16/01/2016

Maria Rosa Mística - Sermão III, de Padre Antônio Vieira

Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
---
Disponível também em "GoogleDrive", no link abaixo:



---

A semonística de Vieira: primeiras aproximações
  
A obra de Vieira, com destaque para os seus Sermões, sobreviveu à sua morte e tornou-se um caso raro de perenidade e influência que lhe garante o status de um“clássico”. Os seus textos oratórios (mais de 200 sermões) chegaram até nós, não na forma em que foram pronunciados, mas, quase todos, no formato em que o seu autor quis dar ao prepará-los para a impressão. Tarefa a que dedicou os últimos vinte anos da sua longa vida.

O que fez desse pregador português, que não teve em vida o sucesso dos seus projetos, a fama e o prestígio não só em Portugal, mas também em diversos outros países da Europa?

Em primeiro lugar destaque-se a profunda ligação entre o texto da maior parte dos sermões e as circunstâncias concretas, históricas, em que foram pregados. O sermão era para Vieira, não apenas uma forma de edificação moral e espiritual, mas também um instrumento de intervenção na vida política e social, uma arma que manejava com destreza em defesa das grandes causas a que se dedicou.

Através dos seus sermões podemos acompanhar o desenrolar dos principais acontecimentos e problemas da sociedade portuguesa (e brasileira) do século XVII: a guerra com a Holanda em terras do Brasil, em textos como o “Sermão de Santo Antônio, havendo os holandeses levantado o sítio posto à Baía” (1638) ou o “Sermão pelo bom sucesso das nossas armas contra as da Holanda” (1640); a Restauração e a subseqüente guerra com a Espanha, no “Sermão dos Bons Anos” ou no “Sermão de Santo Antônio tendo-se reunido às cortes”, pregados em 1642; a preocupação com a situação econômica do país em guerra com a Espanha e as propostas para sanar essa situação no “Sermão de São Roque” de 1644.

Além disso, destaca-se a dura e prolongada luta em defesa dos índios do Maranhão contra os colonos que pretendiam escravizá-los no chamado “Sermão das Tentações” (1653) ou no “Sermão da Epifania” (1662).

Em um dos seus sermões - o “Sermão da Sexagésima”, o mais conhecido, aquele que o autor escolheu para abrir o primeiro volume dos que publicou - Vieira chega a elaborar uma espécie de “tratado de Retórica”, um sermão que pretende ensinar como se deve pregá-lo, simultaneamente persuasivo e eficaz, capaz de “convencer e converter” os ouvintes.

Imaginemos uma de suas pregações: Brasil, cidade de São Salvador, palco das pregações de Vieira, local onde passou a maior parte de sua vida. Imaginemos um desses sermões: “A missa começa. No centro da nave, as mulheres assentadas com suas mucamas, nas laterais os homens bons de pé. Os negros ficavam de fora devido ao seu cheiro ‘desagradável’ (HOORNAERT, 1992: 293). O cheiro do incenso queimando junta - se ao odor das velas que iluminam o templo. Ao fundo o coro entoa um salmo gregoriano, que ao se unir às miríades de anjos e santos emoldurados por toda parte, elevam os sentidos a um “êxtase” quase místico. Segue-se a liturgia da palavra e aproxima-se a hora mais importante: a leitura do Evangelho. Cristo vai falar por meio das palavras dos homens. A história revelará o seu sentido: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!” (Ap. 2,7a).

Vieira se aproxima do púlpito. A ansiedade aumenta. O pregador veste uma simples batina preta, que o caracteriza como jesuíta. Ele sabe que deve permanecer em silêncio, de cabeça baixa enquanto a Santa Escritura estiver sendo lida. Então, repentinamente o silêncio é quebrado e uma voz branda do alto do púlpito: “Protegerei esta cidade e a salvarei por amor de Davi, meu servo” (2Rs 19:3). Por um momento parece que a Bahia é Jerusalém e Vieira, Natã, o profeta. Como ele também desempenharia o papel de “intérprete dos sentidos da história”, numa relação de aproximação e distanciamento da lógica do Estado.

Como sabemos, a missa barroca, diferente do intelectualismo dos cultos protestantes, exaltava o emocional dos fiéis. Era o predomínio da voz e das imagens sobre o raciocínio. Vimos que o sermão, depois de Trento, voltava a ter sua importância litúrgica: não apenas por ser feito em “língua nativa”, mas por ser também, o grande espaço de educação, catequese e da análise política dos acontecimentos “sub specie fides”. Como lembra Hansen (199:19):

O bom pregador deveria construir um ‘discurso engenhoso’: através de analogias retirar tabularmente ‘metáforas da Metáfora”. Eis no que consistia “a civilização da Palavra”: “A civilização pela palavra correspondia, no caso, à divulgação católica da Retórica antiga em duas frentes: de um lado, o ensino específico das técnicas e, ainda, das artes e das letras em geral segundo o modelo generalizado da Retórica aristotélica e das versões latinas, nos colégios jesuíticos; de outro o uso particular de seus preceitos, estilos e erudição pelos pregadores nas variadíssimas circunstâncias do magistério da fé” (HANSEN, 2003: 31).

É certo que no domínio das técnicas retóricas Vieira não é propriamente um inovador: sabemos que utiliza fundamentalmente os processos que a escola ensinava, seguindo os tratados clássicos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. Tratados que haviam sido adaptados aos objetivos específicos da oratória cristã do século XVII.

Mas se as técnicas são comuns a quase todos os oradores da época, a forma de pô-las em prática, revela o gênio inconfundível de Vieira, o seu inigualável talento de arquitetar argumentos, explorar conceitos, trabalhar as palavras.

Os sermões de Vieira encantam não apenas pela estrutura lógica como pela organização melódica e por sua densidade simbólica. Para fazer da sua palavra um meio eficaz de intervenção e atuação, Vieira recorre naturalmente às técnicas que a Retórica (a disciplina fundamental no curriculum escolar e na formação intelectual dos homens da época) sistematizara e codificara de acordo com as teses do catolicismo tridentino.

Na lógica do projeto colonial português, os jesuítas desempenavam a função de “missionários oficiais do Reino”. Assim: “Nos séculos XVI e XVII, nas missões jesuítas do Brasil e do Maranhão e Grão Pará, a iniciativa de fazer da pregação oral o instrumento privilegiado de divulgação da Palavra divina pressupunha que a luz natural da Graça inata ilumina a mente dos gentios objeto da catequese, tornando-os predispostos à conversão”. (HANSEN, 2003, p. 21). É será exatamente, nessa discussão, em torno do caráter do “novo auditório” (gentios) que os pregadores jesuítas se confrontaram com os interesses do sistema colonial.

Basta citarmos o “Sermão das Tentações” (1ª Dominga da Quaresma de 1653) onde Vieira verbera contra os colonos do Maranhão por escravizarem os índios. Depois de ter citado um versículo de Isaías que traduz assim: “Brada, pregador, e não cesses; levanta a tua voz como trombeta, desengana o meu povo, anuncia-lhe os seus pecados e dize-lhe o estado em que estão”, afirma: “Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides diretos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida.” Finalmente, sobre a vergonhosa exploração de que os índios eram vítimas exprime-a nesta exclamação, de impressionante plasticidade: “Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!”

O sermão era, para Vieira, a categoria de mediação entre a ação humana no mundo e os desígnios divinos na história. Essa estreita correspondência entre exegese bíblica e narrativa histórica estruturará sua obra e seu projeto educativo. Neste contexto caberia ao intelectual - pregador realizar a atualização do texto sagrado à urgência dos acontecimentos humanos.

Para ele sagrado e profano, tempo e história, Deus e o Homem, encontram-se claramente interligados. Não há exclusividade da ação divina ou plena autonomia humana. Nesta perspectiva, o tempo é o melhor intérprete das Escrituras.

A hermenêutica de Vieira busca extrair da “retórica das coisas” os “sinais do Ser no mundo”. Os acontecimentos são mais que símbolos da presença de Deus: são os lugares específicos de sua manifestação na história. E, os homens, como “seres em ação” indicam, com seus atos, a realidade divina.

Assim, a “ação” torna-se “medida de mediação” entre Deus e o homem. A oratória de Vieira busca conscientizar a fidalguia e o clero português do “kairós”, do seu papel na história. Com seus sermões Vieira buscava “convencer”, “ensinar” e “mover” o seu auditório (D. João IV, os nobres, os teólogos, os letrados de Coimbra e o Santo Ofício) da realidade inexorável dos novos tempos.

No entanto, se a “máquina mercante” era irreversível, importava compreendê-la e dominá-la, criando uma estrutura lusa semelhante, em muito, à existente na Holanda e na Inglaterra. Porém, Vieira jamais confundiu o Reino que estava por vir com a simples vitória portuguesa. Dessa forma texto, acontecimento e sermão são elementos construtivos de um projeto de cristandade capaz de unificar, mesmo que de forma tensa e incompleta, a “ética de princípio” (a virtus cristã) e a “ética da responsabilidade” (a razão de Estado), “o amor de Cristo” e a “vontade de César”.

