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O universo ficcional de Camilo Castelo Branco: análise de alguns expedientes
literários.
Esta sociedade, que vos manda sentar no seu
baquete, retira-vos o talher no dia em que disserdes que vos deram gato por
lebre. Comei o gato em público; e se o estômago o não digere, lançai-o bem a
ocultas, de modo que vos não ouçam o soluço nauseado do vômito.
GATO POR LEBRE, meus amigos folhetinistas
encarregados de provar que não há gato, seja aquele o vosso mote, o timbre do
vosso jornal, se a sorte mofina vos fadar para este fadário em que me vejo.
Camilo Castelo Branco
Um Homem de Brios
A fim de
mostrar que a ficção camiliana não pode se r tida como sinônimo de meras
“história[s] de amor” (REIS, 1990, p. 81), estereótipo que em pouco ou nada
contribui para uma concepção mais aprofundada do legado camiliano, a primeira
formulação elaborada pela crítica de viés “biografista-passional” (LOPES, 2007,
p. 90) que devemos deixar de lado é a divisão da obra de Camilo Castelo Branco
em duas tendências opositivas, de um lado a passional e de outro a satírica. Isto
porque, sustentar tal categorização, assim como notou Franchetti (cf. 2003),
seria perpetuar a simplificação do cânone do escritor de São Miguel de Seide,
uma vez que essa polarização mais encobre do que traz à luz elementos textuais
característicos à tessitura de seus romances, elementos estes que, muito
provavelmente, ainda hoje são os responsáveis pelo interesse de leitura e análise da obra de Camilo, volumes que nunca deixaram de
ser reeditados, lidos e comentados.
Sob este
prisma, neste estudo, procuraremos vislumbrar aquilo que está para além dos enredos
tão valorizados pela crítica, partindo da observação das especificidades de
cada romance que aqui analisaremos,
Onde está
a Felicidade?e Um Homem de Brios, retirando à “ênfase
[d]os aspectos narrativos” (FRANCHETTI, 2003, p. XVII), as tradicionais
sínteses diegéticas, e privilegiando os “aspectos ligados à enunciação”
(FRANCHETTI, 2003, p. XVII), aqueles que tornam a ficção camiliana matéria
perenemente viva.
Entretanto,
para chegarmos à análise destes expedie ntes, uma reflexão acerca da condição
de escritor profissional de Camilo se faz imprescindível, um estatuto que não
diminui nem o valor nem a importância de sua obra, mas sim a particulariza.
Primeiramente, façamos um breve preâmbulo acerca do ambiente literário
oitocentista no qual Camilo se insere.
Como
sabemos, o século XIX é um período de profundas transformações sócio-culturais
no âmbito europeu, e m decorrência, fundamentalmente, das Revoluções Industrial
e Francesa, em Inglaterra e França, respectivamente. Isto porque estas
revoluções, ambas ocorridas em meados do século XVIII, deflagram a decadência
do mundo antigo, com seus valores aristocráticos e sua arte cortesã, e determinam,
em definitivo, o surgimento
do mundo moderno, capitalista e burguês. Com efeito, a dupla revolução, com a
conseqüente ascensão da burguesia, modifica de tal forma a estrutura medieval
até então em vários sentidos vigente, que finda por dar início ao longo século
XIX europeu (cf. HOBSBAWN, 2006), somente encerrado com a primeira grande
guerra mundial.
No que
concerne às mudanças na forma de concepção da arte literária deste período,
tema que aqui nos interessa focar, segundo Arnold Hauser, em sua História
Social da Literatura e da Arte , a classe média alcança o poder econômico,
social e político na Europa e faz com que “a arte cerimonial das cortes” (1973,
p. 646) perca muito de seu prestígio e ceda o poder artístico ao gosto desta
classe, de modo que, já no final do século XVIII e início do século XIX, “a
única arte digna de consideração na Europa [...] é a burguesa”
(1973, p. 646).
Nesse
sentido, a arte cortesã, marcadamente decorativa, cerimonial e ostentativa, deixa de ser tão bem quista
face ao advento da arte de gosto burguês,
focada no indivíduo e em suas experiências cotidianas
vividas em um mundo no qual os valores tradicionais, como a imobilidade social,
a honra e a família, perdem muito de sua importância e o dinheiro se torna o
elemento sine qua non para a vida em sociedade – trata-se de um
ambiente pautado pelo capitalismo, não o podemos esquecer. Entretanto,
vale notar que, para além da alteração na mundividência literária do período, a
transformação do concerto social oitocentista acarretou uma outra e fundamental
mudança no que tange àquele que antecede a obra literária, o escritor.
Se no
mundo tradicional o mecenato era o responsáve l pela sobrevivência e prestígio
do escritor, no mundo cap italista o autor se depara com a inaudita empreitada
de comercializar suas obras, que se tornam bem de consumo, mercadoria da qual
passa a advir o sustento dos homens de letras.
