29/12/2015

Sermão do Mandato, Padre Antônio Vieira

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A obra


A sermonística de Vieira sintetiza elementos da retórica clássica, da retórica cristã e da filosofia e teologia tomistas. O mundo de Vieira, portanto era profundamente religioso e místico. Seus sermões seguiam as determinações do Concílio de Trento e buscavam abarcar todo o calendário eclesiástico ou ano litúrgico. Convém saber mais sobre isso. Comecemos pela idéia de tempo.

A noção do tempo a que estamos acostumados é linear e homogênea. O tempo flui do passado para o futuro passando pelo presente. Esse é o tempo que experimentamos no nosso cotidiano. Mas nem sempre foi assim. Como lembra Eliade (2002) o tempo não é vivenciado da mesma forma em sociedades arcaicas e modernas. O tempo para uma sociedade religiosa é cíclico e heterogêneo.

Como não existe a idéia de “secularização” ou “dessacralização” de um mundo “fechado” é um tempo hierofãnico, ou seja, um tempo em que a qualquer momento pode se revelar o sagrado. Essa abertura é realizada através do rito, que tem como função demarcar o tempo comum, profano, dos momentos especiais, sagrados.

Os ritos atualizam os mitos, revivem na consciência das sociedades, graças ao intermédio de um ritual, da repetição de gestos e palavras, o sentido do próprio tempo e da realidade: “na religião como na magia a peridiocidade significa, sobretudo a utilização indefinida de um tempo místico tornado presente. Todos os ritos têm a propriedade de se passarem agora, neste momento. O tempo que viu o acontecimento comemorado ou repetido pelo ritual em questão é tornado presente, “re-presentado”, se assim se pode dizer, tão recuado no tempo quando se possa imaginar” (ELIADE, 2003, p. 317).

No calendário cristão “a Paixão de Cristo”, a sua morte e a sua ressurreição, não são simplesmente comemoradas no decurso dos ofícios da Semana Santa: elas sucedem verdadeiramente então sob os olhos dos fiéis. E um verdadeiro cristão deve sentir-se contemporâneo desses acontecimentos trans-históricos, visto que, ao repetir-se, o tempo teofânico se tornou presente” (ELIADE, 20003, p. 317). Tudo isso implica em que, na liturgia, não se pode pensar no tempo apenas em sucessão linear de datas.

O ano eclesiástico, diz respeito à série de tempos e dias santos, definidos pela Igreja, que começa com o Primeiro Domingo do Advento e fecha na última semana depois de Pentecostes, precisamente no sábado posterior ao último domingo do tempo comum, ou Solenidade do Cristo Rei do Universo. A celebração periódica dessas solenidades refere-se à memória, guarda e ensino dos mistérios e dogmas da Igreja, entendidos ortodoxamente como legados de Cristo. Para uma leitura apropriada dos sermões de Vieira, primeiro é necessário compreendê-lo dentro do pensamento e dos pressupostos filosóficos e teológicos do período.

Segundo a teologia católica, o ano litúrgico deve ser compreendido dentro da história e economia da salvação: “Ele é a celebração-atuação do mistério de Cristo no tempo. Portanto o ano litúrgico não pode ser reduzido a um simples calendário de dias e meses aos quais estão vinculadas determinadas celebrações religiosas; ele é, ao invés, a presença na forma sacramental - ritual do mistério de Cristo no espaço de um ano” (AUGÉ, 2004, p. 281). Essa relação entre tempo sacramental e ritual é particularmente importante para os sermões de Vieira: “O componente ‘tempo’ é particularmente importante na celebração do mistério de Cristo no ano litúrgico. De fato para o cristão o tempo é a categoria dentro da qual se realiza a salvação” (AUGÉ: 2004 p. 281), os sermões de Vieira, são acima de tudo, tentativas de “ler” o sentido desses mistérios no seu tempo.

