17/01/2016

Sermão de Dia de Ramos, de Padre Antônio Vieira

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Barroco e pós-colonialismo

O adjetivo “pós-colonial” ou o substantivo “pós-colonialismo” vem sendo usado pelos estudiosos com três ênfases diferentes: como sinônimo de um novo campo de estudo, uma nova teoria social e a nova situação global após a experiência da colonização. A teoria pós-colonialista procura analisar os efeitos políticos, sociais, culturais e filosóficos do colonialismo, principalmente nos países colonizados. Há umaênfase nos temas de identidade e da representação e sobre as manifestações artísticas e culturais desses países.

O objetivo é analisar as complexas relações de poder surgidas entre as diferentes nações – coloniais ou metropolitanas- que participaram da “aventura colonial européia”. Do ponto de vista político e cultural, o termo pós-colonialismo tanto se refere ao estudo dos efeitos do colonialismo europeu como às respostas de resistência dos povos colonizados. Há a preocupação, por parte dos estudiosos dos países do chamado terceiro mundo, em analisar o legado político, econômico, social, cultural e filosófico do colonialismo pela importância da herança deixada após séculos de colonização.

Historicamente é possível situar a origem do movimento no fim do império colonial, compreendido como ocupação de territórios, no período entre o final da Segunda Grande Guerra os anos 60 do século XX. Ocorre que para os autores pós-colonialistas, o fim da colonização oficial não terminou com os seus efeitos sociais, que seriam responsáveis por parte da atual situação de inferioridade e dominação existente no mundo.

Os estudos pós-coloniais buscam entender como foram elaboradas as narrativas que possibilitaram o conhecimento e o controle do Outro (negro, índio, nativo etc.). A obra Orientalismo, de Edward Said, é paradigmática disso. Nesse livro, o autor, seguindo um enfoque foucaultiano, defende que o Oriente é, na verdade uma invenção do Ocidente, ou seja, que as descrições feitas pelos colonizadores e exploradores, desde Marco pólo, não devem ser tomadas como descrições “objetivas” da realidade, mas como um processo discursivo que, simultaneamente, constrói a realidade ao narrá-la. Como ele mesmo afirma:

Comecei com a suposição de que o Oriente não é um fato inerte da natureza. Não está meramente lá, assim com o próprio Ocidente não está apenas lá (... ) os lugares, regiões e setores geográficos tais como o “Oriente” e o “Ocidente” são feitos pelo homem. Portanto, assim como o próprio Ocidente, o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse modo apóiam-se e, em certa medida, refletem uma à outra. (SAID, 1990, p. 16-17).

Uma das características desse novo campo de pesquisa é a interdisciplinaridade de seus estudos, que abrangem Filosofia, História, Estudos Literários, Psicanálise, Sociologia, Antropologia e pelas Ciências Políticas. A teoria pós-colonial procura ainda repensar a própria ciência, em especial as humanas, que teriam sido estruturadas a partir de padrões ocidentais, universalizados de forma hegemônica pelos países colonizadores. Busca-se assim, construir uma resposta política e epistemológica da periferia ao centro do sistema, capaz de incorporar a questão da alteridade, vista como chave hermenêutica da história do Ocidente. Por exemplo, ao questionar a humanidade dos ameríndios, o homem europeu seiscentista questionava sua própria essência. O mesmo fazendo com relação à projeção do imaginário (paradisíaco ou demoníaco) na nova terra.

A categoria de representação torna-se fundamental. Assim, os discursos artísticos, filosóficos ou científicos, são tomados como formas de inscrição através das quais o Outro é representando: “mais do que um interesse simplesmente científico ou epistemológico, o que move essa narrativa é a curiosidade e a fascinação pelo Outro, visto como estranho e exótico, e o impulso para fixá-lo e dominá-lo como objeto de saber e de poder. O Outro é, pois, menos um dado objetivo e mais uma criação imaginaria do poder”. (SILVA, 2002, p. 127).

A identidade do Outro é construída pela projeção de uma série de categorias redutoras (bárbaro, selvagem, primitivo, atrasado) e esteriotipadas (canibal, maometano, pagão), que supõe a superioridade histórica e cultural do Eu europeu sobre o Outro colonizado, chegando-se mesmo a afirmar que, graças à adoção dessas categorias esquemáticas (e eficientes) de classificação, que nenhum nativo poderia se conhecer a si mesmo tão bem quanto um europeu o conhece (SAID, 1990).

