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O Barroco ou
a idade de Vieira
Afirmar que a Retórica acompanhou sempre o espírito dos tempos é um
lugar--comum, mas definitivamente um dado relevante. Empurrada pelas ambições
humanas, metamorfoseia-se ao sabor das circunstâncias históricas, dos lugares
em que é chamada a operar e das pessoas que da sua exercitação tomam parte.
Porque o seu interior é, à partida, aparentemente desprovido de sentido(s), é o
seu exterior e as contingências que determinam a sua forma, conteúdo e efectivo
efeito. O gosto e as mentalidades são os factores que a moldam e a têm tornado
dinâmica ao longo da história da Humanidade.
Dada a sua natureza de arte da persuasão, importa pois começar por
reflectir sobre as especificidades relativas à época em que o Padre António
Vieira se serviu dos seus “efeitos”.
Na ressaca das lutas reformistas e contra-reformistas do século XVI, a
Europa entra na centúria seguinte religiosamente dividida. O Concílio de
Trento, cujas regras pretendiam consolidar a ortodoxia católica, abrira as
portas aos métodos terríveis da Inquisição. A censura, a espionagem e a tortura
em breve se espalhariam por vários países europeus, semeando um clima de
perseguição e terror. A qualquer custo, os dogmas e os sacramentos do
Catolicismo extremado tinham de ser preservados numa luta disputada palmo a
palmo com os “hereges”.
Do ponto de vista das mentalidades, vigorava ainda uma visão ptolemaica
do universo. O geocentrismo era, por isso, uma certeza. As teorias de
Copérnico, publicadas em 1543, haviam sido colocadas pelo Papa no Índex
dos livros proibidos. A novidade era vista como um perigo político e social, que
interessava reprimir a qualquer custo.
Afinal, numa perspectiva religiosa, a época era de teocentrismo e Deus
era tido como
uma figura antropomórfica cuja ira ou benevolência influenciavam o destino da
Terra e dos homens. Juiz implacável, Deus tinha para o Homem de Seiscentos o
inquestionável poder de ditar o castigo ou a glória eterna das almas humanas, que
peregrinavam na Terra com o objectivo supremo de obter a salvação. O jogo
político estava assim igualmente dependente destes humores divinos que decidiam
os vencedores e os vencidos do tabuleiro do poder mundial. O
mundo, por sua vez, dividia-se novamente entre o bem e o mal, Céu e Inferno ou
Deus e Demónio, que organizavam a realidade em pares de opostos que se
confrontavam permanentemente.
Politicamente, o século XVII é a idade do absolutismo. As mentalidades
centram-se na individualidade e o vedetismo e o culto da personalidade assumem
uma importância fulcral. Em França nasce uma ideia e uma prática de estado
centralista com o rei absoluto no seu topo. Luís XIV, o “Rei Sol”, proclama
“L’Etat c’est moi” e começa a dispor de poder absoluto, sem que ninguém
interfira ou incomode
A febre absolutista rapidamente contaminou uma grande parte dos países
da Europa. O rei tornara-se o governador iluminado pela sabedoria divina, cujos
desígnios teriam necessariamente de estar certos. Também a figura do Papa saía
valorizada, uma vez que representava Deus na Terra e as suas vontades eram
consideradas manifestações da vontade divina. Portanto, a concentração absoluta
do poder em individualidades fez mesmo com que, neste século, se tornassem
comuns a adulação e a auto-encenação, uma espécie de cultura teatral,
materializada nas célebres crinolinas e no pó-de-arroz, manifestação de uma
nova “tendência” que viria a marcar pelo menos toda uma centúria, que também é
a do Barroco.
Balizado sensivelmente entre os finais do século XVI e os meados do
século XVIII, o Barroco é um período histórico-cultural que assume uma relação
de antítese com o Classicismo e algumas soluções de continuidade em relação a
certos aspectos do Maneirismo, que o precedeu periodologicamente. Em linhas
gerais, Eugénio d’Ors definiu o Barroco como
um espírito pleno de movimento e excesso15. Toda a cultura barroca
fica, pois, marcada pela exuberância associada à idade do triunfo do
absolutismo, da construção de uma sociedade que se urbanizava cada vez mais e
de uma ideologia religiosa que, em alguns países, ostentava o triunfo que a
ideologia católica obtivera.
