23/12/2015

O Baile das Quatro Artes, de Mário de Andrade


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Mário Pau-Brasil de Andrade!?

No final de 1924, em carta a Tarsila do Amaral, Mário de Andrade confessava estar “inteiramente pau-Brasil”. O manifesto de Oswald e a fase primitiva de Tarsila não deixavam de dar razão à provocação do ano anterior: deixem Paris! Na viagem a Minas, Mário foi uma espécie de guia informal, pois era o único que visitara as cidades históricas. A orquestra estava afinada, o que vem a seguir é uma disputa pela regência. Assim, retornando à carta:

[...] faço uma propaganda danada do paubrasilismo. [...], tenho amigos que estou paubrasileirando. Conquista importantíssima é o Drummond, lembraste dele, um daqueles rapazes de Belo Horizonte. Está decidido a paubrasileirar-se e escreve atualmente um livro de versos com o maravilhoso nome de “Minha terra tem palmeira”. [... ]. Eu por minha parte estou abrasileirando inteiramente a língua em que escrevo. Um artigo sobre Manuel Bandeira [...] tem erros enormes de português. (1999, p. 89).

Em suas correspondências com Bandeira e Drummond, a tônica do “erro” é uma constante, uma obsessão. Ao primeiro, pede conselhos; ao segundo, aconselha. Em carta ao poeta carioca, 8 de novembro de 1924, esclarece a seguinte mudança: ‘Embala-lhe o dormir’ pus ‘lhe embala o dormir’, com o pronome errado. Sobre isso, Manuel, estou disposto a me sacrificar”. Mais adiante, argumenta que é preciso ter “coragem” para “escrever brasileiro”. Depois comenta a dupla regência – no Brasil e em Portugal – do verbo “ir”, cujo complemento “na” corresponde a um erro gramatical. “Eu o emprego. Ir na cidade, é regência perfeita. (...) Os portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros: na cidade”. A carta termina de modo ufanista: “brasileiros chegou a hora de realizar o Brasil” (1958, p. 23).

Em outra longa carta, dezembro de 24, ao comentar a “influência lusitana”, terminava com o seguinte achado: “Você já reparou que o diminutivo brasileiro ainda é mais carinhoso que o português” (idem, p.50). Duas coisas estavam claras, a “consciência nacional” passava por uma reforma lingüística capaz de propor outra “gramática”; tal “consciência” foi primordialmente antilusitana.

Em relação ao segundo tópico, Mário de Andrade dá continuidade a ojeriza paulista, porque os portugueses monopolizavam a imprensa federal e outros setores do comércio. Esta situação provocou fortes reações, como a de Jackson de Figueiredo, que no livro O nacionalismo na hora presente, afirmava: “O Brasil libertou-se do governo português; continua contudo a suportar (...) a ascendência dos lusitanos no seu comércio, indústria, imprensa e até nas letras” (1997, p. 135).
O erro gramatical corresponde a um projeto de “descoberta do Brasil”, ou como Mário diz recorrentemente em sua correspondência com Bandeira, o “abrasileiramento do Brasil”. O objetivo neste período é: “Se conseguir que se escreva brasileiro sem ser por isso caipira, mas sistematizando os erros diários de conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo a psologia (sic) brasileira, já cumpri o meu destino”(1958, p. 54).

Em carta a Drummond, novembro de 24, elogia a regência incorreta do verso “chega na estação”. O jovem poeta mineiro responde que, entre a correção e a incorreção gramatical, prefere a correção, considerando que “aceitar tudo que nos vem do povo é uma tolice que nos leva ao regionalismo”. Mário retruca nos seguintes termos:

Foi uma ignomínia a substituição do “na estação” por “à estação” só porque em Portugal paisinho desimportante pra nós diz assim [...]. Não estou fazendo regionalismo. Trata -se de uma estilização culta da linguagem popular da roça como da cidade, do passado e do presente. (ANDRADE; 2003, p. 42 )