Sob este
prisma, como decorrência incontornável des ta nova ordem mundial, os escritores
oitocentistas encontram-se, inexoravelmente, atrelados às regras do mercado
editorial e às expectativas de leitura do público oitocentista que surgem com a
ascensão da burguesia. Acerca do apare cimento deste conjunto de leitores e de
suas características, observa Hauser:
Na
segunda metade do século [XVIII, na Inglaterra], a proteção dos escritores pelos
particulares desaparece definitivamente, e por volta de 1780 nenhum escritor
está à mercê ou depende do patrocínio privado. O número de poetas e homens de
letras que vivem das suas obras de arte aumenta de dia para dia, exatamente
como sucede com o número de pessoas que lêem e compram livros [...].” (1973, p.
699). “[...] um novo público com hábitos de leitura regular, isto é, um círculo
relativamente largo que lê e compra livros com regularidade, assegurando assim
a numerosos escritores um modo de vida livre de obrigações pessoais. A
existência deste público deve-se, em primeiro lugar, à proeminência cada vez
maior da cl asse média abastada, que rompe as prerrogativas culturais da
aristocracia e manifesta um interesse vívido e cada vez maior pela literatura.
Os novos detentores da cultura não pode m produzir indivíduos com
personalidade, ambiciosos e suficientemente ricos que bastem para desempenhar o
papel de grandes patronos, mas são suficientemente numerosos para garantir um
mercado de livros que assegura a manutenção aos escritores.
(1973, p. 689-690).
No que diz
respeito às expectativas de leitura deste novo público, de acordo com a crítica
Sandra Vasconcelos, estudiosa que segue o pensamento de Ian Watt, os leitores
buscavam em obras literárias “um meio expressivo mais simples, direto e,
portanto, mais próximo da linguagem cotidiana do homem comum” (2002, p. 15). E o gênero literário qu e surge de modo
a atender estes anseios é o romance, forma que intenciona, constantemente, ser
um “relato autêntico das experiências reais dos indivíduos” (2002, p. 14) e que
“levanta de forma aguda o problema da correspondência entre a obra literária e
a realidade que ela imita.” (2002, p. 13). Uma peculiaridade também muito enfatizada
por pesquisadores é a acentuada presença da mulher, “leitora” burguesa com
anseios literários muito particulares: preencher o vasto tempo ocioso com uma
literatura que se aproxime de sua realidade.
Consoante
Vasconcelos, a ascensão do romance possui justamente esta “base sociológica”
(2002, p. 20) marcada pelo domínio sócio-cultural da burguesia de então. Em
outros termos, o romance surge e se consolida – em contraposição ao que
tínhamos anteriormente com as estórias romanescas “tediosamente long[a]s e
artificiais” (VASCONCELOS, 2002, p. 15) ao gosto cortesão – devido a sua
proximidade com o real e o compromisso com a verossimilhança interna à obra de
arte (cf. VASCONCELOS, 2002, p. 28), elementos estes que correspondem àquilo
que, segundo a autora, queria ser lido pelo público burguês.
Como
particularidade relevante deste novo gênero, v ale notar, como não poderia
deixar de ser, sua relação de dependência junto ao mercado editorial
oitocentista. Visando lucros imediatos, muitas vezes, alguns romances somente
conseguiam ser editados em volume depois de serem publicados em forma de
folhetim em periódicos e aprovados pelo público: “Dentre os meios de expressão
cultural de que o novo público se alimenta, os periódicos – a grande novidade
da época – [...] são os mais importantes. É deles que a classe média recebe sua
cultura literária e social [...]”. (HAUS ER, 1973, p. 693). Dessa forma,
encontramos na Europa do século XIX, um público leitor ávido por romances e
folhetins e um mercado editorial sedento por autores que os escrevessem de
forma a agradar e suprir essa demanda gerando proveitos financeiros: um
movimento capitalista muito próprio do mundo moderno no qual a literatura passa
a ser bem agregado de valor comercial.
Passando
especificamente ao espaço português, nele encontramos o mesmo processo de
mercantilização do meio artístico, porém, com alguns anos de defasagem – em
Portugal, o século XIX somente tem seu início em aproximadamente 1820, com o
advento da Revolução Liberal. Uma diferença temporal que influencia diretamente
na produção literária comercial no país, pois, enquanto na França, por exemplo,
autores profissionais como Honoré de Balzac, o
primeiro escritor francês a viver somente de sua escritura, já estavam
praticamente encerrando sua carreira – Balzac morre em 1850 –, em Portugal este
ofício está em vias de se iniciar. Camilo Castelo Branco, equivalente português
de Balzac por ser, como já mencionamos, o primeiro em seu país a estrear a
profissão das letras, publica seu primeiro romance de atualidade em 1854, o
volume A filha do acerdiago.