Também a arte deste período assume características semelhantes. O
sensorialismo (que visa deleitar os sentidos humanos), as emoções excessivas
(que visam provocar a admiração) e a veneração são particularidades de uma arte
que floresce, no século XVII, da tela ao púlpito.
De resto, no que à pintura diz respeito, uma das formas de arte mais
valorizadas da época16, o século de Vieira foi pródigo nos retratos
e auto-retratos. O culto da personalidade estava em voga e a imagem a
“construir” estava entre as principais preocupações das figuras públicas, desde
a realeza ao clero e mesmo aos artistas. As poses, a indumentária e os objectos
com que alguém se fazia retratar veiculavam determinadas características
essenciais à criação de um ethos forte, capaz de causar admiração e
veneração.
Também as alegorias visuais se revelaram uma faceta essencial da
pintura barroca. A representação de ideias, conceitos e abstracções em figuras
concretas cumpria de forma exímia a função de orientar a subjectividade do
receptor para as ideias que o emissor pretendia cristalizar. Os quadros
alegóricos, embora muitas vezes considerados enfadonhos e abstractos, acabam
por consolidar alguns dos mais ricos arquivos de características barrocas, como
o virtuosismo formal, o engenho, a ilusão, a metamorfose, o excesso, a
teatralidade e o poder persuasivo.
Já na arquitectura e na escultura, as marcas barrocas são muito
peculiares. Não raro, a arquitectura de Seiscentos revela características que
estão directamente relacionadas com tópicos do pensamento religioso dominante
da época, como tão bem mostrou José Fernandes Pereira, ao escrever que «a
igreja - Casa de Deus é no século XVII um objecto arquitectónico de aparência
paradoxal, opondo a singeleza exterior à máxima riqueza interna, numa metáfora
à dialéctica corpo/alma que é também a dualidade entre o temporal e o eterno,
entre o que se degrada e o que desafia a caducidade das coisas».
É no interior dos templos religiosos que a arquitectura e a escultura
apostam em exibir toda a sua grandiosidade. Naquela época, arquitectos,
pintores e escultores eram convocados para tornarem as igrejas cenários
esplendorosos. A exibição de pedras preciosas, as sumptuosas esculturas de
talha dourada e os azulejos decorativos eram utilizados de forma deliberada
para suscitar uma visão de glória celestial deleitante. As imagens dos santos proliferavam pelos
templos católicos dessa centúria, colocando-se ao serviço da pedagogia da fé,
do mesmo modo que as feições com que eram representados,
visando arrebatar os fiéis que os observavam, são igualmente marcas do estilo
barroco.
Também na música o Barroco se revelou na sua invulgaridade. Johann
Sebastian Bach, nome grande da expressão musical ocidental, desenvolveu
técnicas como a
fuga. Nesta técnica musical, depois de um instrumento tocar um tema
(melodia que servia de ponto de partida), um outro instrumento fazia-se ouvir
tocando o mesmo tema mas noutra tonalidade, ao passo que o primeiro instrumento
acrescentava uma nova melodia de acompanhamento (contra-tema). Deste modo,
«cada instrumento novo entra com o tema, acompanhado por outro instrumento que
toca o contra-tema, ao passo que todos os outros instrumentos executam as
piruetas que o compositor lhes preparou. Tudo prossegue esta via até todos os
instrumentos terem entrado. O conjunto tem como
efeito como se todos os instrumentos se
encaixassem uns nos outros como
as peças de um relógio», de forma a provocar sentimentos de pura
estupefacção barroca.
Na poesia,
o século XVII
foi marcado pelo cultismo e
pelo conceptismo.
Versando temáticas eminentemente passionais (ainda que por vezes
antagónicas, como
a morte, a fugacidade do tempo ou o gozo dos prazeres mundanos), a poesia
barroca seguia os traços genéticos do gosto de uma época. No que ao conceptismo
diz respeito, Francisco Gómez de Quevedo foi, decididamente, a grande
referência, enquanto que do lado do cultismo é o nome de Luis de Góngora
que em grande medida se destaca. Embora outrora aquelas duas categorias fossem
considerados antagónicas, actualmente parece ter-se compreendido que eram
apenas duas características complementares de uma poética dominante, que via a
poesia como uma
arte elitista destinada a uma minoria culta capaz de se deleitar com os jogos
complexos das palavras. O conceptismo trabalhava a possibilidade de
estabelecer relações conceptuais entre as coisas, não interessando tanto a
realidade física das mesmas mas antes o secretismo das relações que provinham
da agudeza com que se tratavam os conceitos – e que resultou no célebre
discurso engenhoso, de que Vieira tanto se serviu. Por seu turno, o cultismo
assentava mais numa estilização do mundo conquistada à custa de jogos complexos
de linguagem, que bastas vezes levavam a intrincados exageros de linguagem que
vedavam a compreensão poética a qualquer iniciado. A supremacia da forma sobre
o conteúdo era a tónica do cultismo. Refira-se, neste âmbito, que na
poesia nacional do século XVII, um nome se destaca quase solitariamente: D.
