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A obra
A sermonística de Vieira sintetiza elementos da
retórica clássica, da retórica cristã e da filosofia e teologia tomistas. O
mundo de Vieira, portanto era profundamente religioso e místico. Seus sermões
seguiam as determinações do Concílio de Trento e buscavam abarcar todo o
calendário eclesiástico ou ano litúrgico. Convém saber mais sobre isso.
Comecemos pela idéia de tempo.
A noção do tempo a que estamos acostumados é linear e
homogênea. O tempo flui do passado para o futuro passando pelo presente. Esse é
o tempo que experimentamos no nosso cotidiano. Mas nem sempre foi assim. Como lembra Eliade (2002)
o tempo não é vivenciado da mesma forma em sociedades arcaicas e modernas. O
tempo para uma sociedade religiosa é cíclico e heterogêneo.
Os ritos atualizam os mitos, revivem na consciência
das sociedades, graças ao intermédio de um ritual, da repetição de gestos e
palavras, o sentido do próprio tempo e da realidade: “na religião como na magia a
peridiocidade significa, sobretudo a utilização indefinida de um tempo místico tornado
presente. Todos os ritos têm a propriedade de se passarem agora, neste
momento. O tempo que viu o acontecimento comemorado ou repetido pelo ritual
em questão é tornado presente, “re-presentado”, se assim se pode dizer,
tão recuado no tempo quando se possa imaginar” (ELIADE, 2003, p. 317).
No calendário cristão “a Paixão de Cristo”, a sua
morte e a sua ressurreição, não são simplesmente comemoradas no decurso dos
ofícios da Semana Santa: elas sucedem verdadeiramente então sob os olhos
dos fiéis. E um verdadeiro cristão deve sentir-se contemporâneo desses
acontecimentos trans-históricos, visto que, ao repetir-se, o tempo
teofânico se tornou presente” (ELIADE, 20003, p. 317). Tudo isso implica em
que, na liturgia, não se pode pensar no tempo apenas em sucessão linear de
datas.
O ano eclesiástico, diz respeito à série de tempos e
dias santos ,
definidos pela Igreja, que começa com o Primeiro Domingo do Advento e
fecha na última semana depois de Pentecostes, precisamente no sábado posterior
ao último domingo do tempo comum, ou Solenidade do Cristo Rei do Universo.
A celebração periódica dessas solenidades refere-se à memória, guarda e ensino
dos mistérios e dogmas da Igreja, entendidos ortodoxamente como legados de Cristo. Para
uma leitura apropriada dos sermões de Vieira, primeiro é necessário
compreendê-lo dentro do pensamento e dos pressupostos filosóficos e teológicos
do período.
Segundo a teologia católica, o ano litúrgico deve ser
compreendido dentro da história e economia da salvação: “Ele é a
celebração-atuação do mistério de Cristo no tempo. Portanto o ano litúrgico não
pode ser reduzido a um simples calendário de dias e meses aos quais estão
vinculadas determinadas celebrações religiosas; ele é, ao invés, a presença na
forma sacramental - ritual do mistério de Cristo no espaço de um ano” (AUGÉ,
2004, p. 281). Essa relação entre tempo sacramental e ritual é particularmente
importante para os sermões de Vieira: “O componente ‘tempo’ é particularmente
importante na celebração do mistério de Cristo no ano litúrgico. De fato para o
cristão o tempo
é a categoria dentro da qual se realiza a salvação” (AUGÉ: 2004 p. 281), os
sermões de Vieira, são acima de tudo, tentativas de “ler” o sentido desses
mistérios no seu tempo.
A
temporalidade dos sermões não é, portanto, mítica ou cíclica. Nem há adesão ao
panteísmo de Espinosa (1632-1677). Vieira também não é um idealista que lia o
mundo histórico como
ilusão ou aparência. Ele estabeleceu uma noção de tempo baseado na separação
entre o Perfeito e o imperfeito e de um tempo regulador, ao mesmo tempo inerente,
do seu programa profético.
