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Paulo Prado e sua interpretação do Brasil – o método impressionista
O pesquisador da obra de Paulo
Prado necessariamente haverá de lidar com uma dupla dificuldade: afora a
economia de textos que lhe ficou peculiar, há em seus escritos, conforme
alerta-nos Berriel (2000), um corpo de idéias que não podem ser consideradas
como próprias, na medida em que são, antes, uma espécie de adaptação e reelaboração
das teses de um grupo de intelectuais, pertencentes a uma geração anterior à
sua e que já trazem formuladas, de longa data, as suas concepções sobre o
Brasil. Por outro lado, o método historiográfico de Paulo Prado parece ser, em
larga medida, subjetivante, “impressionista” – como ele mesmo o definiu –, o
que por vezes confere a suas obras limites algo arbitrários.
A conjugação destes dois fatores
resultará em uma obra de fronteiras enleadas, às quais, no final das contas,
sobrepor-se-ão dois objetivos sobremodo estratégicos: num duplo jogo de
erudição e prestígio, adquiridos ao longo de algumas décadas de estudos,
viagens ao estrangeiro, interlocuções com intelectuais e artistas, fomento e
aquisições culturais, documentais, históricas, enfim, nosso autor obteve
legitimidade para dialogar com as principais leituras sobre o Brasil e uma
espécie de “licença” para fazer uso de uma certa arbitrariedade no trato da história.
Já no prefácio à 1ª edição de
Paulística, Paulo Prado procura justificar sua liberdade de atuação colativa e
subjetivadora diante da história, “submetendo a documentação livresca à
subjetividade do historiador”:
Os documentos – já os disse Ferrero – nada elucidam se o espírito
humano não os liga, não os encadeia e os faz falar, e essa dificuldade muitas
vezes aumenta com a abundância documentária. Os fatos, por seu turno, são
apenas dados, indícios, sintomas em que aparece a realidade histórica: são
manifestações do vasto processo vital. A poetização desses fatos, na ingenuidade
dos cronistas e das lendas, é que dá à aridez dos arquivos o sangue e a vida
necessários à compreensão da psicologia do passado, que não é somente a
narração do que fizeram os homens de uma época, mas também do que pensaram no
momento em que agiam. (Paulística, p. 58)
A isso nosso autor acrescentaria
mais tarde, e mais veementemente, no “PostScriptum” de sua segunda obra que o
“Retrato foi feito como um quadro impressionista”:
Dissolveram-se nas cores e no impreciso das tonalidades as linhas
nítidas do desenho e, como se diz em gíria de artista, das “massas e volumes”,
que são na composição histórica a cronologia e os fatos. Desapareceram quase
por completo as datas. Restam somente os aspectos, as emoções, a representação
mental dos acontecimentos, resultantes estes mais da dedução especulativa do
que da seqüência concatenada dos fatos. (Retrato do Brasil, pp. 185-186)
E emendaria, naquele mesmo tom
pretensamente “poético” que sobrepujava, em seus trabalhos historiográficos, o
que ele chamaria a “imparcialidade do historiador”:
[Foi preciso] considerar a história [...] como conjunto de meras
impressões, procurando no fundo misterioso das forças conscientes ou
instintivas as influências que dominaram, no correr dos tempos, os indivíduos e
a coletividade. É assim que o quadro – para continuar a imagem sugerida –
insiste em manchas, mais luminosas, ou extensas, para tornar mais parecido o
retrato. (idem, p. 186)
Ao que parece, Paulo Prado
assumia como método historiográfico o impressionismo, movimento da pintura
moderna que prezava a “liberdade do artista” e que seria em suas duas obras –
mais ainda na segunda, que não coincidentemente receberia o título de Retrato –
convertido em recurso sistemático ao tratar a história. Descartando,
inicialmente, a disciplina de qualquer método mais rigoroso no trato da
história, Paulo Prado elege uma outra, mais importante segundo ele: a de buscar
o máximo distanciamento no tocante a possíveis influências que pudessem exercer
sobre seu espírito alguma espécie de condicionamento na releitura do passado
nacional. Na verdade, gabar-se-ia nosso autor declaradamente em sua segunda
obra de “ter fechado os olhos à mera aparência das coisas ambientes,
absorvente, tirânica e tantas vezes falsa”.