Francisco Manuel de Melo.
A época barroca seria também o tempo fértil de que a “arte do púlpito”
precisou para florescer. Arte de intervenção por excelência, o ministério do
púlpito era uma instituição privilegiada que influenciava muitíssimo a opinião
e a prática das pessoas. As astronómicas taxas de analfabetismo aliadas à
inexistência de meios de comunicação e informação faziam da oratória,
principalmente a religiosa, o único meio de informação de onde se colheriam
ideias, notícias e opiniões. Dada a efectiva importância que a oratória assumia
na época, em resultado ainda do rescaldo das lutas reformistas e
contra-reformistas – que dela também se serviam –, tal ministério assumiu,
naturalmente, a maior parte das características relativas ao gosto e à
mentalidade próprios da época. Deste modo, os discursos barrocos serviam-se do cultismo
e do conceptismo, organizavam as suas complexas ideias em pares de
opostos e a sua proclamação era acompanhada de uma teatralidade
exuberante, fortemente direccionada para os sentimentos que visava provocar.
É, pois, neste contexto único que o Padre António Vieira surge como artista interventivo.
Dono de uma vontade grandiosa de mudar o mundo, serviu-se sempre da palavra como matéria-prima da sua
vida pública. Foi com a palavra que interveio na política do reino, foi pela
palavra que catequizou, foi através da palavra que sonhou um novo império no
mundo. Em suma, foi pela palavra que se construiu, como
religioso, como político e como “profeta”.
Quando falamos de Vieira é importante não esquecer as raízes sobre as
quais a arte da sua eloquência cresceu – a Companhia de Jesus. Acima de tudo, o
orador português foi um religioso preocupado em difundir as ideias de Cristo e
da ordem religiosa para a qual entrou ainda em tenra idade. Recorde-se,
novamente, que ao seu nome surge sempre associado o epíteto
de “padre”, sugerindo a inseparabilidade entre o homem e o religioso. De facto,
o “matrimónio” contraído com a Companhia de Jesus haveria de influenciar toda a
vida e obra de António Vieira.
A educação ministrada pela ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola
foi um cabedal cultural e ético pioneiro que haveria de influenciar, por largos
séculos, não só todo o edifício da formação religiosa católica mas também a
maior parte dos sistemas educacionais civis. Munida de um plano de estudos – a Ratio Studiorum
–, cuja elaboração levou muitos anos a ser concluído e exigiu a colaboração de
um grande rol de homens ligados à educação, a escola jesuíta
distinguiu-se pela sua organização pluridisciplinar de força centrípeta. Todas
as disciplinas e saberes convergiam para o objectivo de formar homens capazes
de defender com proficiência a doutrina de Cristo e os valores defendidos pela
Companhia. Evangelizar e defender sagazmente a ortodoxia católica saída de Trento eram os frutos ambicionados por quem cuidava da
educação e formação dos jovens jesuítas.
Assim, no programa de estudos que vigorava na vasta rede de colégios, a
Retórica era uma disciplina central. Sabia-se que dependia do eficiente uso da
palavra o sucesso do exército de religiosos que posteriormente se expandiria
pelo mundo. As regras e os exemplos eram estudados ao pormenor, de modo a
suportar e guiar uma
“praxis” oratória cuja propedêutica se fazia também com todo o rigor.
Desta forma treinava-se o aluno «para o uso efectivo da palavra em público,
fazendo dele não apenas o homo sapiens mas também o homo eloquens,
apto para a intervenção na vida cívica à qual estava destinado, ou seja, apto
para vir a ser homo politicus.»
