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Uma novela diabólica: as Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio
José da Silva
É, no mínimo, curioso que, nas
apreciações críticas sobre as Obras do Diabinho da Mão Furada, pouco se tenha
atentado para a figura de seu personagem principal: o Diabo. Em virtude desse
desvio, a escassa fortuna crítica sobre a novela parece ter estagnado, num
primeiro momento, na questão da autoria do texto e, num segundo, na sua
vinculação com a picaresca espanhola. Na verdade, cada um desses momentos
interpretativos está vinculado ao outro, e pode-se dizer que as incertezas da
autoria são, de fato, o elemento desestabilizador das várias tentativas de
precisar um sentido menos precário para um texto que, publicado apenas nos
finais do século XIX, como infere Palma-Ferreira, parece se reportar “a texto
escrito originariamente no século XVII” (PALMA-FERREIRA, 1981, p.37).
A levarmos a sério a época
indicada por Palma-Ferreira – aliás, uma suposição feita, ao que parece, com
base na letra do manuscrito -, teríamos de concluir que a autoria não poderia
ser atribuída nem a Antônio José da Silva, a quem tem sido dominantemente delegada,
nem a Pedro José da Fonseca, pois que ambos viveram já no transcurso do século
XVIII. Tal constatação, afinal, apóia a tese de Palma-Ferreira, que entende ser
a novela de fonte anônima, como foram os casos de tantos outros folhetos de
cordel dos séculos XVII e XVIII (PALMA-FERREIRA, 1981, p.399).
O próprio Palma-Ferreira é
responsável por um estudo comparativo entre as Obras do Diabinho e a novela
picaresca espanhola. Em linhas gerais, o que o estudioso demonstra é que a
novela portuguesa aproximar-se-ia das conformações de um “pícaro tardio” – já
desgastado pelo uso excessivo dos traços originais que impulsionaram a novela
picaresca no século XVI -, e em que os seus autores, para escaparem à
vigilância da censura do Santo Ofício, eram obrigados a diluir “o verismo na
invenção e na metáfora, que é por sua vez um dos elementos fundamentais da
literatura barroca” (PALMA-FERREIRA, 1981, p. 34-5).
Palma-Ferreira entende, porém,
que nem dessa picaresca “decadente” poder-seia, de fato, aproximar a novela portuguesa,
porque, mesmo nessas manifestações tardias, o imaginário seria utilizado como
recurso para acentuar as maldades da vida humana – coisa que não aconteceria na
obra portuguesa, na qual a recorrência ao sonho desliga a ação da superfície
humana e transforma-se em pura alegoria.
Concordando, no geral, com a
visão de Palma-Ferreira, apresenta-se, também, o estudo da pesquisadora sueca
Ulla M. Trullemans, Huellas de la picaresca em Portugal. Para tal autora, o que
caracterizaria a novela portuguesa seria um duplo plano, no qual se oporiam o
realismo e o fantástico. A seu ver, ao primeiro plano corresponderiam os
episódios mais realistas e populares da obra; nele, a linguagem é simples, sem
artifícios, com o uso sistemático de ditos e provérbios. No segundo plano,
entretanto, as alusões são mais eruditas, a linguagem descamba para o tom
grandiloqüente e os episódios tratam de temas abstratos e irreais. Para
Trullemans, essa atitude antitética, que reconhece ser a expressão privilegiada
do Barroco, pouco tem a ver com a novela picaresca, e diz que, se se desejasse
ver esse influxo na obra portuguesa, haveria de se tomar, dos dois planos nela
presentes, aquele que se encontra mais próximo do humano (TRULLEMANS, 1968,
p.132-5).
Já por esses poucos aspectos
apresentados até aqui, pode-se perceber o caráter ambíguo e problemático que as
Obras do Diabinho da Mão Furada colocam para o leitor: têm traços da picaresca,
mas, de fato, não o são; foram publicadas no século XIX, mas parecem pertencer
ao século XVII; são atribuídas a Antônio José da Silva, por uns, e a Pedro José
da Fonseca, por outros – podendo, ainda, não terem sido produzidas por nenhum
dos dois.
Aventamos, no início, que talvez
a questão da autoria esteja no cerne dessas diabólicas ambigüidades. Assim,
ainda que as reflexões produzidas por esse tipo de preocupação crítica sejam
menos genuinamente estéticas (como é do gosto de nosso tempo), podem
conduzir-nos, no entanto, ao centro de interesse que este estudo quer propor.
Indo direto à questão, pode-se
dizer que, ao que tudo indica, a autoria da novela nunca poderá ser
definitivamente esclarecida, em virtude, principalmente, da existência de dois
manuscritos do texto: um depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa e outro na
Academia de Ciências da mesma cidade. Nada de estranho haveria nesse fato, não
fosse a primeira edição ter sido feita, com base no manuscrito da Biblioteca
Nacional, entre os anos de 1860-1861, na Revista Brasileira, por um dos
próceres da primeira geração romântica brasileira, o poeta Manuel de Araújo
Porto Alegre (1806-1879). É, justamente, a Porto Alegre, repleto das idéias de
um nativismo literário exacerbado, próprio de nossos primeiros românticos, que
se deve a atribuição original do texto como sendo de Antônio José da Silva.
Ocorre que, em 1925, Fidelino de Figueiredo dá à estampa o manuscrito da
Academia de Ciências de Lisboa, na Revista de Língua Portuguesa, atribuindo,
por sua vez, a obra a Pedro José da Fonseca – dicionarista português a quem o
citado manuscrito deve ter pertencido.
A partir daí, a celeuma em torno
da autoria do texto ganha contornos mais problemáticos, fazendo ressoar os
aspectos tensos de um debate cultural que, pelo menos até meados do século
passado, subsistiu nas considerações sobre os relacionamentos entre a
literatura portuguesa e a brasileira, em decorrência, sobretudo, da
persistência, no Brasil, de uma crítica de raiz nacionalista, herdeira da
tradição romântica, de que, como já se disse, Porto Alegre foi um dos
iniciadores. Exemplar, nesse sentido, é o estudo de Cândido Jucá Filho sobre
Antônio José da Silva, de 1940, em que o crítico tenta provar, por meio do
apontamento da ocorrência de “brasileirismos” na linguagem de suas peças, o
caráter brasileiro de suas obras – como a querer reivindicá-las como
pertencentes ao cânone nacional (JUCÁ FILHO, 1940).
A atribuição ao desconhecido
Pedro José da Fonseca, feita por Fidelino de Figueiredo, não parece,
entretanto, querer atingir esse âmbito de preocupações. Em verdade, o argumento
decisivo de Figueiredo, para desqualificar a designação de Antônio José da
Silva como autor do texto, diz respeito a outra questão, que, aliás, leva muito
a pensar. Entende, em síntese, Figueiredo que seria pouco provável que um homem
que passara a maior parte de sua vida sendo perseguido pelo Santo Ofício
pudesse produzir uma obra que soa, no geral, como pia e de declarado louvor à
Igreja contra-reformista, principalmente pelo que vai dito, nesse sentido, de
maneira explícita, na “Advertência ao Leitor”, no “Proêmio” e na “Protestação”
– que emolduram o texto da narrativa propriamente dita.
O raciocínio de Figueiredo deixa
entrever que compreende serem as Obras do Diabinho da Mão Furada um texto
eminentemente doutrinário, não se destacando em nada daqueles outros textos que
compõem a chamada “literatura de proveito e exemplo”, dominante na narrativa
portuguesa dos séculos XVII e XVIII. Ora, parece concluir Figueiredo, sendo
essa literatura a manifestação expressiva que respaldava o universo mental de
que o cristão-novo Antônio José da Silva era vítima, como poderia ter escrito
ele um texto sob os seus moldes e sob sua ideologia?
Tal argumento tinha lá o seu peso
e ficou, ao que se sabe, sem resposta, até que, em 1973, João Gaspar Simões faz
uma nova edição das Obras do Diabinho da Mão Furada, na Coleção Grandes
Esquecidos, insistindo na atribuição da autoria a Antônio José da Silva.
Refutando, no texto de apresentação da obra, a idéia de Figueiredo, diz que,
além de não ser possível provar que os textos do “Proêmio”, da “Advertência ao
Leitor” e da “Protestação” tenham sido realmente escritos pelo autor da novela,
aventa a hipótese de que, ainda que isso tivesse ocorrido, poder-se-ia entender
tal fato como uma estratégia, um premeditado artifício, representando uma
“prudente medida de dissimulação”, a fim de não acirrar ainda mais contra si a
vigilância inquisitorial, uma vez que as suas obras teatrais eram vistas como
impertinentes em relação aos costumes religiosos da época (SIMÕES, 1973,
p.11-3).
[...]
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Fonte:
Silva Odil José de Oliveira Filho (Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Literatura Portuguesa no Departamento de Literatura da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), no campus de Assis – SP): "Uma novela diabólica: as Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio José da Silva". Disponível em: http://www.fclar.unesp.br/
Fonte:
Silva Odil José de Oliveira Filho (Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Literatura Portuguesa no Departamento de Literatura da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), no campus de Assis – SP): "Uma novela diabólica: as Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio José da Silva". Disponível em: http://www.fclar.unesp.br/
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