16/01/2016

Sermão da Dominga XIX depois do Pentecoste, de Padre Antônio Vieira

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O Barroco ou a idade de Vieira

Afirmar que a Retórica acompanhou sempre o espírito dos tempos é um lugar--comum, mas definitivamente um dado relevante. Empurrada pelas ambições humanas, metamorfoseia-se ao sabor das circunstâncias históricas, dos lugares em que é chamada a operar e das pessoas que da sua exercitação tomam parte. Porque o seu interior é, à partida, aparentemente desprovido de sentido(s), é o seu exterior e as contingências que determinam a sua forma, conteúdo e efectivo efeito. O gosto e as mentalidades são os factores que a moldam e a têm tornado dinâmica ao longo da história da Humanidade.

Dada a sua natureza de arte da persuasão, importa pois começar por reflectir sobre as especificidades relativas à época em que o Padre António Vieira se serviu dos seus “efeitos”.

Na ressaca das lutas reformistas e contra-reformistas do século XVI, a Europa entra na centúria seguinte religiosamente dividida. O Concílio de Trento, cujas regras pretendiam consolidar a ortodoxia católica, abrira as portas aos métodos terríveis da Inquisição. A censura, a espionagem e a tortura em breve se espalhariam por vários países europeus, semeando um clima de perseguição e terror. A qualquer custo, os dogmas e os sacramentos do Catolicismo extremado tinham de ser preservados numa luta disputada palmo a palmo com os “hereges”.

Do ponto de vista das mentalidades, vigorava ainda uma visão ptolemaica do universo. O geocentrismo era, por isso, uma certeza. As teorias de Copérnico, publicadas em 1543, haviam sido colocadas pelo Papa no Índex dos livros proibidos. A novidade era vista como um perigo político e social, que interessava reprimir a qualquer custo.

Afinal, numa perspectiva religiosa, a época era de teocentrismo e Deus era tido como uma figura antropomórfica cuja ira ou benevolência influenciavam o destino da Terra e dos homens. Juiz implacável, Deus tinha para o Homem de Seiscentos o inquestionável poder de ditar o castigo ou a glória eterna das almas humanas, que peregrinavam na Terra com o objectivo supremo de obter a salvação. O jogo político estava assim igualmente dependente destes humores divinos que decidiam os vencedores e os vencidos do tabuleiro do poder mundial. O mundo, por sua vez, dividia-se novamente entre o bem e o mal, Céu e Inferno ou Deus e Demónio, que organizavam a realidade em pares de opostos que se confrontavam permanentemente.

Politicamente, o século XVII é a idade do absolutismo. As mentalidades centram-se na individualidade e o vedetismo e o culto da personalidade assumem uma importância fulcral. Em França nasce uma ideia e uma prática de estado centralista com o rei absoluto no seu topo. Luís XIV, o “Rei Sol”, proclama “L’Etat c’est moi” e começa a dispor de poder absoluto, sem que ninguém interfira ou incomode

A febre absolutista rapidamente contaminou uma grande parte dos países da Europa. O rei tornara-se o governador iluminado pela sabedoria divina, cujos desígnios teriam necessariamente de estar certos. Também a figura do Papa saía valorizada, uma vez que representava Deus na Terra e as suas vontades eram consideradas manifestações da vontade divina. Portanto, a concentração absoluta do poder em individualidades fez mesmo com que, neste século, se tornassem comuns a adulação e a auto-encenação, uma espécie de cultura teatral, materializada nas célebres crinolinas e no pó-de-arroz, manifestação de uma nova “tendência” que viria a marcar pelo menos toda uma centúria, que também é a do Barroco.

Balizado sensivelmente entre os finais do século XVI e os meados do século XVIII, o Barroco é um período histórico-cultural que assume uma relação de antítese com o Classicismo e algumas soluções de continuidade em relação a certos aspectos do Maneirismo, que o precedeu periodologicamente. Em linhas gerais, Eugénio d’Ors definiu o Barroco como um espírito pleno de movimento e excesso15. Toda a cultura barroca fica, pois, marcada pela exuberância associada à idade do triunfo do absolutismo, da construção de uma sociedade que se urbanizava cada vez mais e de uma ideologia religiosa que, em alguns países, ostentava o triunfo que a ideologia católica obtivera.

