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MÁRIO DE ANDRADE E O GRUPO MODERNISTA
Em seu livro: “Vanguardas em
retrocesso”, o sociólogo Sergio Miceli põe como título da obra um oximoro para
demonstrar as ambivalências que cercaram as propostas dos modernistas na década
de 20 e 30 na América latina, sobretudo no Brasil e na Argentina. Miceli
priorizará os autores Jorge Luís Borges e Mário de Andrade. Concentrar-nos-emos
nas observações feitas sobre Mário de Andrade e seus colegas de movimento.
Primeiramente, é importante
observar que dos jovens envolvidos com os chamados “modernistas paulistas”,
Mário de Andrade assumirá postura de liderança, embora diferentemente de outros
colegas como Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida, não viesse de família
rica, entretanto, Mário de Andrade sempre demonstrou uma grande capacidade de
mover-se entre diversos círculos sociais, além de ser engajado com movimentos
culturais da época, isto talvez herança da família de políticos da qual ele fez
parte. Em posição de liderança, Mário de Andrade não escapara aos diversos
matizes que constituíam a formação discursiva dos sujeitos envolvidos
diretamente com as propostas “revolucionárias” do grupo paulista de artistas
que reivindicaram novas direções na arte nacional. Tais propostas envolviam
noções de estética, diretamente importadas da Europa e perspectiva identitária
que buscava ressignificar a noção de identidade nacional sob novos prismas.
Essas propostas envolviam a ideia de uma Literatura nacional desvinculada, o
máximo possível (salve a estreita relação com as vanguardas), da europeia:
(...) junto à inteligência brasileira, a primeira geração modernista
firmou uma postura decididamente antilusitana, rechaçando o estilo idiomático
praticado na antiga metrópole, em favor de uma dicção autóctone, do vocabulário
ao ritmo, da entonação à sintaxe, na busca voluntariosa de uma língua
portuguesa abrasileirada. (MICELI, 2012, p.20)
Importante observar que essa
proposta de uma “língua abrasileirada” aparece sutilmente na obra analisada,
mas tem papel importante nas propostas modernistas como um todo. Porém, tais
propostas, estarão fortemente carregadas de interesses de outros sujeitos, que
não eram diretamente ligados às artes, mas sabiam da importância desta na
construção ideológica das mentalidades, sobretudo, em países subdesenvolvidos e
(ou) em desenvolvimento:
Nesses países, os praticantes da atividade literária ou artística
jamais conseguiram se desvencilhar do domínio estrutural, exercidos pelos
grupos políticos dominantes, ora agasalhados pelos dispositivos oligárquicos
estaduais ou pelo Estado central, como no Brasil, ora abrigados sob a chancela
de proprietários de empreendimentos privados ou custeados pelo patrimônio
familiar (...). A rigor, a diferença consistiu nos tipos de mediadores
políticos que se mostraram propensos a dar sustentação material e institucional
à vida cultural: os mandachuvas e próceres partidários do Brasil, operando como
chefes de redes burocráticas no interior dos poderes constituídos (...). (MICELI,
2012, p.23)
Ou seja, no Brasil, a produção de
arte estava vinculada a capacidade de divulgação desta arte, não fazia sentido
construir uma bandeira da arte, ou vice-versa, sem que existisse mercado
consumidor que fosse levado a crer nesta bandeira. Portanto, eram esses
“próceres” que financiavam o mercado editorial, que bancavam as grandes
exposições, direta ou indiretamente, e consumiam boa parte das obras, além de
ajudarem a determinar o que se deveria fazer de arte no Brasil. A relação entre
artistas e a classe dominante era ideologicamente estreita, sem que houvesse
necessariamente uma imposição. Os modernistas que ajudaram a criar a semana de
22 compartilhavam de sentimentos ambíguos com relação às grandes oligarquias
nacionais. De um lado, a consciência operária (muito mais forte em Oswald de
Andrade que em Mário de Andrade) e o fascínio pelo moderno e consequentemente a
obsessão pelo novo, de outro uma postura agressiva contra a burguesia, inimiga
não do proletariado, mas, na mentalidade de muitos modernistas, rival das
oligarquias e dos privilégios desta. O poder de mecenato exercido pelas classes
mais altas na capital paulista é comentado assim por Sergio Miceli:
No Brasil, a continuidade desta tradição acadêmica se firmou por uma
linhagem de mestres que acabaram atuando como modelos de excelência e líderes
de venda numa praça acanhada como era então o Rio de Janeiro e, logo adiante,
também em São Paulo. O mecenato exercido pelo poder público e pelas famílias da
elite fez as vezes de arremedo de um mercado de arte. (MICELI, 2012, p.25)
Foi este mercado que possibilitou
às classes dominantes exercerem influencia sob a produção artística da época,
portanto, os próprios artistas já estavam submetidos à lógica do mercado e