Na verdade, a adoção do Paradigma de Sepúlveda não morreu com o século XVI e permaneceu no interior das grandes teorias explicativas produzidas na Europa. Said chega a afirmar que “qualquer visão abrangente é fundamentalmente conservadora, e temos observado, na história das idéias sobre o Oriente Próximo no Ocidente, como essas idéias têm-se mantido a despeito de qualquer evidência que as conteste [na verdade, podemos argumentar que essas idéias produzem evidências que provam sua validade]”. (SAID: 1990, 320).

Um exemplo disso é a questão das relações entre o Islã e o Ocidente. O termo maometano atribuído aos seus adeptos mostra como esse processo foi distorcido. Mas o orientalismo não é um fenômeno superado. Basta compararmos as representações do Oriente presentes nos discursos de Ernest Renan e Richard Rorty. Said cita longamente Renan:

Vemos que em todas as coisas a raça semítica parece-nos ser uma raça incompleta, por virtude da sua simplicidade. Essa raça- atrevo-me a usar a analogia - está para a família indo-européia como um esboço a lápis está para uma pintura; ela carece de variedade, da amplitude e da abundância da vida que é a condição da perfectibilidade como aqueles indivíduos que têm tão pouca fecundidade que, após uma infância grandiosa, atingem apenas a mais medíocre virilidade, as nações semíticas passam pelo seu mais pleno florescimento na sua primeira idade, e nunca foram capazes de alcançar a verdadeira maturidade. (RENAN apud SAID, 1990, p. 157).

Aos que pensam que o abandono da “tradição metafísica” é o fim das desigualdades, eliminando a presença de uma inferioridade intrínseca ao oriente, basta ler a resposta de Rorty quando interrogado sobre como resolver os conflitos com o Islã. Sua resposta é tão prática quando perigosa: educando-os para que se tornem “iguais a nós”,

A Europa não é só dominação, não apenas hegemonia, não apenas capitalismo internacional. Há também uma mission civilizatrice européia. Este termo tem sido desacreditado pelo comportamento dos poderes coloniais, mas poderia ter a capacidade de reabilitação. Afinal, a Europa foi a inventora da democracia e da responsabilidade cívica. Podemos ainda dizer ao resto do mundo: mandem seu pessoal para nossas universidades, aprendam sobre nossas tradições e por fim verão a vantagem de um modo democrático de vida. Pode ser apenas um acidente o fato do reino cristão ser o local onde a democracia foi reinventada para o uso de uma sociedade de massa, ou pode ser que isso não tivesse de ter acontecido em uma sociedade cristã. Mas é fútil especular sobre isso. De qualquer forma que isso poderia ser, parece- me que a idéia de um diálogo com o Islã é sem sentido (...). (RORTY, 2006, p.98).

Um outro elemento importante na teoria pós - colonial é a busca de superação de uma compreensão unilateral ou dogmática da dominação ou das relações de poder. Por sua origem nos Estudos Culturais, os teóricos dessa escola irão se concentrar na análise da cultura, que seguindo a tradição de Raymond Williams (Culture and society, 1958) e E.P. Thompson (The makink of the English working, 1963) é vista de forma global de vida, experiência comum vivenciada por um determinado grupo social. Assim a cultura é vista como um campo “relativamente autônomo” da vida social, com sua dinâmica e desenvolvimentos próprios. Como afirma Silva (2002, p. 129):

A teoria pós-colonial evita formas de análise que concebam o processo de dominação cultural como uma via de mão única. A crítica pós-colonial enfatiza, ao invés disso, conceitos como hibridismo, tradução, mestiçagem, que permitem conceber as culturas dos espaços coloniais ou pós-coloniais como o resultado de uma complexa relação de poder em que tanto a cultura dominante quanto a dominada se vêem profundamente modificadas (...) Obviamente, o resultado final é favorável ao poder, mas nunca tão completamente, nunca tão definitivamente quanto o desejado. O hibridismo carrega as marcas do poder, mas também as marcas da resistência.