Também a arte deste período assume características semelhantes. O sensorialismo (que visa deleitar os sentidos humanos), as emoções excessivas (que visam provocar a admiração) e a veneração são particularidades de uma arte que floresce, no século XVII, da tela ao púlpito.

De resto, no que à pintura diz respeito, uma das formas de arte mais valorizadas da época16, o século de Vieira foi pródigo nos retratos e auto-retratos. O culto da personalidade estava em voga e a imagem a “construir” estava entre as principais preocupações das figuras públicas, desde a realeza ao clero e mesmo aos artistas. As poses, a indumentária e os objectos com que alguém se fazia retratar veiculavam determinadas características essenciais à criação de um ethos forte, capaz de causar admiração e veneração.

Também as alegorias visuais se revelaram uma faceta essencial da pintura barroca. A representação de ideias, conceitos e abstracções em figuras concretas cumpria de forma exímia a função de orientar a subjectividade do receptor para as ideias que o emissor pretendia cristalizar. Os quadros alegóricos, embora muitas vezes considerados enfadonhos e abstractos, acabam por consolidar alguns dos mais ricos arquivos de características barrocas, como o virtuosismo formal, o engenho, a ilusão, a metamorfose, o excesso, a teatralidade e o poder persuasivo.

Já na arquitectura e na escultura, as marcas barrocas são muito peculiares. Não raro, a arquitectura de Seiscentos revela características que estão directamente relacionadas com tópicos do pensamento religioso dominante da época, como tão bem mostrou José Fernandes Pereira, ao escrever que «a igreja - Casa de Deus é no século XVII um objecto arquitectónico de aparência paradoxal, opondo a singeleza exterior à máxima riqueza interna, numa metáfora à dialéctica corpo/alma que é também a dualidade entre o temporal e o eterno, entre o que se degrada e o que desafia a caducidade das coisas».

É no interior dos templos religiosos que a arquitectura e a escultura apostam em exibir toda a sua grandiosidade. Naquela época, arquitectos, pintores e escultores eram convocados para tornarem as igrejas cenários esplendorosos. A exibição de pedras preciosas, as sumptuosas esculturas de talha dourada e os azulejos decorativos eram utilizados de forma deliberada para suscitar uma visão de glória celestial deleitante. As imagens dos santos proliferavam pelos templos católicos dessa centúria, colocando-se ao serviço da pedagogia da fé, do mesmo modo que as feições com que eram representados, visando arrebatar os fiéis que os observavam, são igualmente marcas do estilo barroco.

Também na música o Barroco se revelou na sua invulgaridade. Johann Sebastian Bach, nome grande da expressão musical ocidental, desenvolveu técnicas como a fuga. Nesta técnica musical, depois de um instrumento tocar um tema (melodia que servia de ponto de partida), um outro instrumento fazia-se ouvir tocando o mesmo tema mas noutra tonalidade, ao passo que o primeiro instrumento acrescentava uma nova melodia de acompanhamento (contra-tema). Deste modo, «cada instrumento novo entra com o tema, acompanhado por outro instrumento que toca o contra-tema, ao passo que todos os outros instrumentos executam as piruetas que o compositor lhes preparou. Tudo prossegue esta via até todos os instrumentos terem entrado. O conjunto tem como efeito como se todos os instrumentos se encaixassem uns nos outros como as peças de um relógio», de forma a provocar sentimentos de pura estupefacção barroca.

Na  poesia,  o  século  XVII  foi  marcado  pelo  cultismo  e  pelo  conceptismo.

Versando temáticas eminentemente passionais (ainda que por vezes antagónicas, como a morte, a fugacidade do tempo ou o gozo dos prazeres mundanos), a poesia barroca seguia os traços genéticos do gosto de uma época. No que ao conceptismo diz respeito, Francisco Gómez de Quevedo foi, decididamente, a grande referência, enquanto que do lado do cultismo é o nome de Luis de Góngora que em grande medida se destaca. Embora outrora aquelas duas categorias fossem considerados antagónicas, actualmente parece ter-se compreendido que eram apenas duas características complementares de uma poética dominante, que via a poesia como uma arte elitista destinada a uma minoria culta capaz de se deleitar com os jogos complexos das palavras. O conceptismo trabalhava a possibilidade de estabelecer relações conceptuais entre as coisas, não interessando tanto a realidade física das mesmas mas antes o secretismo das relações que provinham da agudeza com que se tratavam os conceitos – e que resultou no célebre discurso engenhoso, de que Vieira tanto se serviu. Por seu turno, o cultismo assentava mais numa estilização do mundo conquistada à custa de jogos complexos de linguagem, que bastas vezes levavam a intrincados exageros de linguagem que vedavam a compreensão poética a qualquer iniciado. A supremacia da forma sobre o conteúdo era a tónica do cultismo. Refira-se, neste âmbito, que na poesia nacional do século XVII, um nome se destaca quase solitariamente: D. Francisco Manuel de Melo.