tinham dois caminhos possíveis: ou eram da própria classe dominante e tinham relação
direta com as elites financiadoras, ou eram submetidos à força do mercado e empurrados
pela ideologia dominante, que no início do século XX, em São Paulo, estava
dividida entre uma oligarquia em crise e nostálgica de seus privilégios e uma
burguesia ascendente que enriquecia cada vez mais rápido, além dos diversos
conflitos políticos:
No Brasil, a arrancada criativa na primeira geração do modernismo
literário se deveu, sobretudo, no começo, às rivalidades e enfrentamentos entre
as forças políticas representativas das elites regionais. Em São Paulo, em
Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, a crise aguda do poder oligárquico, na
década 20, a
braços com facções dissidentes, com rebeliões de oficiais militares
descontentes, alterou de modo drástico as modalidades de colaboração da nova
geração de intelectuais com os detentores do poder político. Nesses estados, a
história social dos jovens letrados se explica por inteiro pela inserção na
divisão regional do trabalho de dominação. Os escritores modernistas iniciaram
suas carreiras como quadros dos partidos republicanos estaduais e dos
respectivos órgãos de imprensa. Eis porque se tornaram caudatários das palavras
de ordem em que foram socializados, com sensibilidade aguçada as oscilações de
prestígio de mentores que pudessem afetar seu destino temporal. Nenhuma
artimanha estetizante será capaz de despistar tal gênese. (MICELI, 2012, p.27)
Os jovens intelectuais que
ajudaram a formar o movimento modernista de 1922 teriam, portanto, na origem de
suas formações discursivas as marcas dos interesses políticos já citados neste
trabalho. A produção artística destes sujeitos estava vinculada a estas
condições históricas e, no entanto, estes interesses, estavam camuflados por
uma onda de inovações formais, trazidas diretamente da Europa e adaptadas ao
contexto local e “tal lenda modernizadora engendrou o relato triunfalista da
historiografia literária.” (MICELI, 2012, p.37). Falando mais especificamente
da obra Paulicéia Desvairada, podemos deduzir que Mário de Andrade fazia parte
do grupo que, embora não fosse aristocrático, como Oswald de Andrade, era
diretamente relacionado e, em parte, financiado por tais elites. Além disto,
Mário de Andrade vinha de uma família de políticos e de uma classe média culta.
Os poemas do livro estudado carregam um tom de revolta diante da burguesia e
dos imigrantes enriquecidos: “(...) os demais integrantes pertenciam a famílias
com sobrenomes ilustres, em estágios variados de declínio econômico e social,
as quais se viram engolfadas pelas mudanças desencadeadas pelo arrastão
imigratório” (MICELI, 2012, p.33). E esta visão não era resultado de uma luta
marxista, pois Mário de Andrade nunca foi, o que se poderia chamar, de
“marxista”, era sim, caudatário de uma classe de privilegiados ligados às
oligarquias e que era forçada a dividir seus privilégios com a crescente
burguesia e com os imigrantes. Mas é importante salientar que Mário de Andrade
nunca foi um membro da oligarquia, porém:
Numa fórmula algo brutal, poder-se-ia dizer que os vanguardistas
brasileiros e argentinos eram caudatários, ainda que disso não tivessem plena
consciência, de um movimento pujante de reação oligárquica que lhes permitiu
empalmar, em sintonia com os móveis de luta cultural desses grupos ameaçados,
uma postura estética renovadora como fachada produtiva de uma política
regressiva. (MICELI, 2012, p.37).
O que este trabalho propõe não é
acusar os modernistas paulistas de forjarem um movimento inovador para esconder
as marcas do conservadorismo classistas dos quais eram herdeiros, mas sim,
mostrar que, naquele momento histórico específico, em um país subdesenvolvido e
com as artes intimamente ligadas ao mercado de bens de consumo, talvez não
fosse possível escapar aos determinantes citados, ou seja, construir um discurso
diferente era se não impossível, naquela São Paulo, um grande desafio. Porém
veremos que através da poesia, a voz poética dos poemas fará um jogo duplo: de
um lado, voltar-se-á contra a burguesia, atacando seu “conservadorismo”, suas
“futilidades”, sua falsa aparência, declarando seu “Ode ao burguês” de forma
intensa. Por outro lado, indicará os intensos conflitos, por trás do clima de
exaltação diante da urbanização paulista, mostrando que vários sujeitos foram,
digamos assim, postos do lado de fora da festa da modernização, sujeitos estes,
resultado de intensas manobras políticas de exclusão social e vítimas da
ineficiência do poder público. Evidente que este poder público não estava
ligado apenas à burguesia, portanto, a crítica de Mario de Andrade tocará
também nas oligarquias e em toda estrutura social que ajudou a produzir tal
realidade, embora fique mais evidente a crítica à burguesia, pois foi assim que
ele “negociou” simbolicamente seu espaço no mercado editorial.