Mas em que medida um método das
artes plásticas poderia transmudar-se em método historiográfico? E quais os
efeitos desta escolha metodológica sobre os resultados obtidos?
Impressionistas, distorcidos, enleados, subjetivantes? É, em especial, Berriel
quem primeiro conjetura algumas respostas a esta questão, ao estabelecer a
diferença básica entre um pintor impressionista e um historiador impressionista:
O pintor desta escola, apesar de poder escolher o objeto que vai
impressioná-lo, não deve, entretanto, organizar previamente este mesmo objeto.
[Já Paulo Prado] não agiu desse modo: partindo de uma mistura do que viu [...]
com aquilo que leu e ouviu sobre o Brasil, e anexando ainda uma documentação
sobre o passado nacional que ele mesmo fez buscar e publicar, [ele] preparou-se
minuciosamente para ter as impressões que, com anterioridade, queria ter. [...]
Mas a adoção desta versão adaptada do Impressionismo indica mais coisas. Como
método, esta tendência faz incidir sobre o indivíduo em sua constituição
histórica particular a representação do mundo, que fica assim marcadamente
subjetivada. (BERRIEL, 2000, p. 157)
Para concluir, em seguida, que
“isso pressupõe autoconfiança” e – emendaríamos – autenticidade, bem como
prestígio e legitimidade, que serviriam ao propósito de Paulo Prado – de elogio
à sua condição de classe –, afora a licença para a arbitrariedade ao tratar da
História.
A tese de Berriel não deixa de
ser interessante, afinal de contas, na década de 1920 era a burguesia paulista
e, de maneira geral, as elites rurais que buscavam sua “plena autenticidade”,
respaldando, por certo, esta mesma autenticidade na “autoconfiança” de sua
condição de classe dominante e no prestígio e legitimidade dela advindos. Essa
investida já tinha sido, inclusive, preparada e bem a comprovam: a atualização
do espaço urbano, da cultura e das artes, primeiro pelo conselheiro Antônio
Prado – a inaugurar edifícios de cultura e arte, ao remodelar o perfil rural
acrescentando-lhe os principais anseios do “homem moderno”; depois, em sentido
semelhante, pelos modernistas de São Paulo, que fundaram – na verdade, diríamos
atualizaram – a arte e a cultura brasileiras; e, finalmente, por Paulo Prado,
nos momentos todos de organização da vida pratica brasileira que já debatemos
até aqui.
Insistimos: a tese de Berriel se
reforça ainda mais se pensarmos como a adoção de um método historiográfico
“impressionista”, que reclama para seu autor o direito de assumir um discurso
do qual não se cobraria pleno rigor metodológico e/ou factual, possivelmente
coincidiria com o discurso e as práticas da burguesia agrária de São Paulo
nessa mesma época, uma classe que se revestia de uma certa autonomia –
impressionista, subjetivante ou não – para fazer valer a versão que mais lhe
conviesse sobre o momento histórico de que participava, cotejando-o, se fosse o
caso, com um passado de vícios desde os primeiros anos do Descobrimento. Mas,
ao contrário de reforçar esta tese na íntegra, vendo nela a única explicação
para o “método impressionista” de Paulo Prado, pretendemos complementá-la com
uma outra possibilidade interpretativa: é, em especial, “impressionista” o
retrato de Paulo Prado na medida em que deixa de fora desta sua “versão
oficial” uma outra versão, mais realista, que, no momento mesmo em que nosso
autor escrevia suas duas obras históricas – a década de 1920 – fazia-se
presente, e de maneira pujante, na sociedade brasileira. Referimo-nos ao
impressionismo de Paulo Prado mais como uma estratégia – que, certamente,
estava sendo usada em favor da burguesia cafeeira (para concordamos com Berriel)
–, para ocultar as reais motivações que vinham arraigadas aos problemas e
desajustes brasileiros.
