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O Mediador
Cultural: A Lusotopia Vieiriana
Antônio Vieira foi um agente político/religioso da colonização católica
portuguesa; foi, igualmente, um mediador cultural, isto é,
agenciou discursos, estabeleceu relações entre os diferentes: Portugal e suas colônias; Portugal e seus vizinhos europeus;
brancos e demais etnias (índios e negros); católicos e cristãos novos (judeus);
o mundo temporal e o espiritual… Agregou, dessa forma, territórios e pessoas,
formando uma nova coletividade no Novo Mundo.
Vieira fez um chamamento, convocou todos os diferentes a fazerem parte
de um mesmo império – o Quinto Império –, já anunciado pelos profetas da Antigo
Testamento e pelas trovas de Bandarra. Um mundo em que reinaria a paz, porque
governado por um só pastor – Cristo – e um só monarca – o rei de Portugal :
Vejo erguer um
grão rei
Todo bem
aventurado,
E será tão
prosperado
Que defenderá a
grei;
Este guardará a
lei
De todas as
heresias,
Derrubará as
fantasias
Dos que guardam
o que não sei.
Todos terão um
amor,
Assim gentios
pagãos
Sem jamais haver
error,
Servirão a um só
senhor,
Jesus Cristo que
nomeio;
Todos crerão que
já veio
O ungido Salvador .
Tirará toda a
escória,
Será paz em todo
mundo,
De quatro reis o
segundo
Haverá toda a vitória.
Será dele tal
memória.
Por ser
guardador da lei,
Pelas armas
deste Rei
Essa convocação patriótica incentiva a expansão do império e a
dilatação da fé católica. Aparece como uma
solução para a decadência em que se encontrava Portugal , pois representava uma
guinada para o futuro, revertendo o quadro de abatimento da monarquia ao longo
do século XVII:
A maior pena que aqui padeço
é ouvir falar em Portugal, porque todas as nossas ações desmerecem a nossa
fortuna, quando a pudéramos por todas vias adiantar ao sumo auge da felicidade
e grandeza, mas, como o que há basta para a ambição dos presentes, não querem
aventurar nada com a esperança, porque possuem o que nunca esperaram. A Duarte Ribeiro de Macedo
– 30 de junho de 1671
(AZEVEDO, 1926, T.II., p. 352)
Tal perspectiva otimista em relação à história de Portugal tinha como eixo fundamental o elemento messiânico:
um rei encoberto, que dirigisse o império de Cristo consumado, anunciado pelas
profecias antigas e modernas e que traria uma época de alegrias ímpares ao
reino (CAMPOS, 1997, p. 10-11). Dirá Vieira, entusiasmado, a D. Rodrigo de
Meneses, em carta de 22 de outubro de 1672: “Tenho em grande altura um livro
latino intitulado o Quinto Império, ou Império consumado de Cristo, que vem a ser
a Clavis Prophetarum; e ninguém o lê sem admiração, e sem o
julgar por importantíssimo à inteligência das escrituras proféticas”
(AZEVEDO, 1926, T.II., p. 516).
Primeiramente, o jesuíta atribui o papel de encoberto ou desejado a D.
João IV, depois a Afonso VI, a Pedro II, a João, o primogênito de Pedro II, e,
até mesmo, a um segundo irmão deste, ainda por nascer. Mudavam-se as pessoas,
mas o modelo messiânico continuava a ser renovado. Logo, profetismo e
messianismo são elementos indissociáveis para a compreensão de seu projeto
utópico.
Profeta da Pátria, Vieira resgata do já existente imaginário português
a imagem de um passado grandioso, imagem esta que se utiliza para construir uma
utopia alimentada por seu patriotismo, pela sua inconformidade com a situação
política de Portugal, uma imagem que contrastava com a crise institucional e política do período em que viveu. Vieira se utilizou do mito do Quinto-Império para explicar os
acontecimentos de sua época, através do repensar das origens portuguesas.
Tempos de crise, de ruína, de incerteza inspiram a construção de utopias e de
mitos, que têm como
objetivo mobilizar as consciências coletivas.