O modernista retoma a discussão, iniciada por José de Alencar, da língua brasileira como princípio da autonomia nacional. No “pós-escrito” à segunda edição de Iracema, Alencar enumera uma série de diferenças entre o português falado no Brasil e Portugal. Os artigos são escritos em reação ao crítico lusitano Pinheiro Chagas. Sua premissa: os escritores brasileiros, insistindo na falta de correção à língua portuguesa, têm a mania de tornar “o brasileiro uma lingual diferente do velho português”. O contra-argumento de Alencar é bem “modernista”. Para ele, somente a soberania do povo “tem a força de transformar uma língua, modificar sua índole, criar novas formas de dizer”. Ao escritor cumpre seguir a vontade do povo, mas como é um esteta da língua, cabe “talhar o grosseiro dialeto do vulgo”, “como o escultor cinzela o rudo troço de mármore e dele extrai o fino valor”. A independência das nações, conclui Alencar, não é apenas um fato político, mas também cultural, reproduzido nas idéias, costumes, sentimentos e, naturalmente, na língua, “que é a expressão desses fatos morais e sociais” .

O anti-lusitanismo de Alencar é análogo ao de Mário, inclusive em suas justificativas sobre as diferenças culturais entre Brasil e Portugal, que autorizam o brasileiro a criar uma gramática própria. O escritor age em consonância a um poder maior: a soberania do povo. A criação de uma “gramática da língua brasileira” foi outra obsessão de Mário de Andrade. Em suas próprias correspondências, ao longo dos anos, passou a escrever em “brasileiro” trocando “se” por “si”, “melhor” por “milhor”, anula o acento agudo em “alguém”, “além”, “ninguém”, etc. Todo este esforço, no qual dedicou anos de estudo, terminou em muita dor de cabeça para quem reuniu o material póstumo e teve que adequá-lo às regras vigentes. Drummond, que preferia o “acerto” ao “erro”, quando organizou sua correspondência, ao contrário de Manuel Bandeira, atualizou a linguagem, “para que o leitor novato deixe de estranhar o texto à primeira abordagem”.

Mário compreende a proposta pau-Brasil exclusivamente pela questão da valorização do erro. Essa coincidência de idéias foi o momento em que mais se aproximou de Oswald, o qual tentava superar. Em importante carta a Sérgio Milliet, paulatinamente, rearticula a proposta pau-Brasil. O primeiro passo foi encarar o primitivismo como oposição ao beletrismo, capaz de fundar uma “arte interessada” e resolver “o problema atual, nacional, moralizante, humano de abrasileirar o Brasil”. Em seguida, colocava em cheque a importância da Europa no processo de abrasileiramento, o exemplo é Cendrars, que “fez mais mal aqui do que bem”. Logo depois, tratava de insinuar que Oswald praticava um discurso de fachada, porque ignorava a necessidade de uma reforma lingüística, para cair “numa admiração ingênua por tudo que é brasileiro”, pregando o analfabetismo como insurreição à erudição. E termina: “Eu, ninguém precisou de me vir dizer que o Brasil era interessante” (1971, p. 301).

Nos bastidores, Mário sentia-se o anunciador da proposta nacionalista modernista, mas fora eclipsado pelo estouro do “Manifesto da poesia pau-Brasil”, ao qual contraditoriamente tenta se filiar e se desfiliar. Por um lado, a valorização do “erro gramatical” vai de encontro às suas proposições a favor da “gramatiquinha do falar brasileiro”. Por outro, assumir-se inteiramente como “pau-brasil” significava aceitar a liderança de Oswald, coisa que recusava desde o artigo “Meu poeta futurista”; por isso, em outra carta a Milliet, dirá:

É uma escola (poesia pau-Brasil) que tem uma infinidade de precursores e um só discípulo. Mas eu que tenho birra do São-João-Batismo poético me incorporei na escola. Passei de precursor a discípulo, se é que é ser discípulo dele continuar no que eu vinha fazendo na minha natural evolução. (DUARTE, 1971, p. 303).

Em carta a Tristão de Ataíde, volta ao mesmo argumento: “O Osvaldo vem da Europa, se paubrasiliza, e eu publicando só então meu Losango cáqui porque antes os cobres faltavam, virei pau-brasil pra todos os efeitos” . Não por acaso, no prefácio de Losango cáqui, no qual recusa considerá-lo um livro de poesias, mas sim de “anotações líricas”, lê-se: “possivelmente pau-brasil e romântico”. Há pouco da proposta “pau-brasil” em Losango cáqui, que parece dar continuidade a Paulicéia desvairada, porque provavelmente já estava finalizado quando o manifesto oswaldiano foi publicado. O livro em que Mário se “paubrasiliza” será o seguinte, O clã do jaboti, no qual aparecem com mais firmeza os elementos da cultura e da língua indígena, espécie de ensaio para Macunaíma.

Mário e Oswald pensarão a arte nacional, questão central do modernismo neste período, de forma oposta. Segundo Eduardo Jardim – Mário de Andrade e a morte do poeta - a busca “pelos elementos definidores da nacionalidade” leva Mário à indagação de que “a nacionalidade estava depositada nas manifestações da cultura popular”:

Por causa disso, Mário de Andrade pôde argumentar que a nacionalização da produção artística do país, iniciativa que deveria condicionar a entrada no concerto das nações cultas, seria alcançada ao manter-se vivo o vínculo com as manifestações da cultura popular e folclórica. (JARDIM, 2005, p. 45).

Assim, o processo de nacionalização da arte em Mário de Andrade passa pelos vínculos entre a cultura erudita e a popular, o que credencia a originalidade e a participação do Brasil no concerto das nações. Júlio Diniz – no ensaio “Na clave do moderno” – aponta que o modernista foi o primeiro a pensar a interface música/cultura/sociedade no Brasil: “Mário de Andrade reconhece a importância da música folclórica e popular como um saber que se diferencia organicamente da concepção erudita, principalmente em países colonizados”. A música folclórica seria o pilar “de uma verdadeira identidade nacional”, de uma “cultura original e enraizada na tradição” (2000, s/p). A inserção cultural de uma arte brasileira no concerto das nações passava necessariamente pela transformação técnica do elemento popular, ou seja, a famosa expressão de que só o particular se universaliza.

Oswald de Andrade, também pensando o lugar do Brasil, partiria para seu projeto mais arriscado – a antropofagia -, uma forma de subversão da história oficial e, de certo modo, uma subversão ao próprio modernismo. A questão neste momento, para nós pueril, era briga interna pela liderança intelectual.

Em um período de agitação e contradições internas, Mário de Andrade tentava sistematizar uma poética moderna. A escrava que não é Isaura é o esforço supremo neste sentido, o qual dedica a Oswald de Andrade. Apesar de sua fama de “leitor impaciente”, Oswald leu detalhadamente o opúsculo, anotando à margem as idéias que lhe interessavam, como a associação de imagens7. A autoridade crítica de Mário, contudo, foi um dos primeiros focos de desavença entre eles. Rubens Borba de Moraes, depondo para Aracy Amaral, revelou este prosaico episódio: quando Menotti del Picchia publicou O homem e a morte, os “klaxistas” rejeitaram integralmente o romance. Consideravam Menotti um “ogro” em assuntos estéticos, inclusive haviam sugerido a Mário dar-lhe algumas aulas sobre as tendências de vanguardas. Logo, Tácito de Almeida, Couto de Barros e Borba Moraes escrevem “uma crítica terrível” ao romance. “O artigo estava pronto para ser publicado quando chega o Mário”, que se opõe ao teor das críticas, argumentando que deveriam “respeitar a personalidade de Menotti”. Desse modo, escreve outro artigo, “um elogio só, a exaltação do livro” (2003, p. 83). Em carta a Bandeira – 3 de maio de 1926 – Mário deixaria claro que o elogio fora mais uma atitude de condescendência com um aliado importante.

Atitude contraditória, pois em crítica defendia a “sinceridade”, como revelava em carta a Prudente de Morais Neto: “Eu agora não gosto vou dizendo, assim se compreende as boas camaradagens, não achas? Com o Osvaldo foi a mesma coisa. Leu o Serafim Ponte Grande (...).

