Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em:
↓
---
Disponível também em "GoogleDrive", no link abaixo:
↓
---
A semonística de Vieira: primeiras aproximações
A obra de Vieira, com destaque para os seus
Sermões, sobreviveu à sua morte e tornou-se um caso raro de perenidade e influência
que lhe garante o status de um“clássico”. Os seus textos
oratórios (mais de 200 sermões) chegaram até nós, não na forma em que foram
pronunciados, mas, quase todos, no formato em que o seu autor quis dar ao
prepará-los para a impressão. Tarefa a que dedicou os últimos vinte anos da sua
longa vida.
O que fez desse pregador português, que não teve em vida o sucesso dos
seus projetos, a fama e o prestígio não só em Portugal , mas também em diversos
outros países da Europa?
Em primeiro lugar destaque-se a profunda ligação entre o texto da maior
parte dos sermões e as circunstâncias concretas, históricas, em que foram
pregados. O sermão era para Vieira, não apenas uma forma de edificação moral e
espiritual, mas também um instrumento de intervenção na vida política e social,
uma arma que manejava com destreza em defesa das grandes causas a que se
dedicou.
Através dos seus sermões podemos acompanhar o desenrolar dos principais
acontecimentos e problemas da sociedade portuguesa (e brasileira) do século
XVII: a guerra com a Holanda em terras do Brasil, em textos como o “Sermão de
Santo Antônio, havendo os holandeses levantado o sítio posto à Baía” (1638) ou
o “Sermão pelo bom sucesso das nossas armas contra as da Holanda” (1640); a
Restauração e a subseqüente guerra com a Espanha, no “Sermão dos Bons Anos” ou
no “Sermão de Santo Antônio tendo-se reunido às cortes”, pregados em 1642; a
preocupação com a situação econômica do país em guerra com a Espanha e as
propostas para sanar essa situação no “Sermão de São Roque” de 1644.
Além disso, destaca-se a dura e prolongada luta em defesa dos índios do
Maranhão contra os colonos que pretendiam escravizá-los no chamado “Sermão das
Tentações” (1653) ou no “Sermão da Epifania” (1662).
Em um dos seus sermões - o “Sermão da Sexagésima”, o mais conhecido,
aquele que o autor escolheu para abrir o primeiro volume dos que publicou -
Vieira chega a elaborar uma espécie de “tratado de Retórica”, um sermão que
pretende ensinar como se deve pregá-lo, simultaneamente persuasivo e eficaz,
capaz de “convencer e converter” os ouvintes.
Imaginemos uma de suas pregações: Brasil, cidade de São Salvador , palco das
pregações de Vieira, local onde passou a maior parte de sua vida. Imaginemos um
desses sermões: “A missa começa. No centro da nave, as mulheres assentadas com
suas mucamas, nas laterais os homens bons de pé. Os negros ficavam de fora
devido ao seu cheiro ‘desagradável’ (HOORNAERT, 1992: 293). O cheiro do incenso
queimando junta - se ao odor das
velas que iluminam o templo. Ao fundo o coro
entoa um salmo gregoriano, que ao se unir às miríades de anjos e santos emoldurados por
toda parte, elevam os sentidos a um “êxtase” quase místico. Segue-se a liturgia
da palavra e aproxima-se a hora mais importante: a leitura do Evangelho. Cristo
vai falar por meio das palavras dos homens. A história revelará o seu sentido:
“Quem tem ouvidos para ouvir ouça!” (Ap. 2,7a).
Vieira se aproxima do púlpito. A ansiedade
aumenta. O pregador veste uma simples batina preta, que o caracteriza como jesuíta. Ele sabe que
deve permanecer em silêncio, de cabeça baixa enquanto a Santa Escritura estiver
sendo lida. Então, repentinamente o silêncio é quebrado e uma voz branda do
alto do púlpito: “Protegerei esta cidade e a salvarei por amor de Davi, meu
servo” (2Rs 19:3). Por um momento parece que a Bahia
é Jerusalém e Vieira, Natã, o profeta. Como
ele também desempenharia o papel de “intérprete dos sentidos da história”, numa
relação de aproximação e distanciamento da lógica do Estado.
O bom pregador deveria construir um ‘discurso engenhoso’: através de
analogias retirar tabularmente ‘metáforas da Metáfora”. Eis no que consistia “a
civilização da Palavra”: “A civilização pela palavra correspondia, no caso, à
divulgação católica da Retórica antiga em duas frentes: de um lado, o ensino
específico das técnicas e, ainda, das artes e das letras em geral segundo o
modelo generalizado da Retórica aristotélica e das versões latinas, nos
colégios jesuíticos; de outro o uso particular de seus preceitos, estilos e
erudição pelos pregadores nas variadíssimas circunstâncias do magistério da fé”
(HANSEN,
2003: 31).