No entanto, para Maria Leonor Buescu (1982, p. 29-31), o discurso de
Vieira não deve ser classificado de utopista, mas de profético:
Se considerarmos que a utopia
desloca ou projeta a realidade pulverizada numa totalidade fictícia, e, ao
mesmo tempo, resulta da metaforicidade dessa realidade transportada para um
algures, não situável no tempo histórico nem no espaço geográfico, concluiremos
que, nesse sentido, Vieira não é utopista. Se a utopia, como construção
discursiva dentro do universo literário, tem em si mesma o seu referente
exterior, a História do Futuro aponta, pelo contrário, para um referente, ainda
que ausente. Cabe, por consequência (assim parece), estabelecer a oposição
entre discurso utópico e discurso profético. A “visão” de Vieira não tem os
limites insulares da ilha do Sol, concebida por Campanella: o seu espaço é
terrestre é total. Não é, também, uma ucronia, porque o seu tempo está
iminente. O jogo utópico é, pois, um jogo discursivo, que aponta para
categorias do real, situadas cronologicamente num (pseudo) presente e
geograficamente num (pseudo) lugar. Linguisticamente, exprime-se por um
presente. Ora, a História do Futuro e todos os lugares recorentes que se
encontram ao longo da vasta obra de Vieira está longe de se encerrar no espaço
e no tempo: o seu espaço é o Mundo, o seu tempo é o Millenium. A geometria é
abolida, bem como
as muralhas, margens ou fronteiras. Linguisticamente, exprime-se por um futuro
[…] Assim, não utopista nem sequer eutopista, Vieira assume-se como um visionário e um
sonhador, intérprete das promessas, os aplausos e as vozes de todas as
Escrituras. O seu discurso é um discurso profético, situado no rastro do seu
“alumiado” modelo, que a censura rasuraria, cujas visões se exprimem também por
sonhos-proféticos: Gonçalves Anes Bandarra e as suas enigmáticas Trovas.
A escritura do jesuíta está eivada de profecias, nas quais o místico
Vieira põe-se a fazer prognósticos, encarrega-se de nos “revelar”
acontecimentos que, supostamente, estariam previstos nas escrituras. Estabelece
ainda paralelos entre situações vivenciadas pelos portugueses e eventos
passados relatados nas Escrituras, numa tentativa de “explicar” as desgraças
vividas por seu povo. No entender de Vieira, a péssima conduta dos portugueses,
que insistiam em fazer cativeiros e desrespeitavam “as cousas da fé”, era a
verdadeira causa daqueles eventos funestos:
A perda do Senhor rei D.
Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu a todo reino,
notaram os autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros, que na costa
da mesma África começaram a fazer os nossos primeiros conquistadores, com tão
pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias. As injustiças e tiranias,
que se têm executado nos naturais destas terras, excedem muito às que se
fizeram na África […] Com grande dor, e com grande receio de a renovar no ânimo
de V. M, digo o que agora direi:, mas quere Deus que eu o diga. A El-rei Faraó,
porque consentiu no seu reino o injusto cativeiro do povo hebreu, deu-lhe Deus
grandes castigos, e um deles foi tirar-lhes os primogênitos. No ano de 1654,
por informação dos procuradores deste Estado, se passou uma lei com tantas
larguezas na matéria do cativeiro dos índios, que depois, sendo S.M. melhor
informado, houve por bem mandá-la revogar; e advertiu-se que neste mesmo ano
tirou Deus a S. M. o primogênito dos filhos e a primogênita das filhas. Senhor,
se alguém pedir ou aconselhar a V. M. maiores larguezas que as que hoje nesta
matéria, tenha-o V. M. por inimigo da vida, e da conservação e da coroa de V.
M. Ao Rei D. Afonso VI – 20 de abril de 1657 (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 468-469)
Essa crença profética se assinalava, além das Escrituras Sagradas e das
trovas de Bandarra, pela cometomancia, ou seja, a capacidade de
adivinhar o destino por intermédio dos cometas:
A estes sinais da terra se
seguiram depois os do céu, mostrando-nos neste hemisfêrio um cometa muito maior
que o grandíssimo de 1680, em figura de palma .