Eu disse que não prestava e os porquês” (1985, p. 34). A reação de Oswald de Andrade foi descrita pelo próprio Mário em carta a Tarsila – 16/06/23-, na qual tenta se justificar com a pintora:

[...] Um dia irrompe pelo escritório da klaxon. Vem temeroso e furibundo. “O Mário é isto, mais aquilo. Quer ser chefe de escola. Nós todos seus alunos! É preciso romper. É o pior crítico do mundo! Vocês todos estão ficando escravo dele. Não me sujeito! Nem o Menotti”. [...]. Procuro o Menotti. Ia amargo. Na véspera, defendera calorosamente a obra do Menotti. [...]. Quem entendeu tão levianamente minha intenção. Não sei. [...]. Mas a culpa é toda minha e de minha sinceridade. [...]. (AMARAL, 1999, pp. 73-4).

A boa camaradagem com Menotti, muito mais próximo a Oswald, dura pouco tempo. Em resposta a crítica do ex-protegido ao Losango cáqui, considerado inferior a Paulicéia, Mário escrevia o artigo “Feitiço conta o feiticeiro”, o qual comentava em carta a Drummond: “Pela 2ª Terra roxa você verá que mandei à fava também o Menotti. Questão de higiene” (1982, p. 67). Alcântara Machado, ironicamente, postulava que o ambiente paulista havia se transformado no movimento da pancada:

Primeiro pancada nos inimigos. Agora, pancada nos companheiros. Antigamente, era frente única. Pancada nos inimigos. Agora é discórdia. Pancada nos companheiros. A preocupação de saber quem está certo. Ou o que é mais gostoso: quem está errado. [...]. E principalmente a preocupação idiota (como já me disse Paulo Prado) de querer saber quem é de fato brasileiro da gema. A toda hora surge um cavalheiro batendo com a mão no peito: Eu é que sou ariverde de verdade! (BARBOSA, 2002, p. 7).

Outra censura, com alvo certo, é a “tolice maníaca e inútil” de instituir um padrão modernista, uma bitola consagrada: “A bitola de Mário de Andrade, por exemplo” (idem, p. 8). Como comprovam suas correspondências do período, Mário tenta submeter os escritos dos companheiros a um padrão de qualidade. A Bandeira, suplica por uma opinião “absolutamente sincera, áspera e desimpedida” (1958, p. 60). A Anita, explica-se: “Em questões de crítica e de julgamentos pessoais admito todos os que sejam sinceros mesmo que sejam contra mim” (1989, p. 120). A “sinceridade” assume uma condição ética para o elogio ou o malho. Trata-se, de certo modo, de superar os elogios fáceis no primeiro momento modernista – o período anterior à Semana de 22. Por outro lado, Mário exerce sua sinceridade com um alto grau de crueldade. Relatando uma desavença com Ronald de Carvalho, na qual o acusa de “homem de conferência”, cujos poemas em prosa eram deploráveis, “a gente espreme e não sai nada”, o missivista se “surpreende” com a natural reação do escritor:

Parece que se maguou... Não sei. [...]. Não fui gentil. Fui sincero, o que é muito mais nobre para com um amigo do que ser gentil. [...]. Mas duma vez por todas vou acabar com as gentilezas. Verás meu artigo sobre o Osvaldo. Depois sai o teu. [...]. Creio que tu me escapas. (ANDRADE, 1958, p. 53).

Ser sincero anularia a adulação fácil, festeira, porque pressupõe imparcialidade. Contudo, nesta mesma carta, o escritor é incrivelmente passional e comprometido ao prometer que Bandeira “escapa”, pois todos os seus argumentos repousam no fato de considerá-lo um irmão; ou em suas palavras: “basta lembrar que fiz questão de que estivesses na leitura da Paulicéia na casa de Ronald. Isso indica alguma coisa, creio” (idem p. 53). Em suas correspondências, Mário procurava, pela via da “sinceridade crítica”, afirmar-se intelectualmente como um censor criterioso e justo, uma espécie de líder “espiritual”.

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Fonte:
Anderson Pires da Silva: “Mário & Oswald - uma história privada do modernismo”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz). Rio de Janeiro, 2006


Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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