A época barroca seria também o tempo fértil de que a “arte do púlpito” precisou para florescer. Arte de intervenção por excelência, o ministério do púlpito era uma instituição privilegiada que influenciava muitíssimo a opinião e a prática das pessoas. As astronómicas taxas de analfabetismo aliadas à inexistência de meios de comunicação e informação faziam da oratória, principalmente a religiosa, o único meio de informação de onde se colheriam ideias, notícias e opiniões. Dada a efectiva importância que a oratória assumia na época, em resultado ainda do rescaldo das lutas reformistas e contra-reformistas – que dela também se serviam –, tal ministério assumiu, naturalmente, a maior parte das características relativas ao gosto e à mentalidade próprios da época. Deste modo, os discursos barrocos serviam-se do cultismo e do conceptismo, organizavam as suas complexas ideias em pares de opostos e a sua proclamação era acompanhada de uma teatralidade exuberante, fortemente direccionada para os sentimentos que visava provocar.

É, pois, neste contexto único que o Padre António Vieira surge como artista interventivo. Dono de uma vontade grandiosa de mudar o mundo, serviu-se sempre da palavra como matéria-prima da sua vida pública. Foi com a palavra que interveio na política do reino, foi pela palavra que catequizou, foi através da palavra que sonhou um novo império no mundo. Em suma, foi pela palavra que se construiu, como religioso, como político e como “profeta”.

Quando falamos de Vieira é importante não esquecer as raízes sobre as quais a arte da sua eloquência cresceu – a Companhia de Jesus. Acima de tudo, o orador português foi um religioso preocupado em difundir as ideias de Cristo e da ordem religiosa para a qual entrou ainda em tenra idade. Recorde-se, novamente, que ao seu nome surge sempre associado o epíteto de “padre”, sugerindo a inseparabilidade entre o homem e o religioso. De facto, o “matrimónio” contraído com a Companhia de Jesus haveria de influenciar toda a vida e obra de António Vieira.

A educação ministrada pela ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola foi um cabedal cultural e ético pioneiro que haveria de influenciar, por largos séculos, não só todo o edifício da formação religiosa católica mas também a maior parte dos sistemas educacionais civis. Munida de um plano de estudos – a Ratio Studiorum –, cuja elaboração levou muitos anos a ser concluído e exigiu a colaboração de um grande rol de homens ligados à educação, a escola jesuíta distinguiu-se pela sua organização pluridisciplinar de força centrípeta. Todas as disciplinas e saberes convergiam para o objectivo de formar homens capazes de defender com proficiência a doutrina de Cristo e os valores defendidos pela Companhia. Evangelizar e defender sagazmente a ortodoxia católica saída de Trento eram os frutos ambicionados por quem cuidava da educação e formação dos jovens jesuítas.

Assim, no programa de estudos que vigorava na vasta rede de colégios, a Retórica era uma disciplina central. Sabia-se que dependia do eficiente uso da palavra o sucesso do exército de religiosos que posteriormente se expandiria pelo mundo. As regras e os exemplos eram estudados ao pormenor, de modo a suportar e guiar uma

“praxis” oratória cuja propedêutica se fazia também com todo o rigor. Desta forma treinava-se o aluno «para o uso efectivo da palavra em público, fazendo dele não apenas o homo sapiens mas também o homo eloquens, apto para a intervenção na vida cívica à qual estava destinado, ou seja, apto para vir a ser homo politicus