Um exemplo disso é a discussão sobre o caráter “barroco” das sociedades pós-coloniais. O barroco é na verdade um conceito em disputa. Para muitos, todo debate sobre a modernidade e a pós-modernidade na América Latina que não discuta o barroco é parcial e incompleto (CHIAMPI, 1998). Para além do campo da literatura e da arte, o barroco é visto como um conceito capaz de explicar a dinâmica histórica da cultura e do imaginário da América no seu contraditório ingresso na modernidade. Entre os autores que defenderam a “americanização” do barroco destacam-se José Lezama Lima e Alejo Carpentier. Segundo esses autores, o barroco é a mais autêntica expressão cultural americana. Esse barroco, porém, é algo distinto do seu homônimo europeu, relacionado à dominação branca ou ao dogmatismo jesuíta tridentino. O barroco seria, na verdade, “a arte da contraconquista”, capaz de promover a ruptura e a resignificação dos elementos exóticos. Como lembra Chiampi (1998: p, 8): “é clara aqui a intenção de atribuir um sentido político, de rebelião implícita, tanto as combinatórias tensas de motivos religiosos, dos artistas populares como o índio Kondori ou o mulato Aleijadinho, como para o afã de conhecimento universal de intelectuais como Sóror Inês de la Cruz ou Don Carlos de Sinqüenza y Cóngora”.

O barroco converte-se na categoria americana para pensar a formação dos países pós-colonialiais no Continente, de processo de modernização, “às margens” do modelo de desenvolvimento do logos hegeliano (Chiampi). Mais ainda: o conceito permitiria pensar não apenas a história cultural americana, mas fenômenos presentes em diversos países, pois como afirma Carpentier: “toda simbiose, toda mestiçagem engendra um barroquismo”. O barroco assim é purificado das interpretações negativas que o associavam a uma estética do excesso, do mau gosto, do artifício e da complicação verbal inútil (estética) ou um movimento pré-iluminista e medieval, simples instrumento da dominação colonialista (ideologia).

Boaventura dos Santos (1950) é um dos autores que buscam realizar essa nova interpretação do barroco. Na verdade ele prefere usar o termo “códigos barrocos”, para explicar a situação de colapso entre as “raízes” (tradições) e as “opções” (transformações), característica das sociedades atuais, pós-coloniais. Segundo Santos, “estes códigos barrocos pós-dualistas são formações discursivas e performáticas que funcionam através da intensificação e da mestiçagem” (2005; 2006). Essa mestiçagem, como ele mesmo afirma “[...] é, em si mesma, politicamente ambivalente. Muitas vezes ao serviço de regulação e até opressão, pode, no entanto, ser igualmente mobilizada para projetos emancipatórios” (SANTOS, 2005, p. 69).

A análise do sociólogo português privilegia esse segundo uso da mestiçagem. Na obra de Boaventura estética e política unem-se na construção de uma nova epistemologia e de uma nova ética. Dois autores se destacam nessa leitura: o cubano José Martí (1853-1895) e o brasileiro Oswald de Andrade (1890-1650). Ambos têm em comum a mestiçagem como possibilidade e transformação da herança colonial: “é a América mestiça fundada no cruzamento, tantas vezes violento, de muito sangue europeu, índio e africano. É a América capaz de sondar profundamente as suas próprias raízes e de, nessa base, edificar um conhecimento de uma nova forma de governo que não seja, importados, mas antes adequados à sua realidade” (20005, p. 2000). As bases desse novo pensamento já estariam dadas, esteticamente, no manifesto antropofágico de Oswald de Andrade:

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem (...) mas não foram cruzados que vieram, foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o jabuti [...] Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos política que é a ciência da distribuição. E um sistema social- planetário [...] Antes dos portugueses descobrirem o Brasil,o Brasil tinha descoberto a felicidade. (ANDRADE, 1990).

É esse “instinto caraíba” de resignificação constante das imagens, da carnavalização dos sentidos e de mestiçagem das culturas, a contribuição da América para o nosso tempo. Santos explica que isso aconteceu devido às peculiaridades históricas do nascimento do barroco no continente:

Como estilo literário ou como época histórica, o barroco é forma excêntrica de modernidade ocidental, com forte presença nos paises ibéricos e nas suas colônias da América latina. A sua excentricidade deriva, em grande medida, do facto de ter ocorrido em paises e em movimentos históricos onde o centro de poder era fraco, procurando esconder a sua fraqueza através da dramatização da sociabilidade conformista. A relativa falta de poder central confere ao barroco um caráter aberto e inacabado que permiti a autonomia e a criatividade das margens nas periferias. (SANTOS, 2005, p. 205).

Assim, o barroco simultaneamente acabou servindo como raiz e possibilidade para as sociedades latino americanas pós – coloniais:

(...) Do século XVII em diante, as colônias ficaram mais ou menos entregues a si próprias, marginalização que possibilitou uma criatividade especificamente cultural e social, às vezes altamente codificada, outras vezes caótica, umas vezes erudita, outras popular, umas vezes oficial, outra legal. Tal mestiçagem está tão profundamente enraizada nas práticas sociais destes países que acabou por ser considerada como fundamento desde o século XVII até os nossos dias. Esta forma de barroco, enquanto manifestação de um exemplo extremo de fraqueza do centro, constitui um campo privilegiado para o desenvolvimento de uma imaginação centrífuga, subversiva e blasfema. (SANTOS, 2005, p. 205).

Santos demonstra como essa relação entre estética e política já se manifestava em alguns extremos do barroco clássico como a técnica de pintura terribiltà utilizada por Miguelangelo ou na escultura de Bernini (1598-1680) “O Êxtase de Santa Tereza” em que a expressão mística da santa é tão dramatizada que acaba se assemelhando ao de uma mulher gozando (SANTOS, 2005, p. 207). Assim sagrado e profano se unificam de forma intensa e inesperada. Tanto a terribilitá, quanto outra técnica de pintura, o sfumato, são exemplos da capacidade barroca de mistura elementos diferentes em novas identidades: o sfumato permite à subjetividade barroca criar o próximo e o familiar entre inteligibilidades diferentes, tornando assim os diálogos interculturais possíveis e desejáveis. Por exemplo, só por recurso ao stufato é possível dar forma a configurações que combinam os direitos humanos ocidentais com outras concepções de dignidade humana existentes noutras culturas. (SANTOS, 2005, p. 208).

Isso porque além da mestiçagem da “carne e do espírito” no dizer de Darcy Ribeiro,o barroco oferece as possibilidades para o diálogo e a tolerância intercultural, como uma melhor compreensão sobre a temporalidade. Os “códigos barrocos” ajudam as entender a diversidade de percepção do tempo no mundo, Santos utiliza-se da metáfora dos andamentos musicais: “(...) os andamentos musicais largo, lento, adágio, andante e moderato tendem a ser predominantes nos códigos barrocos de subexposição e nos respectivos processos de dispersão canonização. Nos códigos barrocos de subexposição e nos respectivos processos de dispersão criativa e de difusão em rede predominam os andamentos allegro, presto e prestíssimo.” (SANTOS, 2005, p.81).

Assim são aceitos diferentes tipos de ritmos de mudança histórica, sem que isso implique em uma hierarquização dessas sociedades. O barroco é mestiço, incompleto e inconformado. E o que, antes foi visto como fraqueza consiste na sua maior vantagem: “o inconformismo é a utopia da vontade”. Como diz Benjamim, “só possui o dom de fazer faiscar no passado a chispa da esperança aquele historiador que está convencido de que mesmo os mortos não estão a salvo do inimigo, se este vencer” (SANTOS, 2005, p. 83).

Como se sabe, o processo de colonização teve dois grandes momentos: os séculos XVI e XVII e o século XIX. A fase que nos interessa é a primeira desses “desembarques de Colombo”, ou seja, aquela que faz parte do Antigo Regime da época moderna e é conhecido como antigo sistema colonial.

As interpretações sobre o sistema colonial podem ser classificadas em duas grandes escolas: as que privilegiam seus fundamentos econômicos e as que enfatizam os aspectos políticos. Entre os primeiros encontram-se os autores marxistas que procuram discutir a relação entre a formação do sistema colonial brasileiro e a constituição do moderno sistema mundo; para outros o sistema colonial estaria ligado ao desenvolvimento do comércio europeu no século XV (mercantilismo e capitalismo comercial). Outros preferem analisar tanto o mercantilismo quanto o sistema colonial como resultado dos desígnios e necessidades das potências absolutistas desse período (WEHLING, 1999).

Segundo a lógica desse sistema, a colônia deveria ser um local de consumo para os produtos metropolitanos, de fornecimento de artigos para a metrópole e de ocupação para os trabalhadores da metrópole. Em outras palavras, dentro da lógica do “Sistema Colonial Mercantilista” tradicional, a colônia existia para desenvolver a metrópole, principalmente através do acúmulo de riquezas, seja através do extrativismo ou de práticas agrícolas mais ou menos sofisticadas. Nisso consistia o “pacto colonial”. Tradicionalmente, classificam-se as colônias em dois tipos: de “fixação”, como as norte-americanas e de “exploração”. Uma Colônia de Exploração, como foi o caso do Brasil para Portugal, tem basicamente três características, conhecidas pelo termo técnico de plantation. O plantation tinha como características o latifúndio, a monocultura e a exploração do trabalho escravo.

A simultaneidade desse processo de expansão - consolidação do sistema mundial provocou uma imbricação entre as dimensões do saber e do poder. Como lembra Boaventura dos Santos “o ato de descoberta é necessariamente recíproco: quem descobre é também descoberto” (2005). No entanto isso não implica em nenhuma transparência ou objetividade desse conhecimento, desde sempre marcado pela dominação e preconceito “porque sendo a descoberta uma relação de poder e de saber que transforma a reciprocidade da descoberta e na apropriação do descoberto” (SANTOS, 2006 p. 181). O Outro foi percebido a partir de três categorias: o Oriente, o selvagem e a natureza. Cada uma delas, a seu modo, ajudou a configurar o específico das descobertas coloniais: a idéia da inferioridade do “descoberto” perante seu “descobridor”. Isto implicou na produção das desigualdades presentes ainda hoje na relação entre as pessoas e os países.

As culturas nativas foram eliminadas pelas nações européias. Ao genocídio de suas populações serviu de base um epistemocídio de seus saberes (GERMANO, 2007). De modo que a descoberta se serviu dessas desigualdades para legitimar sua dominação sobre o “novo mundo”. Como afirma Santos: “o que foi descoberto estava longe, abaixo e nas margens do sistema, e essa ‘localização’ é a chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta; ou seja, o descoberto não tem saberes, ou se os tem, estes apenas tem valor enquanto recurso” (SANTOS, 2006, p. 182).

A construção de uma alteridade desigual para os não-europeus só é plenamente compreendida quando situada no contexto de criação do próprio capitalismo. A fim de garantir a funcionalidade da nova divisão internacional do trabalho, era preciso recuperar “antigas abominações” como o expediente da escravidão, tão combatido pelo cristianismo primitivo. Mais que isso havia a necessidade de transformar homens em coisas, questionando a humanidade dos colonizados, fossem esses índios, africanos ou indianos.

As múltiplas estratégias de dominação das culturas não européias se sustentavam numa visão linear e progressista da história, que seria plenamente desenvolvida pela ciência moderna séculos depois, que se recusava a aceitar a legitimidade dos saberes ou das práticas oriundas das colônias. Isso significou a destruição de sistemas inteiros de tradições seculares de conhecimento como os Astecas e Incas. A interdependência entre economia e ciência, entre saber e dominar, base para construção do “sistema mundo” moderno é resumido por Imannuel Wallerstein,

O princípio fundamental da economia – mundo capitalista é a acumulação incessante de capital. Essa é a razão de ser e todas as suas instituições se guiam pela necessidade de realizar esse objetivo, recompensar quem consegue e punir quem não consegue. É claro que o sistema se compõe de instituições que promovem esse fim, mais especificamente uma divisão axial de trabalho entre processos de produção centrais e periféricos, regulamentada por uma rede de Estados soberanos que funciona dentro de um sistema interestados. Mas ele também precisa de uma estrutura cultural – intelectual para funcionar direito. Essa estrutura tem três elementos principais: uma combinação paradoxal de normas universais e práticas racistas-sexistas; uma geocultura dominada pelo liberalismo centrista; e as estruturas de saber, raramente notadas mas fundamentais, baseadas em uma divisão epistemologia entre as chamadas duas culturas. (WALLERSTEIN, 2007, p. 88-89).

Da mesma forma que o sistema de plantation, baseado na agricultura extensiva e na monocultura da cana-de-açúcar, serviu para destruir a diversidade dos eco-sistemas das colônias; a imposição cultural européia, fundamentada na crença do cristianismo como única religião verdadeira e na conseqüente inferioridade do nativo, igualmente destruiu as diversas “ecologias de saberes” presente nesses lugares (SANTOS: 2005).

E será nessa área que a educação interfere, visto ser através dela que acontece a formação ou “de”- formação” dos sujeitos humanos.

O período em que Vieira viveu e escreveu é o momento em que esse paradigma, herdeiro das idéias de Sepúlveda (1490-1573) se consolidou. Vieira não escapou à ação desse “imaginário social instituinte” nos termos de Castoriadis (1982), presentes na ação missionária jesuíta desse período; da mesma forma que Karl Marx também foi influenciado pela noção de progresso, com seus “estágios civilizatórios” inevitáveis.



Fonte:
Rodson Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como cátedra: retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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