Apareceu aos 6 de Dezembro, dia em que foi coroado o glorioso restaurador da
nossa liberdade; o curso que levava para a parte austral, quotidianamente
sensível aos olhos, era tão veloz qual jamais se viu em outro cometa; sinal, ao
que parece, que os efeitos de suas influências não tardarão muito. Dizem que o
estado presente lá e cá não promete felicidades; mas, se Deus é o mesmo que
sempre foi, estas são as circunstâncias que a sua providência aguarda ou
dispõe, para fazer mais maravilhosas suas maravilhas. A Diogo Marchão
Temudo – 15 de julho de 1690 (AZEVEDO,
1928, T.III., p. 601)
Segundo Mourão (2003, p. 42), para os teologistas, os cometas
constituíam sinais de origem divina, advertências de Deus à humanidade
pecadora. Para Vieira, os cometas eram a Voz de Deus, mensageiros que
anunciavam castigos e desgraças de várias ordens:
Muito desejaria eu, pois que
não posso de outro modo ao menos com a pena própria, transladar neste papel
alguma parte das idéias ou confusões, que resolve dentro em si o coração e mal
cabem nele; mas nem mão tenho para escrever nem juízo para ditar, não livre
ainda totalmente de umas sezões malignas, em que foram os delírios contínuos. O
certo é que os castigos se têm começado a ver, e a justiça que os decreta não
está satisfeita. Em mais deste ano observou um nosso matemático outro cometa
que atravessava o sol de alto a baixo, e foi visto por muitos dias de todos os
padres do colégio de Pernambuco. A Antônio Pais Sande – 22 de julho de 1684 (AZEVEDO, 1928, T.III., p. 489-490)
Em seu famoso livro Prophétisme et Messianisme dans l’oeuvre
d’Antônio Vieira, Raymond Cantel (1960, p. 239) afirma que Vieira
não exitou em servir-se de diversas tendências messiânicas para levar a termo o seu projeto do Quinto-Império. Mas, inicialmente, o seu
messianismo é restrito às trovas de Bandarra e especificamente a Portugal, e
não desperta, por seu aspecto político, a atenção dos teólogos. Somente após a
sua viagem à Roma é que sua doutrina ganha uma outra dimensão. Não que Vieira
tenha renunciado ao seu sistema, mas, sem dúvida, mudou de linguagem: a sua
utopia se espalha por toda terra:
Thomas More a rêvé à une
petite île du Nouveau Monde et Thomas Campanella à un petit état situé sous
l’Équateur. L’Utopie et la Cité du Soleil sont des rêves localisés. Vieira
songe à sa patrie, mais sa pensée est à l’échelle de l’univers. En même temps
que le ciel descend vers la terre, celle-ci s’élève vers le ciel. Et il ne
s’agit pas d’une vue de l’esprit, il s’agit d’une conception historique.
L’événement est pour demain. . .
Parmi toutes les utopies
enfantées par le cerveau des hommes qui aspirent à une vie meilleure ici-bas, celle de Vieira est une
des plus généreuses et des plus universelles qui soient. (CANTEL, 1960, p. 246)
Essa questão da utopia, disseminada pelas cartas e pela obra de Vieira
de uma maneira geral, é bastante discutível. O Império preconizado por Vieira,
e aqui questionamos Buescu, embora traga algumas “especificações” – localização
geográfica: a terra; tempo: o millenium; religião: católica; e liderança:
Portugal –, este sonho de um reino de justiça na terra é alimentado por um
tempo, espaço, religião e liderança que jamais existiram senão na dobra de um
desejo coletivo de felicidade, mas que são existentes apenas no imaginário
popular. O utopismo desse Império é denunciado pela ideologia
católica/portuguesa, legitimada e justificada pelas profecias.
De outro modo, a expansão da fé cristã, na razão vieiriana, está
associada à do Império Português: “E assim como nas primeiras conquistas se
levantaram padrões das armas de Portugal, em toda a parte onde chegavam os
nossos descobridores, assim aqui se vão levantando os padrões da sagrada cruz,
com que se vai tomando posse destas terras por Cristo e para Cristo.” Ao Rei D.
Afonso VI – 28 de novembro de 1659 (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 553).
Não está ausente da reflexão vieiriana o cárater prático-político nas
bases que a utopia pode encontrar no real, nas instituições. O jesuíta tentou
transferir o religioso (a ética-moral de convicção) ao político (moral de
responsabilidade)67. Tentou fundir duas ordens numa só: o Quinto
Império. A utopia propõe pensar de outra forma a sociedade, propõe uma Nova
Ordem:
L’utopie est un exercice de
l’imagination pour penser un “autrement qu’être” du social. L’histoire des
utopies nous montre qu’aucun domaine de la vie en société n’est épargné par
l’utopie: elle est le rêve d’un autre mode d’existence familiale, d’une autre
manière de s’approprier les choses et de consommer les biens, d’une autre
manière d’organiser la vie politique, d’une autre manière de vivre la vie
religieuse. Il ne faut pas s’étonner, dès lors, que les utopies n’aient cessé
de produire des projets opposés les uns aux autres;car elles ont en commun de
miner de l’intérieur l’ordre social sous toutes ses formes. (RICOEUR, 1986, p. 427)
No caso de Vieira, não se trata da construção de uma utopia fantasista
“sem amanhã”, irrealizável; mas de uma utopia militante, de um projeto
raciocinado de sociedade, que poderia ser realizado com o comprometimento dos
portugueses e com a mediação dos jesuítas, cuja “missão” seria agregar todos os
diferentes ao grêmio da cristandade, ao corpo do Império:
Mas de todo este perigo e
temor foi Deus servido liviar aos vassalos de V. M., por meio de dois
missionários da Companhia, e com despesa de duas folhas de papel, que foram as
que de uma e outra parte abriram caminho à paz e à obediência, com que V. M.