Apesar de o século XVII, como já referimos, ser o século do Barroco por excelência, a Retórica ensinada nos colégios jesuítas continuava a ser marcada por um forte substrato clássico. «Os discursos de Cícero ocupavam primeiro plano, tendo em vista o aperfeiçoamento do estilo, mas também se estudava a obra de Quintiliano e de Aristóteles (Retórica e Poética)»22. No entanto, as circunstâncias temporais haveriam de ditar uma maior abertura ao estilo da época. Segundo Aníbal Pinto de Castro, a formação retórica e literária dos alunos preparava-os para o uso eficaz da eloquência, «nas lutas a que os filhos de Santo Inácio se entregavam contra a heterodoxia reformista», tornando assim imperioso que «no apostolado da milícia inaciana» o delectare começasse a apoiar mais directamente o docere. As obras didácticas elaboradas exclusivamente para o ensino da Retórica nos colégios dos jesuítas vieram, mais tarde, colocar o tempero barroco na receita jesuítica, de modo a melhor adaptar os oradores a um tempo muito específico.

Assim, destaca-se a obra De Arte Rhetorica (1562), do Padre Cipriano Soares, um manual prático, cómodo e credível para os trabalhos requeridos pelo ensino jesuíta. Abrindo-se à estética literária formulada por Aristóteles, foi esta obra que, pela importância que deu aos lugares-comuns, à amplificação e ao ornato retórico iria preparar «o terreno em que havia de germinar a teoria do barroco»24. Um pouco mais tarde, a exclusividade do manual de Cipriano Soares haveria de ser quebrada com a publicação, em 1576, da Rhetorica Ecclesiastica de Frei Luís de Granada. Nas palavras de Pinto de Castro, foi esta obra que definitivamente franqueou «mais generosamente as portas ao gosto barroco». No novo manual, os lugares-comuns ganharam importância e variedade como fontes de argumentos utilizados na inventio, o que abriu o flanco à posterior utilização dos tão célebres conceitos predicáveis, introduzidos pelo Padre Francisco Mendonça.

Os estudos dos futuros evangelizadores não se restringiam, contudo, aos tratados e manuais que orientavam a eloquência. Como religiosos que eram, as Sagradas Escrituras eram igualmente alvo de um estudo aprofundado. A Bíblia era a grande autoridade, fonte inesgotável de argumentos prontos a serem usados no púlpito. Também as hagiografias e as obras sobre a vida dos grandes padres da Igreja Católica eram estudadas como fonte de exemplos de vida a seguir pelos jovens jesuítas.

Por outro lado, o ensino ministrado pelos padres da Companhia culminava ainda numa componente prática muito acentuada em que se treinavam os pressupostos teóricos apreendidos. Deste modo, era frequente a organização de debates e disputas verbais públicas, em que os estudantes se viam obrigados a defender determinados pontos de vista segundo as regras oratórias que iam aprendendo. Aspectos como a voz, a “postura”, o gesto e a memória eram aperfeiçoados por inúmeras actividades, de onde se destaca o teatro escolar, considerado uma ferramenta privilegiadíssima para o treino das capacidades relativas à elocutio.

A formação jesuíta de Vieira pressupunha também um desígnio eminentemente político. Tão eficaz educação havia de resultar numa actividade política intensa que o acompanhou ao longo de toda a sua vida. Na América ou na Europa, o Padre António Vieira sempre se revelou um ser activo, preocupado com o futuro do reino. Aliás, grande parte da sua obra é resultado da sua vida interventiva, como tão bem sintetizou José van den Besselaar:

«Era um autor activo e militante que pegava na pena para fazer propaganda das suas ideias, para interferir no mundo e para combater as opiniões que considerava nefastas à sociedade em que vivia. A palavra e a escrita eram, para ele, uma poderosa alavanca para levantar as massas inertes, mostrando-lhes o caminho para um futuro menos rotineiro e mais humano.»

Vieira viveu num século bastante conturbado do ponto de vista histórico. Pessoalmente, esteve ligado à causa da Restauração portuguesa. Foi íntimo de D. João IV e diplomata do reino em vários países da Europa. Defendeu sempre com paixão a soberania portuguesa sobre as colónias que na época eram constantemente alvo de ataques por parte de outras potências europeias.

Porém, toda a sua actuação política parece ter estado subordinada a uma visão profética do mundo (também ela profundamente barroca), associada a algumas das mais fortes raízes da nossa identidade nacional: o providencialismo, o sebastianismo e o sonho imperial de um Quinto Império, cujas raízes mergulham no “bandarrismo”. Bandarra seria mesmo visto por Vieira como o profeta deste novo povo eleito – Portugal – que estava destinado a dominar o mundo sob a égide divina de Jesus Cristo. O avatar do novo império, agora espiritual, terá sido a fonte da unidade de toda a obra de Vieira, que faz dela, em última instância, uma obra profundamente religiosa.