Noutros termos, ao tecer o seu
retrato do país – tanto em Paulística como no Retrato do Brasil, e mais
enfaticamente neste –, apontando-lhe, enfim, o diagnóstico de vícios e atrasos
que vinham de longe e se repetiam no presente, Paulo Prado neutraliza toda uma
conjuntura de conflitos sociais prevalecente na década de 1920. Traz à cena uma
conjugação de vícios de outrora, estendendo-os ao momento presente de modo a
anunciar a predisposição “telúrica” da burguesia cafeeira em corrigi-los, mas
sequer menciona a possibilidade de um processo de transformação social, isto é,
de transformação, nos termos marxianos, das condições econômicas de produção e
também das formas ideológicas a partir das quais os brasileiros pudessem tomar
consciência das contradições e disparidades sociais existentes no país,
provocadas, aliás, por sua própria classe de origem. Lembremos que o esforço de
Paulo Prado parecia contrário a isso: a Semana de 1922 procurou legitimar, no
campo artístico-cultural, a versão da hegemonia burguesa do café e de São
Paulo; em Paulística, nosso autor seguiria a mesma direção, como veremos, ao
conceber o paulista – do café – o único capaz de conduzir o Brasil, e assim por
diante.
Na mesma medida, as falhas
administrativas dos primeiros governadores até os atuais – falamos sempre da
perspectiva presente de nosso autor –, Paulo Prado as admite em larga escala:
“homens incapazes, desonestos” desde o início, e que na década de 1920 acenavam
“com a valorização artificial dos preços [do café], descuidando-se do
barateamento do custeio, do aumento da produção e do desenvolvimento do
consumo” (Retrato do Brasil, pp. 201-202); mas deixa de fora a análise de como
funcionava o Estado da era oligárquica: dos partidos, a exemplo do PRP ou do
PD, os burgueses do café cooptavam políticos, quando não os eram propriamente,
e montavam suas bancadas no Congresso Nacional, nas Prefeituras, nos Governos
de Estado, na Presidência da República – atuando como empresários e políticos,
sempre as duas coisas, intercedendo exclusivamente em favor de seus “interesses
materiais” e descuidando do essencial, das massas populares ou da questão da
democracia.
Questiona também Paulo Prado o
nosso “mal literário” – para ele com origem notável no romantismo – e as
fórmulas “caducas” da arte-cultura, elegendo os modernistas de São Paulo como
os epígonos da mais profícua “originalidade nacional” e pretendendo com isso
fundar a modernidade brasileira – sempre vinculada às tradições rurais das
grandes propriedades, diga-se de passagem; mas negligencia a expressividade dos
outros modernismos existentes Brasil afora, inclusive, aqueles de
contracultura, como o do Rio de Janeiro referidos no segundo capítulo desta
dissertação, dedicados a apontar as contradições e os conflitos sociais neste
movimento de atualização/modernização da vida brasileira.
De modo que, se o impressionismo
de Paulo Prado pretendia legitimar um retrato impreciso e subjetivante que
queria impor a sua classe, num ímpeto de “autoconfiança”, “prestígio” e
interpretação arbitrária, porquanto estratégica, da história brasileira (como
acredita Berriel), isso só pode ser compreendido – e aceito – se pensarmos que
este mesmo retrato apresentado criaria a ilusão – ou o impressionismo – de que
as contradições nacionais se resumiriam aos embates enfrentados pelos
cafeicultores, aflitos com a oscilação do preço do café, com as constantes
desvalorizações e com as insuficientes políticas públicas para que mantivessem
sua hegemonia econômica.
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Fonte:
Carolina Brandão Piva Paulo Prado: “Cafeicultura, modernismo e política”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades Linha de pesquisa: Sertão, Regionalidades e Projetos de Integração Orientador: Prof. Dr. David Maciel). Goiânia, 2009.
Fonte:
Carolina Brandão Piva Paulo Prado: “Cafeicultura, modernismo e política”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades Linha de pesquisa: Sertão, Regionalidades e Projetos de Integração Orientador: Prof. Dr. David Maciel). Goiânia, 2009.
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