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Vieira
e Bach
Quando fala de “fuga em espelho” em Vieira,
Affonso Romano não poupa equivalências com a fuga bachiana, e é particularmente
interessante que o músico alemão tenha de fato composto fugas-espelho. Essa
interseção aponta para a possibilidade de um notável isomorfismo entre o sermão
e a fuga, como
mostra o autor no trecho em que faz uma leitura dos “bons textos barrocos” (e
aí incluiremos o sermão) com base na estrutura da fuga:
Também nos bons textos barrocos, de ontem
ou de hoje, há uma fuga e contraponto de conceitos e imagens, uma rápida
sucessão de diferentes vozes, como
se o texto fosse deslizando, desviando-se de si mesmo, mas voltando sempre ao
baixo contínuo, ao preceito harmônico, ou melhor, estruturador do caos. Como na música, o texto faz
a “exposição” do motivo, e vozes outras o entoam imitando e diferenciando a
“resposta”. Depois há o “desenvolvimento”, intervalos ascendentes e
descendentes até chegar ao stretto final, momento de maior tensão tonal e
apoteose do pensamento.
Nos comentários tecidos a respeito da
música de Bach, é flagrante a presença de termos que se reportam às fugas e
cânones como
desafios intelectuais a serem vencidos pelo ouvinte ou pelo especialista. David
e Mendel, citados em Hofstadter, assinalam:
Por vezes, as relações entre as várias
seções compõem um labirinto de fios entrelaçados que só uma análise detalhada
pode desembaraçar. Normalmente, contudo, uns poucos aspectos dominantes
proporcionam orientação adequada e instantânea ao ouvinte, ou ao leitor, e,
conquanto no decurso do estudo possam-se descobrir sutilezas infindáveis, nunca
se perde de vista a unidade que caracteriza toda e qualquer criação de Bach.
Também considerada “túrgida e confusa”,
dotada de “sofisticação esotérica ou intelectual”, em que “muitas idéias e
formas foram tecidas em conjunto e onde interessantes duplos sentidos e alusões
sutis são freqüentes”, a música de Bach é quase um artefato puramente mental,
objeto que ele mesmo “pensa contrapontisticamente” (grifo nosso). Espécie de
conceitismo que, inicialmente aplicado ao texto escrito e partícipe da
oratória, parece caracterizar muito bem o texto musical bachiano. Uma vez que
as páginas da Arte da Fuga são as de um livro que se deve principalmente ler,
chegamos, dessa forma, à seguinte equação: se o sermão de Vieira é difícil de
ler (ou de ouvir), o de Bach é difícil de ouvir (ou de ler).
A semelhança com Vieira, então, é direta.
Seu conceitismo é descrito pelo crítico lusitano Antônio Sérgio, citado em
Coutinho, como uma “salada de conjeturas”, terreno movediço no qual se caminha
“por uma trilha sinuosa e desigual, que conduz a várias direções, através de
anfractuosidades às vezes invencíveis, não obstante a cristalina limpidez
formal”.
A matriz estruturadora do caos no sermão de
Vieira (a tese de trabalho) e a força unificadora que rege a música de Bach, e
de forma mais evidente, a fuga (através do “sujeito”), identificam-se
plenamente enquanto um mesmo princípio orquestrador de vozes textuais e
musicais. Falar, a essa altura, de uma orquestração musical e poética no texto
vieiriano parece dispensável. Na citação abaixo, o uso reiterado de uma certa
sintaxe e de um certo léxico sugere uma rítmica digna de um poema ou de uma
composição musical, em que a repetição efusiva dialoga com a diferença marcando
uma cadência. Vieira poeticamente reposiciona o spot do Ecce Homo sobre João
Batista, opondo seus hábitos virtuosos aos desregramentos da grande massa :
Homens, fazei penitência; e o exemplo
clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da
aspereza. As palavras do Batista pregavam o jejum, e repreendiam os regalos e
demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se
sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição
e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava:
Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cerdas e o
cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do
mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis
aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova.
Tecnicamente falando, Bach é um
músico-poeta porque pertence à “safra” de compositores que viscejaram em meio
ao Barroco protestante da Alemanha, no tempo, no lugar e no ambiente cultural
propícios ao surgimento da musica poetica. O título implicava, a princípio, um
compromisso com a metrificação do texto e com a música, com o canto (ou poema:
em grego, ambos têm o mesmo significado) que potencializaria a palavra,
dando-lhe vida e incutindo toda a sorte de afetos no auditório, e mais tarde,
uma preocupação com a eficácia retórica da música instrumental. Artisticamente
falando, que sua música esteja eivada de poesia é inegável, não importando se
os efeitos visualizantes suscitados por sua obra o tornam um músico-poeta numa
acepção diferente (ou não) da exposta, ou se por causa de qualquer outra carga
imagética ou cenográfica ali embutida seria melhor defini-lo como um músico-pintor
(o que, horacianamente falando, não faria muita diferença, no final das contas:
ut pictura poesis, a poesia é como a pintura). Barzun contorna a questão
dizendo o seguinte:
O compositor que musica letras ou transmite
dramatismo sabe, por suas próprias reações vicerais, o que fazer em qualquer
ponto com a melodia, a harmonia e o ritmo, a fim de comover e impressionar
apropriadamente o ouvinte. E quando na ausência de idéias declaradas, uma fuga
ou chaconne nos impressiona como se tivesse uma trama, é porque o compositor
obedeceu a alguma seqüência visceral própria – sem palavras e sem imagens – ao
mesmo tempo em que cumpre as exigências da forma.
