13/09/2015

Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio José da Silva

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Uma novela diabólica: as Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio José da Silva

É, no mínimo, curioso que, nas apreciações críticas sobre as Obras do Diabinho da Mão Furada, pouco se tenha atentado para a figura de seu personagem principal: o Diabo. Em virtude desse desvio, a escassa fortuna crítica sobre a novela parece ter estagnado, num primeiro momento, na questão da autoria do texto e, num segundo, na sua vinculação com a picaresca espanhola. Na verdade, cada um desses momentos interpretativos está vinculado ao outro, e pode-se dizer que as incertezas da autoria são, de fato, o elemento desestabilizador das várias tentativas de precisar um sentido menos precário para um texto que, publicado apenas nos finais do século XIX, como infere Palma-Ferreira, parece se reportar “a texto escrito originariamente no século XVII” (PALMA-FERREIRA, 1981, p.37).

A levarmos a sério a época indicada por Palma-Ferreira – aliás, uma suposição feita, ao que parece, com base na letra do manuscrito -, teríamos de concluir que a autoria não poderia ser atribuída nem a Antônio José da Silva, a quem tem sido dominantemente delegada, nem a Pedro José da Fonseca, pois que ambos viveram já no transcurso do século XVIII. Tal constatação, afinal, apóia a tese de Palma-Ferreira, que entende ser a novela de fonte anônima, como foram os casos de tantos outros folhetos de cordel dos séculos XVII e XVIII (PALMA-FERREIRA, 1981, p.399).

O próprio Palma-Ferreira é responsável por um estudo comparativo entre as Obras do Diabinho e a novela picaresca espanhola. Em linhas gerais, o que o estudioso demonstra é que a novela portuguesa aproximar-se-ia das conformações de um “pícaro tardio” – já desgastado pelo uso excessivo dos traços originais que impulsionaram a novela picaresca no século XVI -, e em que os seus autores, para escaparem à vigilância da censura do Santo Ofício, eram obrigados a diluir “o verismo na invenção e na metáfora, que é por sua vez um dos elementos fundamentais da literatura barroca” (PALMA-FERREIRA, 1981, p. 34-5).

Palma-Ferreira entende, porém, que nem dessa picaresca “decadente” poder-seia, de fato, aproximar a novela portuguesa, porque, mesmo nessas manifestações tardias, o imaginário seria utilizado como recurso para acentuar as maldades da vida humana – coisa que não aconteceria na obra portuguesa, na qual a recorrência ao sonho desliga a ação da superfície humana e transforma-se em pura alegoria.

Concordando, no geral, com a visão de Palma-Ferreira, apresenta-se, também, o estudo da pesquisadora sueca Ulla M. Trullemans, Huellas de la picaresca em Portugal. Para tal autora, o que caracterizaria a novela portuguesa seria um duplo plano, no qual se oporiam o realismo e o fantástico. A seu ver, ao primeiro plano corresponderiam os episódios mais realistas e populares da obra; nele, a linguagem é simples, sem artifícios, com o uso sistemático de ditos e provérbios. No segundo plano, entretanto, as alusões são mais eruditas, a linguagem descamba para o tom grandiloqüente e os episódios tratam de temas abstratos e irreais. Para Trullemans, essa atitude antitética, que reconhece ser a expressão privilegiada do Barroco, pouco tem a ver com a novela picaresca, e diz que, se se desejasse ver esse influxo na obra portuguesa, haveria de se tomar, dos dois planos nela presentes, aquele que se encontra mais próximo do humano (TRULLEMANS, 1968, p.132-5).

Já por esses poucos aspectos apresentados até aqui, pode-se perceber o caráter ambíguo e problemático que as Obras do Diabinho da Mão Furada colocam para o leitor: têm traços da picaresca, mas, de fato, não o são; foram publicadas no século XIX, mas parecem pertencer ao século XVII; são atribuídas a Antônio José da Silva, por uns, e a Pedro José da Fonseca, por outros – podendo, ainda, não terem sido produzidas por nenhum dos dois.

Aventamos, no início, que talvez a questão da autoria esteja no cerne dessas diabólicas ambigüidades. Assim, ainda que as reflexões produzidas por esse tipo de preocupação crítica sejam menos genuinamente estéticas (como é do gosto de nosso tempo), podem conduzir-nos, no entanto, ao centro de interesse que este estudo quer propor.

Indo direto à questão, pode-se dizer que, ao que tudo indica, a autoria da novela nunca poderá ser definitivamente esclarecida, em virtude, principalmente, da existência de dois manuscritos do texto: um depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa e outro na Academia de Ciências da mesma cidade. Nada de estranho haveria nesse fato, não fosse a primeira edição ter sido feita, com base no manuscrito da Biblioteca Nacional, entre os anos de 1860-1861, na Revista Brasileira, por um dos próceres da primeira geração romântica brasileira, o poeta Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879). É, justamente, a Porto Alegre, repleto das idéias de um nativismo literário exacerbado, próprio de nossos primeiros românticos, que se deve a atribuição original do texto como sendo de Antônio José da Silva. Ocorre que, em 1925, Fidelino de Figueiredo dá à estampa o manuscrito da Academia de Ciências de Lisboa, na Revista de Língua Portuguesa, atribuindo, por sua vez, a obra a Pedro José da Fonseca – dicionarista português a quem o citado manuscrito deve ter pertencido.

A partir daí, a celeuma em torno da autoria do texto ganha contornos mais problemáticos, fazendo ressoar os aspectos tensos de um debate cultural que, pelo menos até meados do século passado, subsistiu nas considerações sobre os relacionamentos entre a literatura portuguesa e a brasileira, em decorrência, sobretudo, da persistência, no Brasil, de uma crítica de raiz nacionalista, herdeira da tradição romântica, de que, como já se disse, Porto Alegre foi um dos iniciadores. Exemplar, nesse sentido, é o estudo de Cândido Jucá Filho sobre Antônio José da Silva, de 1940, em que o crítico tenta provar, por meio do apontamento da ocorrência de “brasileirismos” na linguagem de suas peças, o caráter brasileiro de suas obras – como a querer reivindicá-las como pertencentes ao cânone nacional (JUCÁ FILHO, 1940).

A atribuição ao desconhecido Pedro José da Fonseca, feita por Fidelino de Figueiredo, não parece, entretanto, querer atingir esse âmbito de preocupações. Em verdade, o argumento decisivo de Figueiredo, para desqualificar a designação de Antônio José da Silva como autor do texto, diz respeito a outra questão, que, aliás, leva muito a pensar. Entende, em síntese, Figueiredo que seria pouco provável que um homem que passara a maior parte de sua vida sendo perseguido pelo Santo Ofício pudesse produzir uma obra que soa, no geral, como pia e de declarado louvor à Igreja contra-reformista, principalmente pelo que vai dito, nesse sentido, de maneira explícita, na “Advertência ao Leitor”, no “Proêmio” e na “Protestação” – que emolduram o texto da narrativa propriamente dita.

O raciocínio de Figueiredo deixa entrever que compreende serem as Obras do Diabinho da Mão Furada um texto eminentemente doutrinário, não se destacando em nada daqueles outros textos que compõem a chamada “literatura de proveito e exemplo”, dominante na narrativa portuguesa dos séculos XVII e XVIII. Ora, parece concluir Figueiredo, sendo essa literatura a manifestação expressiva que respaldava o universo mental de que o cristão-novo Antônio José da Silva era vítima, como poderia ter escrito ele um texto sob os seus moldes e sob sua ideologia?

Tal argumento tinha lá o seu peso e ficou, ao que se sabe, sem resposta, até que, em 1973, João Gaspar Simões faz uma nova edição das Obras do Diabinho da Mão Furada, na Coleção Grandes Esquecidos, insistindo na atribuição da autoria a Antônio José da Silva. Refutando, no texto de apresentação da obra, a idéia de Figueiredo, diz que, além de não ser possível provar que os textos do “Proêmio”, da “Advertência ao Leitor” e da “Protestação” tenham sido realmente escritos pelo autor da novela, aventa a hipótese de que, ainda que isso tivesse ocorrido, poder-se-ia entender tal fato como uma estratégia, um premeditado artifício, representando uma “prudente medida de dissimulação”, a fim de não acirrar ainda mais contra si a vigilância inquisitorial, uma vez que as suas obras teatrais eram vistas como impertinentes em relação aos costumes religiosos da época (SIMÕES, 1973, p.11-3).

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Fonte:
Silva Odil José de Oliveira Filho
(Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Literatura Portuguesa no Departamento de Literatura da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), no campus de Assis – SP): "Uma novela diabólica: as Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio José da Silva". Disponível em: http://www.fclar.unesp.br/

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