tem hoje estas formidáveis nações não só conquistadas e avassaladas para si,
senão inimigas declaradas e juradas dos holandeses; conseguindo Deus por tão
poucos homens desarmados, em tão poucos dias, o que tantos governadores em mais
de vinte anos, com soldados, com fortalezas, com presídios e com grandes
despesas, sempre deixaram em pior estado: para que acabe de entender Portugal,
e se persuadam os Reis ministros de V. M., que os primeiros e maiores
instrumentos da conservação e aumento desta monarquia são os ministros da
pregação e propagação da fé, para que Deus a instituiu e levantou no mundo. Ao
Rei D. Afonso VI – 28 de novembro de 1659 (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 570)
A evangelização defendida por Vieira é um dos vetores de concretização
dessa utopia: os padres, para disseminar a religião católica, catequizavam na
língua da terra como
estratégia de conquista. A mudança de método visava a não desestimular o
aprendizado dos índios, seria mais eficiente se os padres aprendessem as línguas
das tribos:
No Brasil se tem feito um
catecismo da língua da terra, que, por ser muito largo, nos pareceu se devia
reduzir a menos perguntas, porquanto os índios desta terra não estão ainda
capazes de tanto, nem nós podemos ter com eles a assistência que se requere
para tão dilatado modo de doutrina, nem naquele catecismo se contém o que é
necessário saber-se para a salvação senão em muitos capítulos. Feita esta
recopilação de catecismo, e aprovada pelos mais práticos na língua, assim de
casa como de fora, propus aos Padres que convinha que todos ensinássemos por um
só catecismo, por evitar a confusão nos índios, pois nem sempre podíamos
ensinar os mesmos aos mesmos, e que, se lhes parecesse bem o catecismo que
estava feito de novo, ensinássemos por ele, e quando não que fizessem outro, ou
que emendassem aquele, tirado e acrescentando o que tivessem por melhor, de
maneira que todos nos conformássemos […] Vossa Paternidade por amor de Deus
mande remediar isto é, o principal remédio é que venham muitos e bons sujeitos,
porque como estes que se unem estiverem divididos, e houver outros com que
suprirem os lugares que eles enchem, dependerão os superiores menos deles, e
poderão dissimular menos, e terão quem se ponha de sua parte e os ajude. Ao
Geral da Companhia de Jesus – 14 de maio de 1654 (AZEVEDO, 1928, T.III., p. 708-709)
De fato, “o lábia”, como
era chamado Vieira por D. João IV, tinha experiência sobre as coisas do Brasil,
sua teoria era alicerçada numa práxis:
O presidente e os
conciliários que se acharam na dita junta, posto que muito doutos em outras
matérias, nunca viram nem trataram índios. Os que aconselhavam e perdiam aquela
pequena demostração de violência em três ou quatro bárbaros, conformando-se
todos os outros com a mudança, eram dez missionários que assistiam com eles na
mesma e nas outras aldeias da mesma nação, que estavam expostos ao perigo e
mais perto dele quando o houvesse; e eu, como quem se tem embarcado trinta e
seis vezes a França, Inglaterra, Holanda, Itália, Maranhão, Brasil (todas em
serviço de V. M.), julguei que em dúvida antes devia seguir o parecer dos
pilotos que o dos passageiros, não falando na minha experiência de cinco anos
nas aldeias do Brasil e nove nas do Maranhão, Grão-Pará e Rio das Amazonas, de
diversíssimas línguas e nações, em que fiz muitas mudanças com grande sossego e
felicidade, ajudando-me, quando era necessário, do nome e autoridade dos
governadores, e nas maiores ocasiões de seis soldados somente, como pode
testemunhar Manuel Guedes, que ainda vivo, Sargento- mór do Pára. Ao Rei D.
Pedro II – 1 de junho de 1691 (AZEVEDO, 1928, T.III., p. 604-606)
O jesuíta tinha ciência dos problemas brasileiros, herdados, em grande
parte, de Portugal, e que ameaçavam a unidade do Império que ele se esforçava
por “construir”. O discurso da metrópole, já nos primórdios da colonização,
caracterizava-se pela ambivalência – sustentava, simultaneamente, discursos
incongruentes, projetos com bases divergentes: evangelização e matança,
abnegação e lucro. Logo, um discurso que bailava segundo as conveniências e o
sabor dos acontecimentos.