Assim como no cânone eternamente remontante
as subidas sucessivas de tom geram um constante estado irresolvido de tensão e
suspense, também no Sermão da Sexagésima os fechamentos de parágrafos em forma
de perguntas que suscitam contínuas reelaborações do raciocínio provocam
ansiedade no ouvinte/leitor, que quer ver o mistério “desempenhado”.
Distinguindo a arte renascentista da arte barroca, Wölfflin assegura que, nesta, “[o] ideal não é mais o
apaziguamento do ser, mas um estado de excitação”. Dito de outra forma e
expandindo um pouco mais, essa agitação lembra aquelas tais “ondas
concêntricas”, a que já nos referimos, “lançadas como encarecimentos
sucessivos” em torno do tema, “de menor para maior”, ou o movimento espiralado
de elipses argumentativas.
O cânone “palíndromo” da Oferenda Musical
de Bach, mencionado anteriormente (ou Cânone caranguejo, como prefere
Hofstadter), pode ser comparado a pelo menos um exemplo, e de proporções
pontuais, no texto de Vieira. É quando ele fala sobre o “non” (não) e discorre
a respeito de suas qualidades palíndromas. Antônio Saraiva é quem coleta o
trecho para nós:
Terrível palavra é um Non. Não tem direito
nem avesso: por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do
princípio para o fim ou do fim para o princípio, sempre é Non. Quando a vara de
Moisés se converteu naquela serpente tão feroz que fugia dela porque o não
mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés, e logo perdeu a figura, a
ferocidade e a peçonha. O Non não é assim: por qualquer lado que o tomeis,
sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo.
Não podemos deixar de notar uma certa
semelhança de efeitos entre o “non” e os espelhos postos frente a frente em
outro sermão de Vieira, História do Futuro. Também ali está presente a idéia de
uma “bidirecionalidade gêmea”, em que todas as direções dão no mesmo, em que um
lado duplica-se no outro, numa vertiginosa e estranha simetria. Na colocação de
Laterza Filho , trata-se de buscar “uma feliz enformação” do mundo reduzindo-o
a uma série de oposições, de tal forma que a realidade pareça controlada numa
espécie de dinâmica da mesmice (“uma perpétua novidade sem nenhuma coisa de
novo”, como já dissemos).
Tanto para Vieira quanto para Bach, o
ornato retórico e o musical não se apresentavam como dispensáveis; ao
contrário, desempenhavam funções retóricas vitais.
Desde que convenientemente ajustado à
especificidade do discurso sacro, que fiscalizava o decoro e se guardava da
perigosa arte pagã e laica (a eloqüência clássica), o ornato dialético, assim
aplicado, ajudava na “frutificação” do sermão, além de funcionar como prova da
competência retórica e oratória do sermonista e como índice de sua
credibilidade pública, garantia da eficácia de sua pregação. O ornato também
não era considerado um excesso porque, preservado do mau uso, configurava-se
como agente revelador da trama oculta que permeia a criação, um dispositivo
natural, portanto, permitido por Deus e evidenciador d’Ele. Era um investimento
retórico a favor do sucesso da prédica, um tipo de voluta hipnótica de
arregimentação de recursos. Assim, não há nenhum problema com relação à sucessão
de verbos que redizem e reafirmam o sentido, substantivos que acrescentam e
diversificam o significado e adjetivos e imagens que colorem e metamorfoseiam a
dispersão textual e que vão ondeando sobre a página, espraiando e superpondo
sentidos, como fazia o pregador Vieira.
Para
Bach, a ornamentação musical era uma forma de vitalizar as melodias, dando-lhes
ênfase e inflexão, e “conferindo um acento peculiar à melodia principal”.
Appoggiaturas, grupetos e trilos incentivavam o floreio, o acréscimo de notas,
e Bach não abria mão dessas marcações dada a incapacidade técnica dos músicos
de seu tempo de improvisarem satisfatoriamente a ornamentação adequada. Cioso
quanto à interpretação de sua música, o músico alemão queria salvaguardar seu
poder retórico.
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Fonte:
Henrique Romaniello Passos: “Vieira e Bach: uma retórica do espelhamento” (Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova - FALE/UFMG). Belo Horizonte, 2006.
Fonte:
Henrique Romaniello Passos: “Vieira e Bach: uma retórica do espelhamento” (Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova - FALE/UFMG). Belo Horizonte, 2006.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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