Se o discurso de Sepúlveda se fundava em Aristóteles (“escravidão natural”) para legitimar moralmente, por meio dos “benefícios” da conversão ao cristianismo, a escravidão, a violência e a destruição indígena. A proposta de Las Casas apontava para uma direção essencialmente contrária. Para o frade e teólogo dominicano, a única relação legítima entre os povos, a única religião verdadeira, é aquela fundamentada no diálogo construtivo e no reconhecimento do “outro” como plenamente humano. Além disso, a escravidão, ainda que aceita por diversas culturas, era incompatível com o “Direito natural” e a “vontade divina”.

Tanto Las Casas quanto Vieira acabaram percebendo que a Europa não estava disposta a ceder à força dos argumentos, pelo contrário: a tese da inferioridade dos índios e negros era na verdade um artifício para encobrir a brutal exploração que lhes era infringida. No Sermão da Epifania, pregado na Capela Real em 1662, Vieira chega a traçar uma fina ironia entre a violência dos colonos e o que lhes era tido como a maior das barbáries indígenas: a antropofagia: “Dizem que se não podem sustentar, nem o Estado se pode conservar doutro modo sem a escravidão dos índios. Vede que razão para se ouvir com ouvidos católicos e para se articular e apresentar diante de um tribunal ou rei cristão! Não podemos sustentar doutra sorte, senão com a carne e sangue dos miseráveis índios! Então eles são os que comem gente? Nós, nós somos os que imos comer a deles!”.

Nesse mesmo sermão Vieira defende a igualdade inicial de todos os povos: “que os homens de qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé”. E se não haveria justificativa bíblica ou natural para as desigualdades étnicas, muito menos para as sociais e econômicas: “E entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza porque todos são filhos de Deus; nem há diferença de cor porque todos são brancos por meio do batismo”.

Embora, quanto aos negros Vieira não tenha mantido a mesma coerência que teve na defesa dos índios e judeus, e de se notar a força e a beleza da analogia feita por ele entre as abelhas e os negros no “Sermão do Rosário dos Pretos” pregado em um engenho em 1633:

Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre o outro. Não há trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de quem disse o poeta. Sic von non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colméias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.

No entanto, como nos lembra Santos (2006: p. 187 e p. 188): “(...) Pese embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de Sepúlveda que prevaleceu, porque só esse será compatível com as necessidades do novo sistema mundial capitalista e colonial centrado na Europa” e ainda: “Com matrizes várias, é o paradigma de Sepúlveda que ainda hoje prevalece na posição ocidental sobre os povos ameríndios e os povos africanos (...)”.

Repensar a história do Ocidente e a descobrir “o rosto do Outro” que como afirma Lévinas: “nos desafia sempre”. Nesse sentido Las Casas e Vieira, cada um a seu modo, nos provam que “outro caminho era possível”.

Parece ser essa descoberta imprescindível nesses tempos em que se busca construir uma razão “pós-colonial”. Pois, se por um lado a “retórica do império” tem sido o paradigma hegemônico, nada obriga a acreditar que precisa ser assim eternamente. A sermonística utópica de Vieira nos convida a ver que não existe uma única possibilidade de nos relacionarmos com mundo e tempo.


 E ele, como herdeiro da tradição profética judáica e do messianismo cristão (presente na Espera ativa pelo V Império) acreditava que a história estava grávida de utopias, cabendo aos intelectuais a “leitura desses sinais” e a ação para que eles se realizassem. Pois que “A verdadeira fidalguia é a ação”.

Antonio Vieira era um altruísta, como um “bodhisatva cristão,” preferia escolher viver nesse mundo intensamente, servindo ao próximo, mesmo que com a incerteza de que se salvaria, que fugir para um céu tranqüilo ou aceitar a doce resignação. Como ele mesmo afirmava aos seus noviços:

Imos àquela portaria, vêmo-nos cercados de muitos que andam pedindo e se lhes perguntamos por que pedem à Companhia, respondem: Padre, porque me quero salvar e ir ao céu. Se para isso pedis: Nescitis quid petatis. Se só quereis salvar a vossa alma e ir ao céu, ide a outras religiões muito santas, mas não à Companhia. O espírito da Companhia não é só salvar a alma própria, senão as alheias; não é só ser bem aventurado, mas fazer- se bem-aventurados; não é só ir ao céu, mas levar e meter no céu todos os que, por falta de fé ou graça. Andam juntos dele. Este é o altíssimo fim que há de pôr diante dos olhos todo o noviço da Companhia. (VIEIRA apud NISKIER, 2003, 19).

Portanto, à parte suas contradições e limites, eis o maior legado de Vieira: o tempo válido para Vieira era é oportuno e o tempo válido é o “agora”.


---
Fonte:

Rodson Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697”. (Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário