27/12/2015

Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira

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O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

Comecemos pelo mais conhecido sermão de Vieira; aquele que foi escolhido como prólogo a sua sermonística quaresmal. Esse sermão foi pregado no ano de 1655, após uma visita ao Maranhão, onde encontrou enormes dificuldades missionárias entre  os jesuítas. Ele marca ainda a volta do padre ao Brasil após sua tumultuada carreira de embaixador da coroa. A defesa da sua “arte de pregar”, que ele fará no púlpito, é parte da sua estratégia missionária junto à corte, que neste caso seria vitoriosa, que ele como “Payassú” (Padre Grande, em tupi) precisava defender para o Maranhão e Grão - Pará do Brasil (CHIAMPI,1998).

O sermão deve ser visto, portanto, não apenas como um instrumento pedagógico, um “manual de retórica conceptista”, mas principalmente como uma peça de intervenção política da Companhia de Jesus na colônia: “assim, ao propor-se a tratar no SS de ‘uma matéria de grande peso e importância’, Vieira subordina a ‘arte de pregar’ nele exposta à sua experiência eclesial- evangélica - e, extensivamente à dos soldados da ecclesia militans de Inácio de Loyola, cujo projeto requeria prova a sua eficácia entre outros métodos de pregação”. Isso explica ainda a auto-identificação de Vieira com o pregador e a sutil crítica aos seus adversários, só explicitada, taticamente, nos últimos momentos da homilia:

Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão à Índia, à China, ao Japão: os que semeiam se sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar- lhe-ão a semeadura: aos que vão buscar a seara tão longe, hão –lhes de medir a semeadura, e hão –lhes de contar os passos.ah dia do Juízo! Ah pregadores!Os de cá, achar-vos-eis com mais Paço; os de lá, com mais passos: Exijit seminare (p. 29).

O local da pregação é a capela real, e o público; as elites portuguesas (realeza e nobreza), tendo o rei na primeira fila. Vieira tomou como base o evangelho do dia: Lucas 8, 1 (e nesse caso ignorou completamente a quadra litúrgica, a sexagésima):

Semen est verbum Dei (Esta é, pois a parábola: a semente é a palavra de Deus.) e também os versos de Mateus 13,3: Ecce exijit. Quid seminat, seminare (E falou-lhes de muitas coisas por parábolas, dizendo: Eis que o semeador saiu a semear).

É um sermão diferente, didático, metalingüístico. Nele Vieira procura responder uma questão desconcertante: por que os sermões já não são eficientes? Ao elencar todas as possíveis causas desse fenômeno, ele acaba por demonstrar como deve ser feito um sermão que seja, ao mesmo tempo, capaz de “converter e persuadir”. Portanto o sermão se propõe a ensinar aos pregadores a pregar. Para isso ele propõe uma auto-avaliação do uso da retórica sacra. Vieira apresenta-se, simultaneamente, pesquisador, professor e aluno: “quero começar pregando-me a mim. A mim será e também a vós: a mim para aprender a pregar: a vós para que aprendais a ouvir” (p.35).

O sermão é composto de 10 pequenos capítulos e segue o modelo clássico dos sermões da época. A primeira parte é o exórdio, com a exposição do assunto e o estabelecimento da empatia com o auditório; a narração-confirmação que realiza a exposição e discussão dos elementos centrais do sermão e a peroração, precedida ou não de uma recapitulação dos elementos principais do debate e as conseqüências práticas do sermão. No Sermão da Sexagésima, Vieira expôs a estrutura dos seus próprios sermões: 1) definir a matéria a ser tratada; 2) reparti-la em capítulos; 3) comprová-la com o uso da Escritura; 4) confirmá-la com o uso da razão e da Tradição; 5) amplificá-la, dando exemplos do passado e do presente, respondendo às possíveis; 6) elaborar uma conclusão que leve o auditório à ação.