Contudo,
como já dito, ainda que possamos identificar um distanciamento temporal entre a
nação portuguesa e o restante da Europa mais imediatamente atingido pelos efeitos
da dupla revolução, encontramos no século XIX um Portugal dominado pelas
relações capitalistas e pela classe média burguesa, que passam a reger, de
forma análoga ao restante da Europa, o gosto literário, o mercado editorial e a
pena dos literatos da época. Posto desse modo, pode restar a impressão de que os escritores
oitocentistas fossem meros autores de obras feitas tão somente para aprazer o
público leitor. No entanto, não é esta posição passiva que encontramos , ao menos,
nos escritos de Camilo Castelo Branco, um dos que mais viveram essa realidade
mercadológica inerente ao século XIX, mas que nem por isso se submeteu, sem
maiores questionamentos, a ela. Vejamos, então, como Camilo lida com este
contexto literário oitocentista.
Para que
livros sejam vendidos, é necessário que ha ja um público leitor diretamente
interessado na matéria que os compõem. Nesse sentido, seguindo esta premissa
incontornável, Camilo, escritor profissional, encontrava-se perante a tarefa de
agradar o público de sua época, ou seja, tinha que escrever aquilo que queria
ser lido, até mesmo porque era isto que garantia sua subsistência: “só pode
escrever para a posteridade quem tem seguro o que comer.” (FRANCHETTI, 2003, p.
XXIV). Todavia, um problema fulcral se punha diante da pena de Camilo: sua
intenção de crítica à sociedade de seu tempo não podia escapar da economia de
suas obras:
O
problema consistia, essencialmente, em conciliar o gosto ‘poético’ dos
leitores, sempre interessados numa ficção que lhes proporcionasse uma visão da
vida mais atraente do que a própria vida, capaz de lhes criar uma evasão fácil
em mundos ideais, com a preocupação, tão característica do ro mance de
atualidade, segundo o modelo da Comédie
Humaine de Balzac, isto é, pintar
os costumes de uma sociedade que, no plano do real, se movia por forças
que eram a negação daqueles ideais que os leitores procuravam imaginativamente
no mundo da ficção. (CASTRO, 1991, p. 53, grifo do autor)
Em outros
termos, Camilo encontrava-se ante a difícil empreitada de satisfazer o público
leitor e o mercado editorial d e sua época, que buscavam em uma obra a
idealidade de um romance de temática amorosa, ao mesmo tempo em que se dedicava
à análise de sua contemporaneidade: a argentária sociedade portuguesa
oitocentista, o ambiente literário de sua época etc. Como conseqüência imediata
desta composição entre ‘ideal e ‘real’, da qual o autor não abriu mão, Camilo
compôs os almejados enredos passionais, porém enquadrados e indissociáveis do
contexto social e literário que o circundava.
Nesse
sentido, como implicação direta à realização textual, podemos tomar a narrativa
camiliana como uma estrutura composta por dois planos, um que compete à
superficialidade dos ansiados entrechos romanescos passionais – o nível da narrativa ou do enunciado –, já
muito abordados pela crítica “biografista-passional” (LOPES, 2007, p. 90), e
outro mais profundo e complexo – o plano
da narração ou da enunciação –, que a todo o momento irrompe à superfície do
texto e a ela se mescla, propondo releituras, o plano camiliano de cariz
reflexivo e analítico até hoje pouco estudado.
Em poucas
palavras, o primeiro plano concerne ao nível da narrativa, fabulações feitas ao
gosto do público e do mercado editorial, e o segundo plano se refere ao nível
da narração, onde são aplicados recursos de modo a rever o que foi veiculado
nos episódios da narrativa, sendo a voz do narrador camiliano a grande
responsável por esta aplicação.
Dessa maneira,
cabe-nos aqui, primeiramente, revelar o que constitui este nível mais profundo
da ficção camiliana, promovendo a análise de alguns elementos que o compõe,
para que, a partir d esta verificação, possamos vislumbrar quais são as implicações de seu s empregos para
a economia do texto camiliano, principalmente, no que tange às temáticas
centrais de cada obra. Alguns destes expedientes, sobre os quais nos deteremos
neste estudo, já foram elencados pelo estudioso contemporâneo Paulo
Franchetti (2003), recursos
relativos aos “aspectos
da enunciação” (2003, p.
XVII), tais como a ironia e o constante jogo com as expectativas de leitura.
Vale
ressaltar que o primeiro deles, a ironia, será analisado no romance Onde
está a Felicidade?, visto que, como veremos, ele nos conduz a uma
interpretação mais aprofundada acerca da temática fulcral que figura neste
volume, a crítica à argentária sociedade portuguesa oitocentista; e o segundo,
o jogo com as expectativas de leitura, será abordado por meio da apreciação da
obra Um Homem de Brios, uma vez que, como se dará a conhecer, este
exemplar constitui, como um todo, um grande jogo com anseios literários do
público leitor e do mercado editorial de sua época, a partir do mote fundamental
deste romance, a relatividade do sentimento humano. Passemos, então, à análise
destes recursos.
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Fonte:
Ana Luísa Patrício Campos de Oliveira: "A ficção camiliana para além de histórias de amor". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2008.
Fonte:
Ana Luísa Patrício Campos de Oliveira: "A ficção camiliana para além de histórias de amor". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2008.
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