É
no conceito de sacramento que ele encontra sua chave hermenêutica dos
atos do presente: “como o passado prefigura a realização do sentido
providencial da história, é retomado por Vieira no ato da pregação como exemplo
a ser imitado pela audiência para aperfeiçoamento do ‘corpo místico’ do
Estado”. (HANSEN, 2002).
O sermão é a forma de atualizar e interpretar a
providência divina no presente além de instrumento de mobilização política: “É
preciso lembrar, no entanto, que hoje lemos os sermões autonomizando-os da sua
prática. Em seu tempo, eram ouvidos. Na relação estabelecida entre voz e
audição, propunham que a Luz divina acesa na consciência do Padre e
exteriorizada em seu corpo na ação retórica era a mesma que legitimava as
instituições políticas como
naturalidade da hierarquia” (HANSEN, 2002).
Vieira
era um homem da igreja, um jesuíta. Portanto seus sermões eram “ortodoxamente
polêmicos”, ou seja, papistas, monarquista e anti-heréticos. Vieira acreditava
que sua voz era, segundo o Concílio de Trento, a forma por excelência de
mediação das verdades da fé. Como jesuíta concordava com a condenação da
leitura individual da Bíblia defendida pelos protestantes. Negava ainda a idéia
da incompatibilidade entre poder político e moral cristã de Maquiavel, ao mesmo
tempo em que se opunha à Inquisição, defendendo a inclusão de judeus e índios
no futuro império português.
Sua
visão da história é providencialista. Segundo Pécora (2003), a retórica de
Vieira deve ser entendida como uma técnica de produção discursiva do que se
supõe ser uma ocasião favorável à manifestação da presença
divina, cuja latência nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover
o auditório. A idéia de mover tradicional na retórica, tem para Vieira o
sentido de educação, re-orientação moral e política da nação às finalidades
cristãs inscritas na natureza divinamente criada por Deus e na história
humanamente produzida pelos homens. Implica em afirmar que o sermão não era uma
mera peça de literatura ou piedade, mas um ato de intervenção política coletiva
que precisava ser apto a propor hipóteses úteis e legítimas à administração dos
Estados católicos da época.
Para o jesuíta, no âmbito da história, aspectos
temporais e espirituais, em última instância, reportam-se a Deus, não gozando
de completa autonomia de um em relação ao outro. Da mesma maneira, nenhum
desses aspectos pode ser absoluto na determinação do gênero do sermão, que
contempla justamente a descoberta da articulação entre ambos. Isso é
precisamente o significado sacramental de seu texto.
O termo Sacramentum (Sacramento) é de origem
latina e apareceu na Igreja no século III, com Tertuliano (152-222). No Novo
Testamento a palavra foi usada para traduzir mysterion (mistério, p. ex.
Ef 5,32). Segundo a famosa definição de Santo Agostinho, “Sacramento é um sinal
externo e visível de uma graça interna e invisível”. Portanto, sacramento é
todo ato da Igreja capaz de transmitir graça. Como sabemos, a discussão sobre
os sacramentos e a graça foi uma das grandes polêmicas entre católicos e
protestantes. Pécora chama a atenção como essa categoria ganhou destaque no
campo da filosofia e da política da época. O sacramento ou mistério é a
categoria de mediação entre o humano e o divino, o particular e o universal, o
natural e o sobrenatural, o passado e o futuro, a política e a fé:
O vocabulário católico em torno da
tópica do Mistério sacramental pretende dar conta dessa conjunção, na
qual a sucessão dos dias realiza uma crônica da Providência que se atualiza a
cada momento. Aqui, os acontecimentos históricos e suas redes de causas exigem
ser interpretados como articulações de um relato tão inspirado quanto o
das Escrituras. Dai a importância, para os oradores sacros, de associar a
tradição cristã a exegese bíblica, enquanto ciência da interpretação alegórica
dos sentidos das Escrituras, àquela da retórica antiga, mais restrita à análise
dos enuciados persuassivos. (PÉCORA, 2003, p. 12).