No primeiro capítulo, Vieira realiza sua hermenêutica do texto de Mateus 13,3, expondo as dificuldades do semear e os tipos de criaturas (pedras, aves e homens). Esse prólogo serve de preparação à questão central do texto: qual a causa da crise do sermão católico? Como explicar que “sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa”, haja “tão pouco fruto da palavra de Deus?” pergunta ele? Preocupação que não era meramente acadêmica ou teórica, mas existencial e prática:

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado (...) Tudo isso padeceram os semeadores Evangélicos da Missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve Missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande Rio das Amazonas: houve Missionários mirrados, porque tais torturam os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe enquadra se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem? E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos pelos homens: Conculcatum est? Não me queixo, nem digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. (p. 31).

Na seqüência (cap. II), analisa a estrutura do discurso sermonístico cristão, destacando três elementos principais: a graça divina, a mensagem do orador e a compreensão do ouvinte, que leva a tese principal: a crise do sermão deve-se à falhas no pregador (cap.III). O núcleo argumentativo do texto concentra-se nos capítulos IV e V, onde Vieira, após, analisar detalhadamente a pessoa do pregador (qui seminat), seu estilo (seminare), a matéria (semem), a voz (clamobat), chega ao diagnóstico das razões da crise da prédica sacra.

Utilizando-se, paradoxalmente, da retórica, Vieira procurou negar-lhes seus excessos. Fez um sermão visando ensinar aos pregadores, diferenciando enfaticamente ensino e retórica (“uma coisa é expor e outra é pregar, uma ensinar e outra persuadir”). De forma que se, à primeira vista, o assunto central do sermão seja a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores, isso muda com uma análise mais profunda. Vieira vai muito além disso. Discute o sentido da linguagem e os destinos da evangelização cristã. E principalmente intervém na “disputa hegemônica” sobre a direção das missões no novo mundo, ao defender a pregação jesuíta em oposição à prédica dominicana.

De forma genial ele deixa para expor isso após ter “desconstruído” o modelo cultista. A tática retórica de Vieira consiste em retardar ao máximo sua tese sobre a crise da retórica católica, qual sejam os erros de alguns pregadores dominicanos, identificados como “pregar culto” e “moderno”. No melhor estilo retórico, “portanto somente no cap.V, justo no meio de um sermão que tem 10 capítulos , pode o auditor reconhecer que esse sermão, para erigir o modelo do bom sermão, monta um quadro sutil e progressivo do mau sermão. Ou, inversamente, para atacar o mau sermão , monta um quadro das regras do bom sermão” (CHIAMPI, 1998, p. 12). Mas quais são os maiores erros desses pregadores segundo Vieira?

São elas de três ordens: moral, epistemológica e política. No primeiro caso os pregadores modernos não vivem o que pregam. E esquecem um dos elementos fundamentais da retórica ciceroniana: a força do exemplo. Vieira argumenta que não basta pregar, ou ensinar, para ser pregador ou educador: “Reparai. Não diz Cristo: Saiu semear o semeador, senão que saiu a semear o que semeia: Ecce exijit, quid seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença (...) O semeador e o Pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao Pregador”, visto que “ter o nome de Pregador, ou ser Pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são o que convertem o mundo” (p.36).

Há, aqui, uma visível semelhança com a ética encontrada por Max Weber (1864-1920) entre os puritanos ingleses. Estamos diante de um novo tipo de ascetismo. Como afirma Weber: “Por outro lado, a diferença entre o ascetismo calvinista e o medieval é evidente consistiu no desaparecimento do consilia evangelica e na subseqüente transformação do ascetismo em vida terrena (...)” (WEBER, 1992, p.84).

Vieira, por meio da oposição entre “boca” e “mão”, opõe o caráter ativo dos jesuítas ao especulativo dos dominicanos: “o pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”. É esse homus faber que Vieira deseja persuadir “Diz o Evangelho, que da palavra de Deus frutificou cento por cento. Que quer dizer isso? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer, que de poucas palavras nasceram muitas obras” (p.36-37).

Mas a origem do erro não se encontra apenas no excessivo uso das palavras. Para Vieira o problema maior está na relação dessas com a própria realidade. Para ele, a semente é a palavra de Deus (Semen est Verbum Dei), ao dissociarem radicalmente a linguagem da realidade e as palavras do sermão da Palavra de Deus, os cultistas pregam a mentira e não a verdade, o que agrada ao povo e não a Deus, e iludidos pelos sentidos, tomam a realidade pelo que lhes convém- “um xadrez de estrelas” - servindo, enfim, ao Diabo e não a Deus: “(...) De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavras de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como o Diabo toma a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomara as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido: e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo”. (p. 47).

E se não é possível ter um correto conhecimento sobre as palavras, como seria possível conhecer as demais coisas e possibilitar a conversão religiosa, que em Vieira é sinônimo de autoconsciência, pois “que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem em si, e ver-se a si mesmo?”? Há ,para alguns estudiosos, semelhanças entre a compreensão de conversão presente no Sermão da Sexagésima e a idéia do Cogito de escartes encontrado nas Meditações (1655). “Tendo em vista a conversão, há que considerar primeiramente em Vieira a sua dialética, isto é, a sua habilidade em revelar a outrem, através da linguagem, o desconhecido – a própria alma em oculto – a partir do conhecido. Nesse sentido, a intenção doutrinária nos sermões de Vieira não se realiza sem uma compreensão acerca da natureza da linguagem (...)”. (CERQUEIRA, 2002, p. 80).

No sermão da Sexagésima, as inúmeras alegorias buscam construir imageticamente a diferença epistemológica entre jesuítas e dominicanos. Assim contrapõe a sensualidade, a racionalidade, ao populismo estético a firmeza doutrinária; ao gozo do presente a aventura utópica da evangelização. Tudo isso a serviço da realização de seu projeto de “cristandade das Índias”, como define Enrique Dussel (CHAMPI, 1998).

Mas se Vieira concorda com Descartes na prioridade da inteligência sobre o corpo, e na compreensão de consciência de si como entendimento ou inteligência (no seu sentido etimológico intelligentia- inte-llego: “ver dentro”) eles discordam quanto o papel dos sentidos e, portanto do uso da palavra na conquista do conhecimento.Em primeiro lugar porque se é verdade que “não pode entrar o homem dentro em si mesmo e ver- se a si mesmo” se lhe faltam os olhos “que é o conhecimento”; é igualmente afirmado por Vieira que tal processo não pode, como afirmava o cartesianismo, acontecer exclusivamente por meio da razão, descartando-se todo sentido e experiência , pois “somos compostos de carne e sangue, abre de tal maneira o racional,que tenha sempre respeito ao sensitivo”.

A crença unilateral no poder da razão está na base da argumentação do cartesianismo e será um fato para o lento declínio da retórica, tão bem representada por Vieira. A ciência moderna, defendida por René Descartes (1596-1650) e Francis Bacon (1561-1626) busca reduzir toda racionalidade a uma Mathesis Universalis, numa linguagem depurada de qualquer ambigüidade, o que significa ferir de morte a disciplina usada para dirimir conflitos.

Assim no seu Discurso do Método (1637), Descarte declara-se decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado no colégio jesuíta de La Fréche, onde estudou de 1606 a 1614. Toda a sua filosofia é uma recusa às “inúteis humanidades”, e entre elas destaca-se a retórica que não conduz o homem a nenhuma verdade indiscutível (“não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute”). Para ele somente as matemáticas são verdadeiras, visto que só elas demonstram o que afirmam (“as atemáticas agradavam-me, sobretudo por causa da certeza e da evidência de seus raciocínios”).

Esse é o núcleo constitutivo, o preceito metodológico básico apontado no interior do discurso, ou seja, que só devemos considerar como verdadeiro o que for intuitível com clareza e precisão. Como ele mesmo relata ‘aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras e, decidindo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim mesmo, ou seja, no grande livro do mundo (...)” (DESCARTES: 1999, p.40).

A conclusão de Descartes é a de que não há lugar na educação para o conflito, nem necessidade de discussão, uma vez que a verdade é apenas uma e apresenta-se ao espírito através da razão que é individual e está presente em todos os homens, podendo ser encontrada diretamente, em si mesmo ou no “grande livro da natureza”.

Tudo isso é estranho ao pensamento de Vieira. Para ele não há como ensinar a verdade senão por meio do uso da palavra, e, portanto, da retórica. Como sabemos qualquer discurso (educacional, científico ou religioso) tem sempre um contexto e um auditório. A adaptação do primeiro ao segundo é condição sine qua non para a compreensão da mensagem. É nisso que consiste o fenômeno da “persuasão”. Era isso que Vieira criticava nos seus adversários. Para Vieira somente o bom pregador pode possibilitar a conversão dos homens. Os seus adversários não faziam isso porque compreendem mal a realidade e usam mal as palavras. O pregador precisa pregar como “as estrelas do céu” e não fazer do “céu uma xadrez de estrelas”:

O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrinha, ou azuleja (..) Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os Pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está Branco, da outra há de estar Negro; e de uma parte está Dia, da outra há d estar Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra hão de dizer Sombra; se de uma parte dizem Desceu, da outra hão de dizer Subiu. Basta que não hajamos de ver um sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre fronteira com o contrário? Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras?Como as estrelas. As estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. (VIEIRA, 2003, p. 40).

Para Vieira o “escândalo essencial” dos maus pregadores consiste num duplo equívoco: semântico e teológico. No primeiro caso, no já citado distanciamento entre a forma de expressão dos sermões gongoristas (os “signos obscuros”) e a substância real dessa expressão (a Palavra de Deus). A conseqüência disso, segundo Vieira, era o surgimento da heresia, pois “se Deus é clareza, ordem, harmonia, o sermão moderno é obscuridade, desordem, confusão; há, portanto um ‘ruído’ nestas palavras que não exprimem o ‘verdadeiro sentido’: elas são o sentido ‘alheio e torcido’, são ‘armas do Diabo’ e ‘tentação’. A linguagem moderna do sermão barroquista é a negação da sentença bíblica: Semem est Verbum Dei, que Vieira enfatiza nesse semem – tão próximo de semeion (signo) – para restituir a semelhança do discurso com o objeto significado”. (CHAMPI: 1998, p. 145).

É nesse ponto que a crítica de Vieira torna-se pouco sutil, classificando seus adversários de loucos, palhaços ou efeminados: “vestir como religioso e falar, como...não quero dizer por reverência do lugar”. Na sua estrutura argumentativa Vieira relaciona as qualidades do pregador autêntico à virilidade masculina (“os varões apostólicos” do passado), deixando aos maus pregadores ou hereges os atributos femininos. Isso não passou despercebido pela poetisa e dramaturga Sóror Juana Inês de la Cruz (1648-1695), que lhe escreveu uma notável resposta feminina, coisa que acabou custando-lhe a paz e a biblioteca.

Finalmente, o último dos erros, e alvo da sua crítica velada aos pregadores “cultos e modernos”, representado na figura do inquisidor dominicano Frei Domingos de São Tomás – o pregador que desfrutava “o paço” da corte (CHAMPI, 1998) – a incapacidade de transformar em obras as palavras do sermão. Eis o núcleo da sua peroração (capítulo X): pregar não é agradar ao auditório, mas levá-lo a transformação, “semeadores do evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os pecados” (p.52).

Eis a diferença entre ensinar e pregar, segundo Vieira: o recurso da lógica para a ação. Por isso utilizar-se não apenas da lógica dos silogismos, mas da beleza das metáforas e aliterações, não apenas da frieza da razão, mas do calor dos sentimentos e emoções. Mas será que haveria tanta diferença assim?

Enfim, procuramos mostrar que o Sermão da Sexagésima, apesar de escrito há cerca de quatro séculos, ainda tem algo a nos dizer. Não nos impressiona apenas pela riqueza de estilo, presente nas inúmeras citações bíblicas, em português ou latim, pela sua cultura clássica presente nas citações de filósofos e teólogos, sem perder a objetividade e o centro de sua mensagem.

Mais que simplesmente convencer o sermão quer também seduzir, por meio das metáforas visuais como a da luz: “Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos”, que ele oportunamente liga com o tema central do seu discurso: “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si mesmo, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora, suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte; por qual deles havemos de entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?”.

O sermão aborda o tema com uma força tal que consegue se comunicar com o leitor, atraindo sua atenção para as questões abordadas por ele, mesmo apesar da barreira da cultura e do tempo. Por isso ele é um clássico: porque embora diferente, continua atual e oportuno. No sermão da sexagésima, Vieira faz mais que ensinar nos desafia a pensar: seminare semen!
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Fonte:
Rodson Ricardo Souza do Nascimento: “O púlpito como cátedra:retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira: 1608-1697”. (Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano). Natal, 2007.

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