A temporalidade dos sermões não é, portanto, mítica ou cíclica. Nem há adesão ao panteísmo de Espinosa (1632-1677). Vieira também não é um idealista que lia o mundo histórico como ilusão ou aparência. Ele estabeleceu uma noção de tempo baseado na separação entre o Perfeito e o imperfeito e de um tempo regulador, ao mesmo tempo inerente, do seu programa profético.

É no conceito de sacramento que ele encontra sua chave hermenêutica dos atos do presente: “como o passado prefigura a realização do sentido providencial da história, é retomado por Vieira no ato da pregação como exemplo a ser imitado pela audiência para aperfeiçoamento do ‘corpo místico’ do Estado”. (HANSEN, 2002).

O sermão é a forma de atualizar e interpretar a providência divina no presente além de instrumento de mobilização política: “É preciso lembrar, no entanto, que hoje lemos os sermões autonomizando-os da sua prática. Em seu tempo, eram ouvidos. Na relação estabelecida entre voz e audição, propunham que a Luz divina acesa na consciência do Padre e exteriorizada em seu corpo na ação retórica era a mesma que legitimava as instituições políticas como naturalidade da hierarquia” (HANSEN, 2002).

Vieira era um homem da igreja, um jesuíta. Portanto seus sermões eram “ortodoxamente polêmicos”, ou seja, papistas, monarquista e anti-heréticos. Vieira acreditava que sua voz era, segundo o Concílio de Trento, a forma por excelência de mediação das verdades da fé. Como jesuíta concordava com a condenação da leitura individual da Bíblia defendida pelos protestantes. Negava ainda a idéia da incompatibilidade entre poder político e moral cristã de Maquiavel, ao mesmo tempo em que se opunha à Inquisição, defendendo a inclusão de judeus e índios no futuro império português.

Sua visão da história é providencialista. Segundo Pécora (2003), a retórica de Vieira deve ser entendida como uma técnica de produção discursiva do que se supõe ser uma ocasião favorável à manifestação da presença divina, cuja latência nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover o auditório. A idéia de mover tradicional na retórica, tem para Vieira o sentido de educação, re-orientação moral e política da nação às finalidades cristãs inscritas na natureza divinamente criada por Deus e na história humanamente produzida pelos homens. Implica em afirmar que o sermão não era uma mera peça de literatura ou piedade, mas um ato de intervenção política coletiva que precisava ser apto a propor hipóteses úteis e legítimas à administração dos Estados católicos da época.

Para o jesuíta, no âmbito da história, aspectos temporais e espirituais, em última instância, reportam-se a Deus, não gozando de completa autonomia de um em relação ao outro. Da mesma maneira, nenhum desses aspectos pode ser absoluto na determinação do gênero do sermão, que contempla justamente a descoberta da articulação entre ambos. Isso é precisamente o significado sacramental de seu texto.

O termo Sacramentum (Sacramento) é de origem latina e apareceu na Igreja no século III, com Tertuliano (152-222). No Novo Testamento a palavra foi usada para traduzir mysterion (mistério, p. ex. Ef 5,32). Segundo a famosa definição de Santo Agostinho, “Sacramento é um sinal externo e visível de uma graça interna e invisível”. Portanto, sacramento é todo ato da Igreja capaz de transmitir graça. Como sabemos, a discussão sobre os sacramentos e a graça foi uma das grandes polêmicas entre católicos e protestantes. Pécora chama a atenção como essa categoria ganhou destaque no campo da filosofia e da política da época. O sacramento ou mistério é a categoria de mediação entre o humano e o divino, o particular e o universal, o natural e o sobrenatural, o passado e o futuro, a política e a fé:

O vocabulário católico em torno da tópica do Mistério sacramental pretende dar conta dessa conjunção, na qual a sucessão dos dias realiza uma crônica da Providência que se atualiza a cada momento. Aqui, os acontecimentos históricos e suas redes de causas exigem ser interpretados como articulações de um relato tão inspirado quanto o das Escrituras. Dai a importância, para os oradores sacros, de associar a tradição cristã a exegese bíblica, enquanto ciência da interpretação alegórica dos sentidos das Escrituras, àquela da retórica antiga, mais restrita à análise dos enuciados persuassivos. (PÉCORA, 2003, p. 12).

