10/01/2016

Maria Rosa Mística - I, de Padre Antônio Vieira


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Vieira e Bach

Quando fala de “fuga em espelho” em Vieira, Affonso Romano não poupa equivalências com a fuga bachiana, e é particularmente interessante que o músico alemão tenha de fato composto fugas-espelho. Essa interseção aponta para a possibilidade de um notável isomorfismo entre o sermão e a fuga, como mostra o autor no trecho em que faz uma leitura dos “bons textos barrocos” (e aí incluiremos o sermão) com base na estrutura da fuga:

Também nos bons textos barrocos, de ontem ou de hoje, há uma fuga e contraponto de conceitos e imagens, uma rápida sucessão de diferentes vozes, como se o texto fosse deslizando, desviando-se de si mesmo, mas voltando sempre ao baixo contínuo, ao preceito harmônico, ou melhor, estruturador do caos. Como na música, o texto faz a “exposição” do motivo, e vozes outras o entoam imitando e diferenciando a “resposta”. Depois há o “desenvolvimento”, intervalos ascendentes e descendentes até chegar ao stretto final, momento de maior tensão tonal e apoteose do pensamento.

Nos comentários tecidos a respeito da música de Bach, é flagrante a presença de termos que se reportam às fugas e cânones como desafios intelectuais a serem vencidos pelo ouvinte ou pelo especialista. David e Mendel, citados em Hofstadter, assinalam:

Por vezes, as relações entre as várias seções compõem um labirinto de fios entrelaçados que só uma análise detalhada pode desembaraçar. Normalmente, contudo, uns poucos aspectos dominantes proporcionam orientação adequada e instantânea ao ouvinte, ou ao leitor, e, conquanto no decurso do estudo possam-se descobrir sutilezas infindáveis, nunca se perde de vista a unidade que caracteriza toda e qualquer criação de Bach.

Também considerada “túrgida e confusa”, dotada de “sofisticação esotérica ou intelectual”, em que “muitas idéias e formas foram tecidas em conjunto e onde interessantes duplos sentidos e alusões sutis são freqüentes”, a música de Bach é quase um artefato puramente mental, objeto que ele mesmo “pensa contrapontisticamente” (grifo nosso). Espécie de conceitismo que, inicialmente aplicado ao texto escrito e partícipe da oratória, parece caracterizar muito bem o texto musical bachiano. Uma vez que as páginas da Arte da Fuga são as de um livro que se deve principalmente ler, chegamos, dessa forma, à seguinte equação: se o sermão de Vieira é difícil de ler (ou de ouvir), o de Bach é difícil de ouvir (ou de ler).

A semelhança com Vieira, então, é direta. Seu conceitismo é descrito pelo crítico lusitano Antônio Sérgio, citado em Coutinho, como uma “salada de conjeturas”, terreno movediço no qual se caminha “por uma trilha sinuosa e desigual, que conduz a várias direções, através de anfractuosidades às vezes invencíveis, não obstante a cristalina limpidez formal”.

A matriz estruturadora do caos no sermão de Vieira (a tese de trabalho) e a força unificadora que rege a música de Bach, e de forma mais evidente, a fuga (através do “sujeito”), identificam-se plenamente enquanto um mesmo princípio orquestrador de vozes textuais e musicais. Falar, a essa altura, de uma orquestração musical e poética no texto vieiriano parece dispensável. Na citação abaixo, o uso reiterado de uma certa sintaxe e de um certo léxico sugere uma rítmica digna de um poema ou de uma composição musical, em que a repetição efusiva dialoga com a diferença marcando uma cadência. Vieira poeticamente reposiciona o spot do Ecce Homo sobre João Batista, opondo seus hábitos virtuosos aos desregramentos da grande massa:

Homens, fazei penitência; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Batista pregavam o jejum, e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cerdas e o cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova.

Tecnicamente falando, Bach é um músico-poeta porque pertence à “safra” de compositores que viscejaram em meio ao Barroco protestante da Alemanha, no tempo, no lugar e no ambiente cultural propícios ao surgimento da musica poetica. O título implicava, a princípio, um compromisso com a metrificação do texto e com a música, com o canto (ou poema: em grego, ambos têm o mesmo significado) que potencializaria a palavra, dando-lhe vida e incutindo toda a sorte de afetos no auditório, e mais tarde, uma preocupação com a eficácia retórica da música instrumental. Artisticamente falando, que sua música esteja eivada de poesia é inegável, não importando se os efeitos visualizantes suscitados por sua obra o tornam um músico-poeta numa acepção diferente (ou não) da exposta, ou se por causa de qualquer outra carga imagética ou cenográfica ali embutida seria melhor defini-lo como um músico-pintor (o que, horacianamente falando, não faria muita diferença, no final das contas: ut pictura poesis, a poesia é como a pintura). Barzun contorna a questão dizendo o seguinte:

O compositor que musica letras ou transmite dramatismo sabe, por suas próprias reações vicerais, o que fazer em qualquer ponto com a melodia, a harmonia e o ritmo, a fim de comover e impressionar apropriadamente o ouvinte. E quando na ausência de idéias declaradas, uma fuga ou chaconne nos impressiona como se tivesse uma trama, é porque o compositor obedeceu a alguma seqüência visceral própria – sem palavras e sem imagens – ao mesmo tempo em que cumpre as exigências da forma.