É preciso compreender que o processo civilizatório passou por
diferentes etapas, as quais foram vivenciadas pelos jesuítas que residiram no
Brasil. Manuel da Nóbrega, por exemplo, submetia todas as suas dificuldades às
instâncias da corte. Seu programa “civilizador” foi aplicado a ferro e fogo por
Mem de Sá, no século XVI, dizimando populações indígenas na costa brasileira
(RIBEIRO, 1995, p. 51). A escritura de Vieira não é de subserviência, ele não
pede conselhos ao centro; ela cobra posição, exige ação:
O remédio de tudo é um só, e
muito fácil, e que muitas vezes tenho representação a V. M, e é que V. M.
resolutamente mande fechar a porta a todo o requerimento em contrário do que V.
M com tanta consideração mandou resolver;e quem o encontrar ou impedir seja
castigado com a demonstração que a matéria merece. Tudo o que se assentou
acerca dos índios do Maranhão foi com consulta da junta de teólogos, canonistas
e legistas, em que se acharam os três lentes de prima, e não houve discrepância de votos;foi com notícias de todas as leis
antigas e modernas, e de todos os documentos que sobre esta matéria havia;foi
ajustado com os dois procuradores do Maranhão e Pará, e com o governador de
todo o Estado, que estava nessa corte, e com o Superior ds missionários, que
também era procurador geral de todos os índios;e ultimamente com parecer de
todo o Conselho Ultramarino que tudo viu, examinou e aprovou. De onde, parece,
que não fica lugar a inovar cousa alguma, sem grande prejuízo e menos
autoridade das leis reais, e perturbação de tudo. Ao Padre André Fernandes
– s. d., 1656
(AZEVEDO, 1925, T.I., p.
466-467)
Em carta ao Marquês de Nisa e ao Rei D. João IV, queixou-se dos altos
impostos que eram cobrados no Brasil:
De maneira que, por este
meio, sem S. M. impor tributo de novo aos moradores do Brasil, só com arrecadar
por outro modo e navegar o que é seu, por setenta mil cruzados mal pagos, que
recebia o Brasil, vem a receber em Portugal mais de cento, e a pagar de graça
aos Holandeses mil caixas de açúcar, que ao cabo dos dez anos serão também para
S. M. Ganhando tanto a fazenda de S. M. neste alvitre, só perdem nele o
governador do Brasil e o provedor -mor da Fazenda, os quais em cada arrematação
nos dízimos tinham dois mil cruzados de propina. E havendo de ser o governador
em cujo tempo isto se há de começar o Sr. Francisco de Souza Coutinho e o
provedor, Simão Alvares de la Penha, cunhado do padre Antônio Vieira, assaz qualificado
o alvitre, pois, sendo tão proveitoso ao Rei, só aos que o oferecem é danoso. Ao
Marquês de Nisa – 24 de agosto de 1648 (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 251-252)
Além da chaga dos altos tributos, figura também a praga da corrupção
endêmica que imperava, e ainda impera, em terras brasileiras. Essas imagens de
exploração, corrupção estão enraizadas no inconsciente brasileiro, fazem parte
da auto-imagem, da história da mentalidade do povo brasileiro:
Eu, Senhor, razões políticas
nunca as soube, e hoje as sei muito menos, mas por obedecer direi toscamente o
que me parece. Digo que menos mal será um ladrão que dois;e que mais
dificultosos serão de achar dois homens de bem que um. Sendo propostos a Catão
dois cidadãos romanos para o provimento de duas praças, respondeu que ambos lhe
descontentavam: um porque nada tinha, outro porque nada lhe bastava. Tais são
os dois capitães – mores em que se repartiu este governo:
Baltasar de Souza não tem
nada, Inácio do Rego não lhe bastava nada; e eu não sei qual é maior tentação,
se a necessidade, se a cobiça. Tudo quanto há na capitania do Pára, tirando as
terras, não vale dez mil cruzados, como é notório, e desta terra há – de tirar
Inácio do Rego mais de cem mil cruzados em três anos, segundo se lhe vão
logrando bem as indústrias. Ao Rei D. João IV – 4 de abril de 1654 (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 416-417)
É importante salientar que Vieira foi um arauto da moralidade na gestão
das coisas públicas. Sempre teve uma preocupação com o patrimônio comum, sempre
denunciou como a má administração arruinava Portugal e o
Brasil, pois, no seu entender, os interesses individuais não poderiam estar
acima dos coletivos:
“Parece que estamos fora
deste mundo. Afirmo a V. S.a me desejo em algum lugar, se o há tão
remoto, onde se não ouça nem conheça o nome de Portugal . Tremo dos correios que de
lá vêm, porque todos trazem motivos de dor e tristeza, sem depois deste governo
lermos uma nova de gosto ou esperança dela.” A Duarte Ribeiro de Macedo – 1 de
janeiro de 1673 (AZEVEDO,
1926, T.II., p. 565)
Apesar de pertencer à mesma ordem religiosa de Nóbrega, Vieira vive uma
nova etapa do processo civilizatório, que “repudia” as ações anteriores em
relação aos selvagens, prega uma outra política no trato com os índios.