Para Vieira a verdadeira hermenêutica é a da realidade em sua totalidade e não apenas as Escrituras. Havendo uma dupla interpretação dos fatos pelos textos, e destes pelas coisas:

No signo –coisa da Bíblia ou na coisa – signo da história, os objetos que se apresentam ao intérprete têm o mesmo estatuto de figuras que precisam ser lidas como fatos históricos, mas também como mensagem providencial. No modelo católico da oratória sacra dos séculos XVI e XVII, pois as Escrituras estão refiguradas nos eventos, de tal modo que a história contemporânea aos pregadores é, especularmente, a versão mais atualidade do Texto, tanto no sentido de ser mais recente no tempo, quanto no sentido de efetuar um avanço na destinação providencial do universo criado. (PÉCORA, 2003, p. 12).

O orador sacro, e Vieira sabia disso, precisava conhecer bem tanto as palavras quanto as coisas, de modo a obrigar ambas a se mostrarem e a se declararem no que havia de providencial e constante. Como sintetiza Pécora (2003, p. 13):

A “retórica das coisas”,que é o sermão, descobre e opera esses índices de imitação. Dito de outra maneira: o sermão constitui-se analogicamente à retórica divina impressa, desde sempre, nas coisas criadas, que a hermenêutica, todavia, apenas descobre gradualmente, no discurso do tempo. A partir daí, também é possível considerar, para tocar um outro ponto iniludível deste tipo de sermão, que se constitui como uma ação verbal de descoberta e atualização dos sinais divinos ocultos na ação do mundo, com vistas à produção de um movimento de correção moral do auditório.

O locus espacial e temporal onde esse sermão era o calendário eclesiástico. Portanto, convém compreender como se organizava a estrutura litúrgica do catolicismo seiscentista. A sermonística de Vieira ocupava-se, principalmente, de dois períodos litúrgicos: a das principais quadras (quaresma, epifania, sexagésima etc) e o das festas dos santos ou santoral, em especial a Virgem Maria e Santo Antonio, nas quais é lido o evangelho do dia, definidas pelo calendário litúrgico. Como sabemos, Vieira era hábil na arte de conciliar o tema do sermão (previamente estabelecido pela Igreja) e o ductus (situação do momento e características especifica do auditório).

As origens do calendário da Igreja remontam ao Judaísmo. No início, a Igreja cristã esteve ligada com a sinagoga, e da sinagoga tomou o calendário básico de semana, e deu um outro enfoque: domingo, o primeiro dia da semana, dia da ressurreição, e não mais o sábado, tornou-se o centro da semana. É interessante observarmos que a maneira de chamar os nomes dos dias em português é bem cristã: Dia do Senhor (Domingo) e 2ª, 3ª e 4ª... e não segundo o nome dos planetas, como acontece nos países anglo-saxão (sunday, saturday, thursday). O domingo é o primeiro dia da semana. Entretanto, na prática, o domingo faz parte do fim da semana.

O ano litúrgico foi, em grande parte, influenciado pelas mudanças que ocorreram com o estabelecimento do cristianismo e com o influxo daqueles que parcialmente se converteram do paganismo. A Festa de Natal e Epifania se desenvolveram como meios de se opor ao paganismo ou cristianizar as festas relacionadas com o solstício do inverno. O nascimento do Sol Invencível (Saturno), dies natalis Solis Invicti era celebrado em Roma por volta do dia 21 de dezembro com duração de uma semana. Provavelmente por volta de 336 os cristãos fizeram do dia 25 de dezembro o nascimento de Jesus para celebrar a Encarnação. No Egito, no dia 06 de janeiro era celebrado o solstício do inverno, quando o deus sol aparecia (epifania) e era honrado com luz, água e vinho.

