), mas uma coexistência de universos possíveis: se alguém o considerar verdadeiro(...).(TODOROV, 2003, p. 276)

Isso faz com que Todorov (com um pouco de exagero) afirme que “Las Casas, sub-repticiamente, deixa a teologia e passa a praticar uma espécie de antropologia religiosa, o que, nesse contexto, é realmente subversivo, pois parece que quem assume um discurso sobre a religião dá um passo em direção ao abandono do próprio discurso religioso” (idem, p. 276-277).

Las Casas, ao se abrir à presença desafiadora do Outro, transformou-se (ou converteu-se), sem perder sua própria identidade, e nesse encontro, ampliou sua visão de mundo. Segundo Todorov “ao afirmar a igualdade em detrimento da hierarquia, Las Casas reata com um tema cristão clássico, como indica a referência a São Paulo, citada também na Apologia e em outra, a do Evangelho segundo São Mateus: “Tudo o que quereis que os homens façam por vós fazei-o por eles” (7,12). ‘É algo’, comenta Las Casas, ‘que todo homem conhece, percebe e compreende graças à luz natural que foi repartida entre nossos espíritos” (TODOROV: 2203, p. 278). Assim os conceitos de “participação” e “revelação natural”, oriundos do tomismo são utilizados (e resignificados) na interpretação dos problemas do novo mundo.

Ora, o reconhecimento, embora diferente, de Vieira da alteridade dos peixes é o que lhe permite entender melhor a ipsidade dos homens. Assim deixando de lado as considerações moralistas, pode concentrar-se na crítica ética:

Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: “Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros” Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.

E ainda:

Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão.

De forma que se o canibalismo dos índios era esporádico a exploração dos brancos era constante:

A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.

Vieira se aproxima aqui de Michel de Montaigne (1533-1592), que foi um dos primeiros a chamar a atenção para a influência que a cultura exerce sobre o conhecimento e a educação. No seu livro Ensaios (1580; 1595) realiza a primeira crítica contundente à idéia de “bárbaro” presente na filosofia desde Aristóteles.Todo o capítulo XXXI é dedicado a analisar esse fato, tendo por base os escritos de Villegaignon (1510-1571) na “França Antártica”, ou seja, no Brasil, pois como ele mesmo afirma “essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e prestar-se a sérias reflexões” (MONTAIGNE: 1996, p.193). Após realizar uma comparação entre os costumes dos homens no decorrer da história até chegar aos índios brasileiros, conclui seu argumento afirmando “acho [..] que nesse povo não há nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram senão que cada um chama bárbaro aquilo que não é de seu uso”, visto que a barbárie, se existir, é uma constante a todos os homens e não apenas aos índios “penso que há mais barbárie em comer vivo que comê-lo morto [...] podemos bem chamá-los de bárbaros, segundo as regras da razão, mas não em relação a nós mesmos, que os superamos em todo tipo de barbárie” (MONTAIGNE, 1996, p. 195 e 199).

Montaigne admite certo relativismo cultural ao lembrar que “[...] e é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste, a religião é sempre a melhor, a administração excelente e tudo o mais perfeito [...]” (p.195); para depois reintroduzir a questão da ética, só que agora incorporando a sua argumentação o olhar do outro, ao relatar a percepção deste sobre a sociedade européia:

[...] observaram que há entre nós gente alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros [ em sua linguagem metafórica as tais infelizes chamam “metades”] ; e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais (MONTAIGNE, 1990, p. 203).

Mas os sermões de Vieira não eram aulas de etnografia. Seu objetivo final não era tornar o auditório mais culto, porém santo. A mudança de atitude e não a simples contemplação:

Parece-vos bem isto, peixes? Representa--me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vós estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.

A conclusão de Vieira é que a violência é uma constante das sociedades, pois onde há poder há dominação e resistência: Entre os peixes e os homens a preferência de Vieira é pelos primeiros, “ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade!”. Isso longe de igualar os povos, pode nos ajudar a pensar e a melhorar nossos costumes e instituições.



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Fonte:
Rodson Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697”. (Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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