Mário de Andrade era um militante
cultural assíduo, seu autodidatismo lhe possibilitou construir caminhos
paralelos aos de seus familiares. Miceli dirá sobre ele:
Era o exemplo acabado de um jovem postulante a carreira intelectual,
cuja ascensão dependeu muito mais da inserção e iniciativas culturais do que
das prerrogativas inerentes aos herdeiros que continuavam se valendo da
gambiarra classista. (...) Sua trajetória foi se viabilizando em meio às
transformações conducentes ao surto da renovação cultural em São Paulo das
décadas de 1920 e 1930, num contexto de débâcle econômico, social, política e
ideológica do antigo regime republicano. (MICELI, 2012, p.108)
Portanto, uma diferença clara
entre Mário de Andrade e muitos de seus colegas estava na relação que ele
matinha com políticas públicas relacionadas à cultura. No entanto, para poder
por em prática suas propostas de difusão da cultura popular, por exemplo, ele
tinha que negociar espaços com o antigo regime republicano e este seria mais um
condicionante discursivo que influenciará sua obra. O poeta de Paulicéia
Desvairada fez parte de um surto de crescimento dos mercados editoriais,
iniciado em 1920, como consequência da crise das importações e do
enfraquecimento do mercado europeu (SEVCENKO, 2009), o que fez com que a arte,
em São Paulo, tornasse-se um mercado lucrativo.
Com a reconfiguração da noção de
Nação, ocorrido, sobretudo, em meados do século XIX, países que possuíam um
passado, cuja preservação era precária, precisariam abandonar este e
concentrar-se na perspectiva desenvolvimentista, em direção ao futuro, para que
assim, pudessem construir (forjar) certa identidade (BORA, 2000). A partir
desta perspectiva desenvolvimentista, São Paulo, que pelos motivos já citados,
além do fato de ser a “menina dos olhos” do governo federal, o que possibilitou
vultosos empréstimos para capital paulista se desenvolver, tornar-se-ia um
centro discurso irradiador do que se convencionou chamar de identidade
nacional. E Mário de Andrade assumiu um papel de liderança neste processo de
redefinição de “nossa” identidade. Como aconteceu em outros países
latino-americanos, foi responsabilidade de intelectuais, saídos diretamente dos
centros econômicos hegemônicos de seus países, falar em nome das vozes silenciadas:
Embora a representação do outro em termos pós-modernos, venha sendo
profundamente criticada como uma atitude arrogante e ilegítima, recorremos a
importantes aspectos da própria história latino-americana e ao papel político
ideológico de suas elites, quando definem a alteridade. Como em outros países
do terceiro mundo, cuja maioria da população permanece às margens do saber
burguês, as primeiras elites latino-americanas entenderam que os sujeitos
periféricos fossem incapazes de representar a si mesmos cabendo, portanto, ao
intelectual o direito de fazê-lo. (BORA, 2000, p.911)
Zélia Bora, em seu texto,
“Política Cultural e Imaginação em Macunaíma e Los Rios Profundos”, faz uma
análise da atitude de Mário de Andrade em seu livro “Macunaíma”, responsável
por trazer textualmente na obra, as vozes de sujeitos silenciados, internalizados
na própria linguagem, o que problematizaria a noção de uma identidade nacional
única e fixa. Portanto, Mário traria a voz do “outro” para dentro de seu texto,
através dos falares e das lendas populares. A obra estudada é anterior a
Macunaíma (1928), o que nos faz deduzir que Mário de Andrade ainda estava preso
aos condicionantes históricos que o colocavam como porta-voz dos operários, dos
negros e das mulheres que tinham sua condição profundamente modificada com a
modernidade, porém um arauto vinculado a uma classe social pouco comprometida
com as desigualdades de classe e nostálgica dos benefícios do passado:
Borges e Mário são os heróis lendários da crise do poder oligárquico,
os verdadeiros porta-vozes de um mundo em desmonte, nutridos por um estilo de
vida e pensamentos golpeado de morte. Tanto assim que tiveram de enfrentar uma
penca de vicissitudes pessoais e profissionais nos governos autoritários
implantados em 30. Não obstante, entoaram com garbo e talento incomparável a
cantilena do adeus aos privilégios do antigo regime. (MICELI, 2012, p.122)
Essa cantilena de que fala Miceli
estará presente no tom nostálgico de muitos poemas de Paulicéia Desvairada. Mas
insistimos no fato de que a obra é descontínua, no sentido de que possui
perspectivas ideológicas conflitantes e temporalidades diversas. Podendo ser
encontrada nela, como veremos nos capítulos seguintes, a perspectiva de uma
classe social que se via em decadência e travava um duelo contra a burguesia
emergente e estrangeira. Podemos também encontrar na obra, uma espécie de
palimpsesto escrito nas ruas paulista, nas quais a chegada rápida da modernidade
não apagara por completo as marcas do passado, marcas estas presentes não só
fisicamente, mas também no imaginário de nosso flâneur e que aparecerão com
lampejos na memória da voz poética, lampejos típicos de um sujeito extremamente
ligado ao passado e que buscava agarrar-se em seus lugares de memória.
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Fonte:
Fonte:
Raniere de Araújo Marques: “Modernização
estética e sujeitos periféricos em paulicéia desvairada de Mário de Andrade”. (Dissertação
apresentada à Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do
título de Mestre em Literatura e Cultura. Orientadora: Profª. Drª. Zélia
Monteiro Bora). João Pessoa, 2014.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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