Para Vieira a verdadeira hermenêutica é a da
realidade em sua totalidade e não apenas as Escrituras. Havendo uma dupla
interpretação dos fatos pelos textos, e destes pelas coisas:
No signo –coisa da Bíblia ou na coisa – signo da história,
os objetos que se apresentam ao intérprete têm o mesmo estatuto de figuras que
precisam ser lidas como fatos históricos, mas também como mensagem
providencial. No modelo católico da oratória sacra dos séculos XVI e XVII, pois
as Escrituras estão refiguradas nos eventos, de tal modo que a história
contemporânea aos pregadores é, especularmente, a versão mais atualidade do
Texto, tanto no sentido de ser mais recente no tempo, quanto no sentido de
efetuar um
avanço na
destinação providencial do universo criado. (PÉCORA, 2003, p. 12).
O orador sacro, e Vieira sabia disso, precisava
conhecer bem tanto as palavras quanto as coisas, de modo a obrigar ambas a se
mostrarem e a se declararem no que havia de providencial e constante. Como
sintetiza Pécora (2003, p. 13):
A “retórica das coisas”,que é o sermão, descobre e opera esses índices
de imitação. Dito de outra maneira: o sermão constitui-se analogicamente à
retórica divina impressa, desde sempre, nas coisas criadas, que a hermenêutica,
todavia, apenas descobre gradualmente, no discurso do tempo. A partir daí,
também é possível considerar, para tocar um outro ponto iniludível deste tipo
de sermão, que se constitui como uma ação verbal de descoberta e atualização
dos sinais divinos ocultos na ação do mundo, com vistas à produção de um
movimento de correção moral do auditório.
O locus espacial e temporal onde esse sermão
era o calendário eclesiástico. Portanto, convém compreender como se organizava
a estrutura litúrgica do catolicismo seiscentista. A sermonística de Vieira
ocupava-se, principalmente, de dois períodos litúrgicos: a das principais
quadras (quaresma, epifania, sexagésima etc) e o das festas dos santos ou
santoral, em especial a Virgem Maria e Santo Antonio, nas quais é lido o
evangelho do dia, definidas pelo calendário litúrgico. Como sabemos, Vieira era
hábil na arte de conciliar o tema do sermão (previamente estabelecido
pela Igreja) e o ductus (situação do momento e características
especifica do auditório).
As origens do calendário da Igreja remontam ao
Judaísmo. No início, a Igreja cristã esteve ligada com a sinagoga, e da
sinagoga tomou o calendário básico de semana, e deu um outro enfoque: domingo,
o primeiro dia da semana, dia da ressurreição, e não mais o sábado, tornou-se o
centro da semana. É interessante observarmos que a maneira de chamar os nomes
dos dias em português é bem cristã: Dia do Senhor (Domingo) e 2ª, 3ª e 4ª... e
não segundo o nome dos planetas, como acontece nos países anglo-saxão (sunday,
saturday, thursday). O domingo é o primeiro dia da semana. Entretanto, na
prática, o domingo faz parte do fim da semana.
O ano litúrgico foi, em grande parte, influenciado
pelas mudanças que ocorreram com o estabelecimento do cristianismo e com o
influxo daqueles que parcialmente se converteram do paganismo. A Festa de Natal
e Epifania se desenvolveram como meios de se opor ao paganismo ou cristianizar
as festas relacionadas com o solstício do inverno. O nascimento do Sol
Invencível (Saturno), dies natalis Solis Invicti era celebrado em Roma
por volta do dia 21 de dezembro com duração de uma semana. Provavelmente por
volta de 336 os cristãos fizeram do dia 25 de dezembro o nascimento de Jesus
para celebrar a Encarnação. No Egito, no dia 06 de janeiro era celebrado o
solstício do inverno, quando o deus sol aparecia (epifania) e era honrado com
luz, água e vinho.
Os cristãos escolheram este dia como festa da
Encarnação e apresentação de Cristo às nações e associaram-na com três
narrativas evangélicas: a visita dos reis, o batismo de Jesus e as bodas da
Caná da Galiléia, sendo o evento principal o batismo de Jesus. Eventualmente, o
Natal e a Epifania vieram a ser celebradas em todas as Igrejas. Com o
estabelecimento do cristianismo em Roma multiplicaram-se as festas dos mártires
ou santos, talvez, em parte, para combater muitos dias dedicados aos deuses,
protetores ou heróis. Posteriormente, na Idade Média a Quaresma tornou-se
período de penitência para todos e o Advento um período semi-penitencial em
preparação para a segunda vinda de Cristo como Juiz.