É certo que no domínio das técnicas
retóricas Vieira não é propriamente um inovador: sabemos que utiliza
fundamentalmente os processos que a escola ensinava, seguindo os tratados
clássicos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. Tratados que haviam sido
adaptados aos objetivos específicos da oratória cristã do século XVII.
Mas se as técnicas são comuns a quase todos os oradores da época, a
forma de pô-las em prática, revela o gênio inconfundível de Vieira, o seu
inigualável talento de arquitetar argumentos, explorar conceitos, trabalhar as
palavras.
Os sermões de Vieira encantam não apenas pela estrutura lógica como pela organização
melódica e por sua densidade simbólica. Para
fazer da sua palavra um meio eficaz de intervenção e atuação, Vieira recorre
naturalmente às técnicas que a Retórica (a disciplina fundamental no curriculum
escolar e na formação intelectual dos homens da época) sistematizara e
codificara de acordo com as teses do catolicismo tridentino.
Na lógica do projeto colonial português, os jesuítas desempenavam a
função de “missionários oficiais do Reino”. Assim: “Nos séculos XVI e XVII, nas
missões jesuítas do Brasil e do Maranhão e Grão Pará, a iniciativa de fazer da
pregação oral o instrumento privilegiado de divulgação da Palavra divina
pressupunha que a luz natural da Graça inata ilumina a mente dos gentios objeto
da catequese, tornando-os predispostos à conversão”. (HANSEN, 2003, p. 21). É
será exatamente, nessa discussão, em torno do caráter do “novo auditório”
(gentios) que os pregadores jesuítas se confrontaram com os interesses do
sistema colonial.
Basta citarmos o “Sermão das Tentações” (1ª
Dominga da Quaresma de 1653) onde Vieira verbera contra os colonos do Maranhão
por escravizarem os índios. Depois de ter citado um versículo de Isaías que
traduz assim: “Brada, pregador, e não cesses; levanta a tua voz como trombeta, desengana o
meu povo, anuncia-lhe os seus pecados e dize-lhe o estado em que estão”,
afirma: “Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de
Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de
condenação, e todos vos ides diretos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós
também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida.” Finalmente, sobre a
vergonhosa exploração de que os índios eram vítimas exprime-a nesta exclamação,
de impressionante plasticidade: “Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e
essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!”
O sermão era, para Vieira, a categoria de mediação entre a ação humana
no mundo e os desígnios divinos na história. Essa estreita correspondência
entre exegese bíblica e narrativa histórica estruturará sua obra e seu projeto
educativo. Neste contexto caberia ao intelectual - pregador realizar a
atualização do texto sagrado à urgência dos acontecimentos humanos.
A hermenêutica de Vieira busca extrair da
“retórica das coisas” os “sinais do Ser no mundo”. Os acontecimentos são mais
que símbolos da presença de Deus: são os lugares específicos de sua manifestação
na história. E, os homens, como
“seres em ação” indicam, com seus atos, a realidade divina.
Assim, a “ação” torna-se “medida de
mediação” entre Deus e o homem. A oratória de Vieira busca conscientizar a
fidalguia e o clero português do “kairós”, do seu papel na história. Com seus
sermões Vieira buscava “convencer”, “ensinar” e “mover” o seu auditório (D.
João IV, os nobres, os teólogos, os letrados de Coimbra e o Santo Ofício) da
realidade inexorável dos novos tempos.
No entanto, se a “máquina mercante” era
irreversível, importava compreendê-la e dominá-la, criando uma estrutura lusa
semelhante, em muito, à existente na Holanda e na Inglaterra. Porém, Vieira
jamais confundiu o Reino que estava por vir com a simples vitória portuguesa.
Dessa forma texto, acontecimento e sermão são elementos construtivos de um
projeto de cristandade capaz de unificar, mesmo que de forma tensa e
incompleta, a “ética de princípio” (a virtus cristã) e a “ética da
responsabilidade” (a razão de Estado), “o amor de Cristo” e a “vontade
de César”.
Se o discurso de Sepúlveda se fundava em
Aristóteles (“escravidão natural”) para legitimar moralmente, por meio dos
“benefícios” da conversão ao cristianismo, a escravidão, a violência e a
destruição indígena. A proposta de Las Casas apontava para uma direção
essencialmente contrária. Para o frade e teólogo dominicano, a única relação
legítima entre os povos, a única religião verdadeira, é aquela fundamentada no
diálogo construtivo e no reconhecimento do “outro” como plenamente humano. Além disso, a
escravidão, ainda que aceita por diversas culturas, era incompatível com o
“Direito natural” e a “vontade divina”.