Apesar de o século XVII, como
já referimos, ser o século do Barroco por excelência, a Retórica ensinada nos
colégios jesuítas continuava a ser marcada por um forte substrato clássico. «Os
discursos de Cícero ocupavam primeiro plano ,
tendo em vista o aperfeiçoamento do estilo, mas também se estudava a obra de
Quintiliano e de Aristóteles (Retórica e Poética)»22. No entanto, as
circunstâncias temporais haveriam de ditar uma maior
abertura ao estilo da época. Segundo Aníbal Pinto de Castro, a formação
retórica e literária dos alunos preparava-os para o uso eficaz da eloquência,
«nas lutas a que os filhos de Santo Inácio se entregavam contra a heterodoxia
reformista», tornando assim imperioso que «no apostolado da milícia inaciana» o delectare começasse a apoiar mais directamente o docere. As
obras didácticas elaboradas exclusivamente para o ensino da Retórica nos
colégios dos jesuítas vieram, mais tarde, colocar o tempero barroco na receita
jesuítica, de modo a melhor adaptar os oradores a um tempo muito específico.
Assim, destaca-se a obra De Arte Rhetorica (1562), do Padre
Cipriano Soares, um manual prático, cómodo e credível para os trabalhos
requeridos pelo ensino jesuíta. Abrindo-se à estética literária formulada por
Aristóteles, foi esta obra que, pela importância que deu aos lugares-comuns, à
amplificação e ao ornato retórico iria preparar «o terreno em que havia de
germinar a teoria do barroco»24. Um pouco mais tarde, a exclusividade
do manual de Cipriano Soares haveria de ser quebrada com a publicação, em 1576,
da Rhetorica Ecclesiastica de Frei Luís de Granada. Nas palavras de
Pinto de Castro, foi esta obra que definitivamente franqueou «mais
generosamente as portas ao gosto barroco». No novo manual, os lugares-comuns
ganharam importância e variedade como
fontes de argumentos utilizados na inventio, o que abriu o flanco à
posterior utilização dos tão célebres conceitos predicáveis, introduzidos pelo
Padre Francisco Mendonça.
Os estudos dos futuros evangelizadores não se restringiam, contudo, aos
tratados e manuais que orientavam a eloquência. Como religiosos que eram, as Sagradas
Escrituras eram igualmente alvo de um estudo aprofundado. A Bíblia era a grande
autoridade, fonte inesgotável de argumentos prontos a serem usados no púlpito.
Também as hagiografias e as obras sobre a vida dos grandes padres da Igreja
Católica eram estudadas como
fonte de exemplos de vida a seguir pelos jovens jesuítas.
Por outro lado, o ensino ministrado pelos padres da Companhia culminava
ainda numa componente prática muito acentuada em que se treinavam os
pressupostos teóricos apreendidos. Deste modo, era frequente a organização de
debates e disputas verbais públicas, em que os estudantes se viam obrigados a
defender determinados pontos de vista segundo as regras oratórias que iam
aprendendo. Aspectos como a voz, a “postura”, o gesto e a
memória eram aperfeiçoados por inúmeras actividades, de onde se destaca o
teatro escolar, considerado uma ferramenta privilegiadíssima para o treino das
capacidades relativas à elocutio.
A formação
jesuíta de Vieira pressupunha também um desígnio eminentemente político. Tão
eficaz educação havia de resultar numa actividade política intensa que o
acompanhou ao longo de toda a sua vida. Na América ou na Europa, o Padre
António Vieira sempre se revelou um ser activo, preocupado com o futuro do
reino. Aliás, grande parte da sua obra é resultado da sua vida interventiva, como tão bem sintetizou
José van den Besselaar:
«Era um autor activo e militante que pegava na pena
para fazer propaganda das suas ideias, para interferir no mundo e para combater
as opiniões que considerava nefastas à sociedade em que vivia. A palavra e a
escrita eram, para ele, uma poderosa alavanca para levantar as massas inertes,
mostrando-lhes o caminho para um futuro menos rotineiro e mais humano.»
Vieira viveu num
século bastante conturbado do ponto de vista histórico. Pessoalmente, esteve
ligado à causa da Restauração portuguesa. Foi íntimo de D. João IV e diplomata
do reino em vários países da Europa. Defendeu sempre com paixão a soberania
portuguesa sobre as colónias que na época eram constantemente alvo de ataques
por parte de outras potências europeias.