A
Quaresma é a quadra dependente da Páscoa. A partir da Páscoa foi construído o
período de jejum como se fosse um prolongamento retrospectivo da Sexta-Feira e
período regulamentado de preparação para o Batismo. Houve variação no que se
refere à duração desse período. Dependia de como contar os quarenta dias. Às
vezes, os domingos e os sábados do período eram contados ou excluídos. Hoje os
domingos estão excluídos dos quarenta dias. O número 40 inspirou-se nos
quarenta dias de Jesus em jejum no deserto.
Assim os sermões de Vieira escritos entre o período
da Epifania, a sexagésima, tratam de temas a promessa da vinda do
Messias, o mistério da Encarnação; o nascimento de Jesus, sua juventude e
ministério, a sua segunda vinda ou Advento, como juiz no fim dos tempos.
O
sentido do período do Advento é o de preparação (para o Natal e para os
últimos dias). Os domingos posteriores eram chamados também de Dominga daí o Sermão
do 1º Domingo de Advento ou Dominga, que constituía justamente a
abertura do calendário litúrgico, em novembro.
Já
os sermões escritos entre a Septuagésima à Ascensão discutem a
questão da salvação e da misericórdia divina. O termo Septuagésima,
deriva do latim (setenta) e denomina os 70 dias que antecedem a festa da Páscoa.
Da mesma forma, a Sexagésima, que celebra os 60 dias antes dela, título
do mais famoso sermão vieirense e a Qüinquagésima que estão a 50 dias da
Páscoa, em fevereiro.
A Quaresma abarca o período de 46 dias que vai
da 4ª feira de Cinza, como diziam no seu tempo até o 1º Domingo da
Páscoa quando se comemorava a Ressurreição de Cristo. A quarta - feira de
cinza dava início à Semana Santa, que compreende o Domingo de Ramos
e o tríduo pascoal. O Domingo de Ramos celebra a entrada de
Cristo em Jerusalém. O tríduo pascoal começa na Quinta-feira Santa, quando
celebrava-se o sentido da sua morte na cruz e da instituição do sacramento
eucarístico; a Sexta-feira Santa, centro da reflexão sobre a sua morte e o
Sábado de Aleluia, com a sua Ressurreição.
O tempo de Pentecostes, comemorado 50 dias
depois da Páscoa, celebra a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos
e o nascimento da Igreja antecedido pela festa da Ascensão de Cristo, 40
dias antes. Foi dentro dessa estrutura que se elaboraram os lecionários
(partes do antigo e novo testamento) e evangeliários da época (trechos dos
Evangelhos).
Todos esses elementos compõem o cenário onde surgem
os sermões de Vieira. Ele, como qualquer pregador eficiente do período, domina
perfeitamente esses lugares; para dizê-lo corretamente, eles já estão dados no
repertório possível a ser selecionado em seu sermão. São os topos
retóricos da época. Ou seja, são lugares argumentativos que estão desenvolvidos
mesmo antes que Vieira começasse a escrever o sermão.
Escolhemos cinco desses sermões para a nossa análise,
tendo como referência a edição dos “Sermões de Antonio Vieira”, organizada por
Alcir Pécora. Os sermões escolhidos foram os Sermões da Sexagésima (1655),
Maria Rosa Mística (1633), Santo Antonio aos Peixes (1654),
Santa Catarina, virgem e mártir (1653) e São Francisco Xavier,
acorrentado (1691-1694). A escolha não seguiu um critério cronológico, mas
temático. São sermões que se destacam pela sua diversidade temática.
Abrangem diferentes auditórios, de rainhas a escravos, e objetivos (educação
das elites, mudanças morais ou políticas, filosofia).
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Fonte:Rodson Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697” . (Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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