E como habitante da América Portuguesa, Vieira
é conhecedor da causa indígena. Em carta a D. Afonso VI, datada de 20 de abril
de 1657, denunciou o que se passava com as tribos
indígenas, alertando para o perigo de se continuar a dizimar os índios:
Em espaço de quarenta anos se
mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de
índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades, e disto nunca se
viu castigo […] nos anos de mil seiscentos cinqüenta e cinco, se cativaram no
rio das Amazonas dois mil índios, entre os quais muitos eram amigos e aliados
dos portugueses, e vassalos de V. M, tudo contra a disposição da lei que veio
naquele ano a este Estado, e tudo mandado obrar pelos mesmos que tinham maior
obrigação de fazer observar a mesma lei. (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 468)
Contudo, convém dizer que os jesuítas tinham uma visão um pouco
diferente dos índios: não se tratava de uma visão idealizada, embora lhes
reconhecessem a razão e como sendo filhos de
Deus, mas concebiam-no como
bárbaro, boçal e preguiçoso:
Entre os jesuítas predominava
uma visão diferenciada, pois, ao aceitarem que os índios eram dotados de razão,
esperava-se sua conversão, o que possibilitaria sua inserção no catolicismo.
Não tinham ao contrário dos protestantes, uma visão do bom selvagem, mas sim a
do índio bárbaro, boçal e preguiçoso. Esta imagem aparentemente negativa era
associada aos seus maus-costumes, o que poderia ser extirpado com a atuação da
Igreja. Não há uma idealização do índio americano, o que não significa que não
pudessem estar inseridos em projetos idealizantes. No caso do Padre Antônio
Vieira, este fato se torna claro quando entendemos sua teologia vinculada aos
ideais messiânicos portugueses. (MAGALHÃES, 2000, p. 331)
A diferença básica entre os colonos e os jesuítas é que, para os
primeiros, o índio é um animal, por isso deve ser escravizado; para os
segundos, é um ser humano criado por Deus, que deve ser salvo por meio da
verdadeira fé. Na relação hierarquizada que se estabelece entre o colonizador e
o colonizado, o estereótipo é usado pelo colonizador como forma de dominação,
de representação pejorativa do dominado, como meio de denegrir sua auto-imagem,
sua cultura de origem, através da disseminação da ideologia que vem vinculada
ao estereótipo: “Muitos há muito rudes e bárbaros, mas por falta mais de
cultura que de natureza. Tenham os portugueses menos cobiça, e logo os índios
terão mais entendimento.” Ao Padre Provincial do Brasil (AZEVEDO, 1925, T.I.,
p. 398)
Pageux (1989, p. 140) afirma que o estereótipo é portador de uma
definição do Outro, um enunciado que se proclama coletivo e que se quer válido
a qualquer momento histórico. O estereótipo – bárbaro, boçal, preguiçoso e
tantos outros termos que encontramos nas cartas dos
jesuítas – não é polissêmico. Em contrapartida, é policontextual – reempregado
a cada instante, impõe uma verdadeira dicotomia de mundo e das culturas:
Mais cette apparente
neutralité ne doit pas, masquer la charge polémique du stéréotype dont le
discours est généralement un véritable condensé d’ idéologie subreptice. Il
fonctionne en effet, le plus souvent, dans une situation de bi-polarité
opposant deux espaces, deux appartenances, deux conceptions du monde a priori
différentes ou antagonistes, et il exprime fréquemment une attitude de rejet,
de mépris ou de condescendance à l’égard de ce qui est perçu comme écart par
rapport à une norme auto-proclamée […] La pertinence du stéréotype dépend donc
en grande partie de son contexte d’énonciation, mais il n’en demeure pas moins,
en raison de sa fixité et sa globalité, largement imperméable à l’historicité. (CHEVRIER, 2005, p. 166-167)
Vieira, sempre agindo de acordo com as orientações da Companhia de
Jesus e guiado pelas teses dos teólogos da Segunda Escolástica, travava
discussões homéricas com os proprietários de escravos. O jesuíta alegava a
necessidade prioritária da prática religiosa na vida doméstica: “Em particular,
no trato com o gentio, negro ou índio, o jesuíta argumenta ser cristãmente
vicioso e politicamente ineficaz deixar de cumprir o dever, inalienável da
presença dos católicos no Novo Mundo, de pregar-lhe a fé”, registra Pécora
(1994, p. 31) Em carta de 20 de maio de 1653, a D. João IV, denuncia a situação:
Os índios que vivem em casa
dos portugueses, pela miséria de seu estado, e pela natural rudeza de quase
todos, ainda me muito maior parte lhes tocam todos os desamparos espirituais
acima referidos. Muitos deles vivem e morrem pagãos, sem seus senhores nem
párocos lhes procurarem batismo, nem fazerem escrúpulo disso. Os que têm nome e
batismo de cristãos, muitos o receberam sem saberem o que recebiam e vivem tão
gentios como de antes eram, sendo muito raros, ainda dos mais ladinos, os que
se desobrigam pela Quaresma; e há cristãos de sessenta anos de idade que nunca
se confessaram. Os mais deles, perguntados quando se confessaram a última vez,
respondem que com o padre Luis Figueira, o que há dezessete anos que falta
neste Estado. Morreram sem confissão é cousa mui ordinária, principalmente os
que moram fora da cidade, e também é ordinário o abuso de lhes não darem a
comunhão nem na hora da morte. (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 307-308)
Quanto aos negros, Vieira não pregava a “liberdade dos escravos”, visto
que a escravidão se justificava por questões econômicas e estratégicas, como
podemos ver nesta carta endereçada ao Marquês de Nisa, em 12 de agosto de 1648:
“Todo o debate agora é sobre Angola, e é matéria em que não hão-de ceder,
porque sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros, e como nós
temos o comércio do sertão, ainda que eles tenham cidade de Luanda, temem
que, se nós tivermos outros portos, lhes divertamos por eles tudo.” (AZEVEDO,
1925, T.I., p. 243).
A escravidão foi sustentada por Vieira pela sua importância como força de trabalho – e, logicamente, como um vetor na construção do capitalismo
mercantilista português. Serviu para estabilizar, como aponta Luis Felipe de Alencastro (2000,
p. 171), as relações entre os jesuítas e a Coroa. O índio era menos resistente
ao trabalho e às doenças, sua fuga era “facilitada”, pois estava em seu próprio
território, ao contrário do escravo, desterritorializado do continente
africano, afastado do seu país natal, que tinha menos estímulo para fugir.
Vieira expôs esses argumentos em carta endereçada à Câmara do Pará:
E, vindo ao remédio, que se
aponta, dos escravos do sertão, posto que eu o aprovo muito e solicitei com
El-Rei, insistindo S. M. que todos fossem livres, vejo, porém, que o dito
remédio por si só não é suficiente; porque, por mais que sejam os escravos que
se fazem, muitos mais são sempre os que morrem, como mostra a experiência de
cada dia neste Estado, e o mostrou no Brasil, onde os moradores nunca tiveram
remédio senão depois que se serviram com escravos de Angola, por serem os
índios da terra menos capazes do trabalho e de menos resistência contra as
doenças, e que, por estarem perto das suas terras, mais facilmente ou fogem ou
os matam as saudades delas. À Câmara do Pará – 12 de fevereiro de 1661 (AZEVEDO, 1925, T.I., p. 580-581)
Vieira sabia que o Brasil se formava “fora do Brasil”, isto é, de que
necessitava da mão-de-obra dos africanos, sob pena de o sistema econômico
entrar em colapso e, conseqüentemente, a unidade do Império vir a fragmentar-se.