Porém, toda a sua actuação política parece ter estado subordinada a uma
visão profética do mundo (também ela profundamente barroca), associada a
algumas das mais fortes raízes da nossa identidade nacional: o
providencialismo, o sebastianismo e o sonho imperial de um Quinto Império, cujas
raízes mergulham no “bandarrismo”. Bandarra seria mesmo visto por Vieira como o profeta deste novo povo eleito – Portugal – que
estava destinado a dominar o mundo sob a égide divina de Jesus Cristo. O avatar
do novo império, agora espiritual, terá sido a fonte da unidade de toda a obra
de Vieira, que faz dela, em última instância, uma obra profundamente religiosa.
O próprio contexto histórico nacional foi promotor seguro do legado do
Padre António Vieira. Recorde-se, uma vez mais, que a vida do jesuíta coincidiu
com um dos momentos mais críticos da história nacional – o período da
Restauração.
Em 1580, Portugal
havia perdido a independência para a coroa de Castela. O rei D. Filipe I de
Portugal passou a ser o senhor das terras lusas. No entanto, se nos dois
primeiros reinados (Filipes I e II) a integração portuguesa parecia estar de
algum modo pacificada, o subsequente reinado de Filipe III trouxe novas
circunstâncias políticas e sociais que fizeram com que um grande número de
portugueses aspirasse a voltar a ser independente.
Nas primeiras décadas do século XVII, Portugal
era, portanto, um país que experimentava tensões tanto a nível interno como nos seus territórios
além-mar. Nas terras do império, potências europeias como a Holanda disputavam ferozmente
possessões que só a muito custo podiam ser mantidas. Por cá, a participação de
fidalgos portugueses nas guerras da coroa castelhana – como
a da Catalunha –, assim como as elevadas
tributações cobradas no nosso território, fizeram com que ganhasse ânimo o
movimento restauracionista, que havia de trazer de volta a independência a Portugal
a 1 de Dezembro de 1640.
Longe de ser um episódio isolado, a Restauração havia de conformar-se como um período em que a
independência teve de ser consolidada. A aclamação de D. João, o duque de
Bragança, como rei trazia uma nova esperança a Portugal .
Neste contexto, os púlpitos assumiram um papel legitimador preponderante, como afirmam Bernardo
Vasconcelos e Nuno Gonçalo Monteiro:
«Desde a própria época, na
qual se fez uma grande campanha propagandística, nos púlpitos e em impressos,
que a Restauração foi objecto de um assinalável esforço de legitimação e
difusão. Nos púlpitos, proclamou-se a nova dinastia como
uma expressão da vontade divina, e tanto o sebastianismo como vários milenarismos conheceram então
importantes manifestações.»
Homem esclarecido e
muito competente, Vieira
soube como poucos confeccionar uma retórica eficaz, com
os ingredientes em voga na época, na quantidade certa e com
o grau de ruptura individual necessário, que o transformariam numa figura
única.
Para melhor compreendermos a construção de tamanha personalidade,
importa ainda prestarmos igualmente atenção aos três modos de persuasão
identificados por Aristóteles, segundo uma perspectiva histórica, e à forma como genericamente se
plasmam no labor parenético vieirino.
Pela natureza das definições, não será difícil constatar que a
substância dos três meios apresentados variam em função do tempo e do espaço.
Se numa época se aprecia um tipo de carácter, noutra, por exemplo posterior,
essa ideia pode alterar-se. Se numa época persuade melhor determinado
sentimento sugestionado, noutra, em que as pessoas pensem de maneira diferente,
os sentimentos apelativos poderão ser já outros. E se numa época é determinada
lógica discursiva a que convence, noutra será antes uma lógica diferente a
colher adeptos.
Ora, no século XVII o ideal do pregador passava por uma multiplicidade
de características que encaixavam capazmente no pensamento barroco. Assim, a
credibilidade que Vieira conseguiu construir em torno da sua figura deve-se ao
facto de ser visto como
uma personalidade invulgar, um homem multifacetado capaz de despertar emoções e
agir no mundo. Os substratos do homem letrado, herói apostólico e génio criador
compunham ainda mais a sua pública figura, que era reconhecida e à qual estava
associada grande credibilidade. O homem combativo, movido pela vocação e que
desempenhava uma pluralidade de acções, era valorizado segundo ideais fixados
pelas inúmeras biografias de santos
ou obras de literatura didáctica comuns na época.
Segundo Margarida Vieira Mendes, a partir da segunda metade do século
XVI acontece também uma sacralização do ethos apreciado. A imagem
ciceroniana do orador, isto é, a personalidade pública que «explora com
sagacidade a alma
dos seus concidadãos»33, é absorvida pela imagem do sacerdote
cristão. Permanecendo cívica, a oratória deixa de ser maioritariamente laica
para se sacralizar. O «loquente, como
sacerdote, apresenta-se na persona do mediador e intérprete da palavra
divina», e transforma-se, assim, num ser talentoso e iluminado pela sabedoria
de Deus, portanto digno de todo o crédito.
Quanto à
disposição dos ouvintes provocada pelo orador, o século XVII mostrou-se pródigo
no desencadear de sentimentos “excessivos”. Na oratória, como aliás em todas as outras artes barrocas,
os sentimentos provocados vão do medo (da morte ou da condenação eterna) ao
deleite provocado pelos sentidos. Muitas das vezes, diferentes sentimentos são
usados de forma oposta de modo a criar uma antítese capaz de melhor realçar um
deles. Assim, a demorada exploração de sentimentos de deleite ou prazer podia
ser um prelúdio antitético que melhor reforçava os sentimentos opostos dignos
de um cristão. O terror e o deleite extremo eram estados de alma quase
hipnóticos que os artistas tentavam provocar, de forma a conseguirem uma total
adesão a determinadas ideias.
No que à
oratória sacra diz respeito, as adaptações feitas para cada ocasião em que o
sermão era pregado constituíam, recorrentemente, uma fonte de argumentos patéticos.
A máquina do mundo, com Deus no seu cerne, parecia explicar de maneira lógica
os diferentes acontecimentos que iam ocorrendo. Repare-se, a este respeito, no
que sobre este aspecto afirma Alcir Pécora na sua obra A Arte de Morrer:
«Nas circunstâncias, justamente, os grandes pregadores
do século XVII vão buscar figuras de base para os seus ornatos dialécticos. (…)
É parte do decorum do sermão, portanto, adaptar--se à ocasião para modificá-la
segundo a ordem superior a ela, de modo a atualizar a palavra divina e mover de
maneira eficaz o seu auditório.»
É que as Escrituras, interpretadas com esgotante argúcia, pareciam ter
sido escritas para determinadas ocasiões históricas, catapultando a audiência
para sentimentos fortes, favoráveis à persuasão.
Quanto ao discurso verbal barroco, a sua lógica persuasiva revelava-se
bastante peculiar. Tratava-se de um discurso estilizado, repleto de figuras que
orientavam o pensamento de quem o ouvia ou lia. O cultismo, o conceptismo
e a lógica binária das coisas, replicando, muitas vezes, a visão maniqueísta do
mundo, eram características habituais dos discursos barrocos.
Ainda neste campo, convém não esquecer a existência de uma lógica
verbal. Longe de ser reconhecida a arbitrariedade das línguas, a palavra e o
mundo pareciam pertencer à mesma realidade. Os elementos relativos ao
significante da palavra eram interpretados como pistas importantes para descodificar o
mundo. É certamente por isso que António José Saraiva nos fala de um “discurso
engenhoso”, que se refere ao discurso cuja ordem não é forçosamente lógica, já
que as únicas normas que a palavra não pode quebrar são as da gramática. De
facto, para este autor o «essencial do barroco, no que se refere à literatura,
reside justamente nesse “discurso engenhoso”». Palavra e mundo pareciam manter
relações lógicas sub-reptícias, que só o orador iluminado por Deus conseguia
destrinçar, para assombro dos que o ouviam.
Bem podemos, pois, afirmar, em jeito de
balanço, que o Barroco foi inequivocamente o período certo para o aparecimento
de uma personalidade como
Vieira. O gosto artístico, o pensamento da época, as circunstâncias históricas
de Portugal e as características pessoais do jesuíta parecem ter sido
plenamente conjugadas para que surgisse o indesmentível “caso” em que o nosso
orador jesuíta se tornou. Se estivéssemos ainda no século XVII, dir-se-ia
talvez com propriedade que Deus não havia permitido que o mundo não tivesse
conhecido a luz do génio literário do Padre António Vieira.
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Fonte:
DANIEL JOSÉSALVADOR
JOANA: “DINÂMICAS DE ETHOS, PATHOS E LOGOS NOS SERMÕES DE QUARTA-FEIRA DE CINZA
DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA”. (Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa:
Investigação e Ensino apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, sob a orientação do Professor Doutor Albano Figueiredo). Coimbra , 2010.
DANIEL JOSÉ
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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