Assim como no cânone eternamente remontante as subidas sucessivas de tom geram um constante estado irresolvido de tensão e suspense, também no Sermão da Sexagésima os fechamentos de parágrafos em forma de perguntas que suscitam contínuas reelaborações do raciocínio provocam ansiedade no ouvinte/leitor, que quer ver o mistério “desempenhado”. Distinguindo a arte renascentista da arte barroca, Wölfflin  assegura que, nesta, “[o] ideal não é mais o apaziguamento do ser, mas um estado de excitação”. Dito de outra forma e expandindo um pouco mais, essa agitação lembra aquelas tais “ondas concêntricas”, a que já nos referimos, “lançadas como encarecimentos sucessivos” em torno do tema, “de menor para maior”, ou o movimento espiralado de elipses argumentativas.

O cânone “palíndromo” da Oferenda Musical de Bach, mencionado anteriormente (ou Cânone caranguejo, como prefere Hofstadter), pode ser comparado a pelo menos um exemplo, e de proporções pontuais, no texto de Vieira. É quando ele fala sobre o “non” (não) e discorre a respeito de suas qualidades palíndromas. Antônio Saraiva é quem coleta o trecho para nós:

Terrível palavra é um Non. Não tem direito nem avesso: por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim ou do fim para o princípio, sempre é Non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz que fugia dela porque o não mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés, e logo perdeu a figura, a ferocidade e a peçonha. O Non não é assim: por qualquer lado que o tomeis, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo.

Não podemos deixar de notar uma certa semelhança de efeitos entre o “non” e os espelhos postos frente a frente em outro sermão de Vieira, História do Futuro. Também ali está presente a idéia de uma “bidirecionalidade gêmea”, em que todas as direções dão no mesmo, em que um lado duplica-se no outro, numa vertiginosa e estranha simetria. Na colocação de Laterza Filho , trata-se de buscar “uma feliz enformação” do mundo reduzindo-o a uma série de oposições, de tal forma que a realidade pareça controlada numa espécie de dinâmica da mesmice (“uma perpétua novidade sem nenhuma coisa de novo”, como já dissemos).

Tanto para Vieira quanto para Bach, o ornato retórico e o musical não se apresentavam como dispensáveis; ao contrário, desempenhavam funções retóricas vitais.

Desde que convenientemente ajustado à especificidade do discurso sacro, que fiscalizava o decoro e se guardava da perigosa arte pagã e laica (a eloqüência clássica), o ornato dialético, assim aplicado, ajudava na “frutificação” do sermão, além de funcionar como prova da competência retórica e oratória do sermonista e como índice de sua credibilidade pública, garantia da eficácia de sua pregação. O ornato também não era considerado um excesso porque, preservado do mau uso, configurava-se como agente revelador da trama oculta que permeia a criação, um dispositivo natural, portanto, permitido por Deus e evidenciador d’Ele. Era um investimento retórico a favor do sucesso da prédica, um tipo de voluta hipnótica de arregimentação de recursos. Assim, não há nenhum problema com relação à sucessão de verbos que redizem e reafirmam o sentido, substantivos que acrescentam e diversificam o significado e adjetivos e imagens que colorem e metamorfoseiam a dispersão textual e que vão ondeando sobre a página, espraiando e superpondo sentidos, como fazia o pregador Vieira.

 Para Bach, a ornamentação musical era uma forma de vitalizar as melodias, dando-lhes ênfase e inflexão, e “conferindo um acento peculiar à melodia principal”. Appoggiaturas, grupetos e trilos incentivavam o floreio, o acréscimo de notas, e Bach não abria mão dessas marcações dada a incapacidade técnica dos músicos de seu tempo de improvisarem satisfatoriamente a ornamentação adequada. Cioso quanto à interpretação de sua música, o músico alemão queria salvaguardar seu poder retórico.



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Fonte:
Henrique Romaniello Passos: “Vieira e Bach: uma retórica do espelhamento” (Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova - FALE/UFMG). Belo Horizonte, 2006.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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