No seu parecer sobre a rebelião dos escravos, recomenda a
conversão destes à Igreja e a obediência aos seus senhores, não vislumbrando
qualquer “outra” possibilidade de liberdade:
Muito me admiro (mas tal é o
sumo zelo em S. M. de salvar a todos!) que, sem outra informação dos superiores
desta Província, houvesse por bem a oferta feita por um padre particular de ir
aos Palmares. Este padre é um religioso italiano de não muitos anos, e, posto
que de bom espírito fervoroso, de pouca ou nenhuma experiência nestas matérias. Já outro de maior capacidade teve o mesmo
pensamento; e posto em consulta julgaram todos ser impossível e inútil por
muitas razões. Primeira: porque se isto fosse possível havia de ser por meio
dos padres naturais de Angola
que temos, aos quais crêem, e deles se fiam e os entendem, com de sua própria
pátria e língua; mas todos concordam em que é matéria alheia de todo o
fundamento e esperança. Segunda: porque até deles neste particular se não
hão-de fiar por nenhum modo, suspeitando e crendo sempre que são espias dos
governadores, para os avisarem secretamente de como podem ser conquistados. Terceira: porque
bastará a menor destas suspeitas, ou em todos ou em alguns, para os matarem com
peçonha, como
fazem oculta e secretíssimamente uns aos outros. Quarta: porque ainda que
cessassem dos assaltos que fazem no povoado dos portugueses, nunca hão-de
deixar de admitir aos de sua nação que para eles fugirem. Quinta: fortíssima e
total, porque sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo
e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, sem se
restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão
-de fazer. Só um meio havia eficaz e afetivo para verdadeiramente se reduzirem,
que era concedendo-lhe S. M. e todos seus senhores espontânea, liberal e segura
liberdade, vivendo naqueles sítios como os outros índio e gentios livres, e que
estão os padres fossem seus párocos e os doutrinas-sem como aos demais. Porém
esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil,
porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido ficar
livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros
tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que
não é outros mais que o próprio corpo. A Roque Monteiro Paim – 2 de julho
de 1691 (AZEVEDO, 1928, T.III., p. 620-621)
Conforme Bosi (1992, p. 122), Vieira não era saudoso do Antigo Estado,
sabia que a máquina mercante viera para ficar. Para sua construção e, mais do
que isso, para a manutenção de um novo Estado era preciso capital, daí aí a
importância concedida ao capital judeu: “Só Portugal se obstina em ignorar o
exemplo das ‘nações mais políticas da Europa’. Só Portugal se propõe nesciamente a
distinguir entre dinheiro fiel e infiel, dinheiro pio e ímpio, dinheiro nobre e
ignóbil.”
Vieira foi um mediador cultural; cujo núcleo de preocupação residia na
dessassossegadora visão de que Portugal
arriscava desaparecer, se não assumisse sua missão mito profética. O jesuíta
procurou dar ao Império Luso uma dimensão internacional, estabelecer relações
entre as colônias portuguesas espalhadas pelos diversos continentes e manter
uma certa linha de negociação com os demais países católicos:
Pelas notícias que V. Ex.a
me dá da nossa e alheia Europa, darei a V. Ex.a as de África, Ásia e
América. Da África chegou aqui e se deteve alguns meses, hóspede do senhor
Governdor, o Sr. D. João de Lencastre, recebido de toda a Bahia com tantos
aplausos, como partirá dela com iguais saudades
às que deixou em Angola .
Da Ásia tivemos da Índia nau, que não quis esperar a companhia da frota, e nela
o Padre Carola, que lá serviu de Secretário de Estado, e com fé de ministro
disse que ficava em paz, com que se sossegaram os receios dos que lhe desejavam
maiores socorros que os de uma nau e metade da outra. Na América devemos à
misericórdia divina dois particulares favores neste ano. O primeiro que nem aos
hóspedes nem aos naturais mordeu a bicha. Contra ela
escreveu um douto tratado o nosso boticário francês, André da Costa; e seria
dobrada desgraça se continuasse a nos morder o veneno, porque de todos os
navios da frota só faltou uma charrua, em que vinham as boticas, e se supõe tomada
pelos mouros. Dos outros piratas, que costumavam infestar esta costa, também
esteve totalmente livre, o que se atribui a saberem eles, melhor que nós, que
não podiam ter as presas do Rio da Prata, onde não só por ordem de El-rei de
Castela, senão também de S. M. que Deus guarde, está proibido o comércio
recíproco de uma e outra parte; e, por carta do Governador do Rio de Janeiro,
consta estarem na Terra Nova trezentos mil cruzados, e no mesmo Rio seiscentos,
totalmente suspensos e sem saída. Muito sentirão esta perda os mercadores de Portugal ; mas
por causa deles a padece maior o Brasil. Ao Marquês das Minas – 5 de julho
de 1692 (AZEVEDO,
1928, T.III., p. 638-639).
[…]
---
Fonte:
MARIAREGINA
BARCELOS BETTIOL: “A ESCRITURA DO INTERVALO: A POÉTICA EPISTOLAR DE ANTÔNIO
VIEIRA”. (Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de
Doutor em Literatura Comparada, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e para obtenção do título de
Doutor em Littérature Générale et Comparée, à l’Université Sorbonne Nouvelle
Paris III. Orientação: Prof. Dra. Maria Luiza Berwanger da Silva. Co-orientação:
Prof.Dr.Jean Bessière). Porto Alegre ,
2008.
Fonte:
MARIA
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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