O próprio contexto histórico nacional foi promotor seguro do legado do Padre António Vieira. Recorde-se, uma vez mais, que a vida do jesuíta coincidiu com um dos momentos mais críticos da história nacional – o período da Restauração.

Em 1580, Portugal havia perdido a independência para a coroa de Castela. O rei D. Filipe I de Portugal passou a ser o senhor das terras lusas. No entanto, se nos dois primeiros reinados (Filipes I e II) a integração portuguesa parecia estar de algum modo pacificada, o subsequente reinado de Filipe III trouxe novas circunstâncias políticas e sociais que fizeram com que um grande número de portugueses aspirasse a voltar a ser independente.

Nas primeiras décadas do século XVII, Portugal era, portanto, um país que experimentava tensões tanto a nível interno como nos seus territórios além-mar. Nas terras do império, potências europeias como a Holanda disputavam ferozmente possessões que só a muito custo podiam ser mantidas. Por cá, a participação de fidalgos portugueses nas guerras da coroa castelhana – como a da Catalunha –, assim como as elevadas tributações cobradas no nosso território, fizeram com que ganhasse ânimo o movimento restauracionista, que havia de trazer de volta a independência a Portugal a 1 de Dezembro de 1640.

Longe de ser um episódio isolado, a Restauração havia de conformar-se como um período em que a independência teve de ser consolidada. A aclamação de D. João, o duque de Bragança, como rei trazia uma nova esperança a Portugal. Neste contexto, os púlpitos assumiram um papel legitimador preponderante, como afirmam Bernardo Vasconcelos e Nuno Gonçalo Monteiro:

«Desde a própria época, na qual se fez uma grande campanha propagandística, nos púlpitos e em impressos, que a Restauração foi objecto de um assinalável esforço de legitimação e difusão. Nos púlpitos, proclamou-se a nova dinastia como uma expressão da vontade divina, e tanto o sebastianismo como vários milenarismos conheceram então importantes manifestações.»

Homem esclarecido  e  muito  competente,  Vieira  soube  como  poucos confeccionar uma retórica eficaz, com os ingredientes em voga na época, na quantidade certa e com o grau de ruptura individual necessário, que o transformariam numa figura única. 

Para melhor compreendermos a construção de tamanha personalidade, importa ainda prestarmos igualmente atenção aos três modos de persuasão identificados por Aristóteles, segundo uma perspectiva histórica, e à forma como genericamente se plasmam no labor parenético vieirino.

Para aquele filósofo, as três formas de convencer consistiam no carácter, na disposição dos ouvintes e no discurso. Convence-se pelo carácter quando o «discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o seu autor ser digno de fé»30, sendo este o principal meio de persuasão para o ilustre grego. Convence-se pela disposição dos ouvintes quando «estes são levados a sentir emoções por meio de um discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio»31. E convence-se pelo discurso «quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular».

Pela natureza das definições, não será difícil constatar que a substância dos três meios apresentados variam em função do tempo e do espaço. Se numa época se aprecia um tipo de carácter, noutra, por exemplo posterior, essa ideia pode alterar-se. Se numa época persuade melhor determinado sentimento sugestionado, noutra, em que as pessoas pensem de maneira diferente, os sentimentos apelativos poderão ser já outros. E se numa época é determinada lógica discursiva a que convence, noutra será antes uma lógica diferente a colher adeptos.

Ora, no século XVII o ideal do pregador passava por uma multiplicidade de características que encaixavam capazmente no pensamento barroco. Assim, a credibilidade que Vieira conseguiu construir em torno da sua figura deve-se ao facto de ser visto como uma personalidade invulgar, um homem multifacetado capaz de despertar emoções e agir no mundo. Os substratos do homem letrado, herói apostólico e génio criador compunham ainda mais a sua pública figura, que era reconhecida e à qual estava associada grande credibilidade. O homem combativo, movido pela vocação e que desempenhava uma pluralidade de acções, era valorizado segundo ideais fixados pelas inúmeras biografias de santos ou obras de literatura didáctica comuns na época.

Segundo Margarida Vieira Mendes, a partir da segunda metade do século XVI acontece também uma sacralização do ethos apreciado. A imagem ciceroniana do orador, isto é, a personalidade pública que «explora com sagacidade a alma dos seus concidadãos»33, é absorvida pela imagem do sacerdote cristão. Permanecendo cívica, a oratória deixa de ser maioritariamente laica para se sacralizar. O «loquente, como sacerdote, apresenta-se na persona do mediador e intérprete da palavra divina», e transforma-se, assim, num ser talentoso e iluminado pela sabedoria de Deus, portanto digno de todo o crédito.

Quanto à disposição dos ouvintes provocada pelo orador, o século XVII mostrou-se pródigo no desencadear de sentimentos “excessivos”. Na oratória, como aliás em todas as outras artes barrocas, os sentimentos provocados vão do medo (da morte ou da condenação eterna) ao deleite provocado pelos sentidos. Muitas das vezes, diferentes sentimentos são usados de forma oposta de modo a criar uma antítese capaz de melhor realçar um deles. Assim, a demorada exploração de sentimentos de deleite ou prazer podia ser um prelúdio antitético que melhor reforçava os sentimentos opostos dignos de um cristão. O terror e o deleite extremo eram estados de alma quase hipnóticos que os artistas tentavam provocar, de forma a conseguirem uma total adesão a determinadas ideias.

No que à oratória sacra diz respeito, as adaptações feitas para cada ocasião em que o sermão era pregado constituíam, recorrentemente, uma fonte de argumentos patéticos. A máquina do mundo, com Deus no seu cerne, parecia explicar de maneira lógica os diferentes acontecimentos que iam ocorrendo. Repare-se, a este respeito, no que sobre este aspecto afirma Alcir Pécora na sua obra A Arte de Morrer:

«Nas circunstâncias, justamente, os grandes pregadores do século XVII vão buscar figuras de base para os seus ornatos dialécticos. (…) É parte do decorum do sermão, portanto, adaptar--se à ocasião para modificá-la segundo a ordem superior a ela, de modo a atualizar a palavra divina e mover de maneira eficaz o seu auditório.»

É que as Escrituras, interpretadas com esgotante argúcia, pareciam ter sido escritas para determinadas ocasiões históricas, catapultando a audiência para sentimentos fortes, favoráveis à persuasão.

Quanto ao discurso verbal barroco, a sua lógica persuasiva revelava-se bastante peculiar. Tratava-se de um discurso estilizado, repleto de figuras que orientavam o pensamento de quem o ouvia ou lia. O cultismo, o conceptismo e a lógica binária das coisas, replicando, muitas vezes, a visão maniqueísta do mundo, eram características habituais dos discursos barrocos.

Ainda neste campo, convém não esquecer a existência de uma lógica verbal. Longe de ser reconhecida a arbitrariedade das línguas, a palavra e o mundo pareciam pertencer à mesma realidade. Os elementos relativos ao significante da palavra eram interpretados como pistas importantes para descodificar o mundo. É certamente por isso que António José Saraiva nos fala de um “discurso engenhoso”, que se refere ao discurso cuja ordem não é forçosamente lógica, já que as únicas normas que a palavra não pode quebrar são as da gramática. De facto, para este autor o «essencial do barroco, no que se refere à literatura, reside justamente nesse “discurso engenhoso”». Palavra e mundo pareciam manter relações lógicas sub-reptícias, que só o orador iluminado por Deus conseguia destrinçar, para assombro dos que o ouviam.

Bem podemos, pois, afirmar, em jeito de balanço, que o Barroco foi inequivocamente o período certo para o aparecimento de uma personalidade como Vieira. O gosto artístico, o pensamento da época, as circunstâncias históricas de Portugal e as características pessoais do jesuíta parecem ter sido plenamente conjugadas para que surgisse o indesmentível “caso” em que o nosso orador jesuíta se tornou. Se estivéssemos ainda no século XVII, dir-se-ia talvez com propriedade que Deus não havia permitido que o mundo não tivesse conhecido a luz do génio literário do Padre António Vieira.


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Fonte:
DANIEL JOSÉ SALVADOR JOANA: “DINÂMICAS DE ETHOS, PATHOS E LOGOS NOS SERMÕES DE QUARTA-FEIRA DE CINZA DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA”. (Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa: Investigação e Ensino apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação do Professor Doutor Albano Figueiredo). Coimbra, 2010.


Nota:
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