Os cristãos escolheram este dia como festa da Encarnação e apresentação de Cristo às nações e associaram-na com três narrativas evangélicas: a visita dos reis, o batismo de Jesus e as bodas da Caná da Galiléia, sendo o evento principal o batismo de Jesus. Eventualmente, o Natal e a Epifania vieram a ser celebradas em todas as Igrejas. Com o estabelecimento do cristianismo em Roma multiplicaram-se as festas dos mártires ou santos, talvez, em parte, para combater muitos dias dedicados aos deuses, protetores ou heróis. Posteriormente, na Idade Média a Quaresma tornou-se período de penitência para todos e o Advento um período semi-penitencial em preparação para a segunda vinda de Cristo como Juiz.

A Quaresma é a quadra dependente da Páscoa. A partir da Páscoa foi construído o período de jejum como se fosse um prolongamento retrospectivo da Sexta-Feira e período regulamentado de preparação para o Batismo. Houve variação no que se refere à duração desse período. Dependia de como contar os quarenta dias. Às vezes, os domingos e os sábados do período eram contados ou excluídos. Hoje os domingos estão excluídos dos quarenta dias. O número 40 inspirou-se nos quarenta dias de Jesus em jejum no deserto.

Assim os sermões de Vieira escritos entre o período da Epifania, a sexagésima, tratam de temas a promessa da vinda do Messias, o mistério da Encarnação; o nascimento de Jesus, sua juventude e ministério, a sua segunda vinda ou Advento, como juiz no fim dos tempos.

O sentido do período do Advento é o de preparação (para o Natal e para os últimos dias). Os domingos posteriores eram chamados também de Dominga daí o Sermão do 1º Domingo de Advento ou Dominga, que constituía justamente a abertura do calendário litúrgico, em novembro.

Já os sermões escritos entre a Septuagésima à Ascensão discutem a questão da salvação e da misericórdia divina. O termo Septuagésima, deriva do latim (setenta) e denomina os 70 dias que antecedem a festa da Páscoa. Da mesma forma, a Sexagésima, que celebra os 60 dias antes dela, título do mais famoso sermão vieirense e a Qüinquagésima que estão a 50 dias da Páscoa, em fevereiro.

A Quaresma abarca o período de 46 dias que vai da 4ª feira de Cinza, como diziam no seu tempo até o 1º Domingo da Páscoa quando se comemorava a Ressurreição de Cristo. A quarta - feira de cinza dava início à Semana Santa, que compreende o Domingo de Ramos e o tríduo pascoal. O Domingo de Ramos celebra a entrada de Cristo em Jerusalém. O tríduo pascoal começa na Quinta-feira Santa, quando celebrava-se o sentido da sua morte na cruz e da instituição do sacramento eucarístico; a Sexta-feira Santa, centro da reflexão sobre a sua morte e o Sábado de Aleluia, com a sua Ressurreição.

O tempo de Pentecostes, comemorado 50 dias depois da Páscoa, celebra a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e o nascimento da Igreja antecedido pela festa da Ascensão de Cristo, 40 dias antes. Foi dentro dessa estrutura que se elaboraram os lecionários (partes do antigo e novo testamento) e evangeliários da época (trechos dos Evangelhos).

Todos esses elementos compõem o cenário onde surgem os sermões de Vieira. Ele, como qualquer pregador eficiente do período, domina perfeitamente esses lugares; para dizê-lo corretamente, eles já estão dados no repertório possível a ser selecionado em seu sermão. São os topos retóricos da época. Ou seja, são lugares argumentativos que estão desenvolvidos mesmo antes que Vieira começasse a escrever o sermão.

Escolhemos cinco desses sermões para a nossa análise, tendo como referência a edição dos “Sermões de Antonio Vieira”, organizada por Alcir Pécora. Os sermões escolhidos foram os Sermões da Sexagésima (1655), Maria Rosa Mística (1633), Santo Antonio aos Peixes (1654), Santa Catarina, virgem e mártir (1653) e São Francisco Xavier, acorrentado (1691-1694). A escolha não seguiu um critério cronológico, mas temático. São sermões que se destacam pela sua diversidade temática. Abrangem diferentes auditórios, de rainhas a escravos, e objetivos (educação das elites, mudanças morais ou políticas, filosofia).

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Fonte:Rodson Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697”. (Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.

A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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