Tanto Las Casas quanto Vieira acabaram
percebendo que a Europa não estava disposta a ceder à força dos argumentos,
pelo contrário: a tese da inferioridade dos índios e negros era na verdade um
artifício para encobrir a brutal exploração que lhes era infringida. No Sermão
da Epifania, pregado na Capela Real em 1662, Vieira chega a traçar uma fina
ironia entre a violência dos colonos e o que lhes era tido como a maior das barbáries indígenas: a
antropofagia: “Dizem que se não podem sustentar, nem o Estado se pode conservar
doutro modo sem a escravidão dos índios. Vede que razão para se ouvir
com ouvidos católicos e para se articular e apresentar diante de um tribunal ou
rei cristão! Não podemos sustentar doutra sorte, senão com a carne e sangue dos
miseráveis índios! Então eles são os que comem gente? Nós, nós somos os que
imos comer a deles!”.
Nesse mesmo sermão Vieira defende a
igualdade inicial de todos os povos: “que os homens de qualquer cor, todos são
iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé”. E se não haveria
justificativa bíblica ou natural para as desigualdades étnicas, muito menos
para as sociais e econômicas: “E entre cristão e cristão não há diferença de
nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza porque todos são
filhos de Deus; nem há diferença de cor porque todos são brancos por meio do
batismo”.
Embora, quanto aos negros Vieira não tenha
mantido a mesma coerência que teve na defesa dos índios e judeus, e de se notar
a força e a beleza da analogia feita por ele entre as abelhas e os negros no
“Sermão do Rosário dos Pretos” pregado em um engenho em 1633:
Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam e vós
trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é
um trabalho sobre o outro. Não há trabalhos mais doces que o das vossas
oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de quem disse o
poeta. Sic von non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colméias.
As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.
No entanto, como nos lembra Santos (2006: p.
187 e p. 188): “(...) Pese embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de
Sepúlveda que prevaleceu, porque só esse será compatível com as necessidades do
novo sistema mundial capitalista e colonial centrado na Europa” e ainda: “Com
matrizes várias, é o paradigma de Sepúlveda que ainda hoje prevalece na posição
ocidental sobre os povos ameríndios e os povos africanos (...)”.
Repensar a história do Ocidente e a
descobrir “o rosto do Outro” que como
afirma Lévinas: “nos desafia sempre”. Nesse sentido Las Casas e Vieira, cada um
a seu modo, nos provam que “outro caminho era possível”.
Parece ser essa descoberta imprescindível
nesses tempos em que se busca construir uma razão “pós-colonial”. Pois, se por
um lado a “retórica do império” tem sido o paradigma hegemônico, nada obriga a
acreditar que precisa ser assim eternamente. A sermonística utópica de Vieira
nos convida a ver que não existe uma única possibilidade de nos relacionarmos
com mundo e tempo.
E ele, como
herdeiro da tradição profética judáica e do messianismo cristão (presente na
Espera ativa pelo V Império) acreditava que a história estava grávida de
utopias, cabendo aos intelectuais a “leitura desses sinais” e a ação para que
eles se realizassem. Pois que “A verdadeira fidalguia é a ação”.
Antonio Vieira era um altruísta, como um “bodhisatva
cristão,” preferia escolher viver nesse mundo intensamente, servindo ao
próximo, mesmo que com a incerteza de que se salvaria, que fugir para um céu
tranqüilo ou aceitar a doce resignação. Como
ele mesmo afirmava aos seus noviços:
Imos àquela portaria,
vêmo-nos cercados de muitos que andam pedindo e se lhes perguntamos por que
pedem à Companhia, respondem: Padre, porque me quero salvar e ir ao céu. Se
para isso pedis: Nescitis quid petatis. Se só quereis salvar a vossa alma e ir
ao céu, ide a outras religiões muito santas, mas não à Companhia. O espírito da
Companhia não é só salvar a alma própria, senão as alheias; não é só ser bem
aventurado, mas fazer- se bem-aventurados; não é só ir ao céu, mas levar e
meter no céu todos os que, por falta de fé ou graça. Andam juntos dele. Este é
o altíssimo fim que há de pôr diante dos olhos todo o noviço da Companhia. (VIEIRA
apud NISKIER, 2003, 19).
Portanto, à parte suas contradições e
limites, eis o maior legado de Vieira: o tempo válido para Vieira era é
oportuno e o tempo válido é o “agora”.
---
Fonte:
Fonte:
Rodson
Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como
cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697” . (Tese apresentada ao
Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a
orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário