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A recepção da obra botelhiana: Abel Botelho visto por seus
contemporâneos.
Quando despontou para o público
português, a obra botelhiana teve grande impacto em decorrência de sua
linguagem, sua abordagem e principalmente de seus temas. O público o considerou
imoral e obsceno (cf. CORREIA, 2008 p.47 ), mas o aprovou. A primeira edição d’
O Barão de Lavos rapidamente se esgotou (em apenas quinze dias), fazendo-se
necessária uma nova edição. Entre seus amigos e seus pares, a recepção de sua
obra podemos dizer que foi positiva; entretanto, para alguns sua obra não
passou de enfadonha leitura.
Além da erudição, da retidão, da
disciplina peculiar aos militares, Abel Botelho foi um amigo agradável, um
profissional comprometido e competente, um escritor preciso e um republicano
determinado. Suas características agradaram mais que desagradaram. Comecemos
por dizer da repercussão alcançada por sua obra, recontando um fato que Albino
Forjaz Sampaio relata no livro dedicado ao escritor, da “coleção Patrícia”, e
Justino Mendes de Almeida reproduz em seus textos do Escorço bibliográfico e
estudo linguísticos, anexo ao primeiro volume das obras completas de Abel
Botelho. O autor dedicou o quarto volume da Patologia Social, intitulado Fatal
Dilema (1907), a D. Theodolinda Elisa Vieira.
Em abril de 1904, falecia em Lisboa uma senhora, D. Theodolinda Elisa
Vieira, a qual, sem o conhecer, sem nunca lhe ter falado ou escrito, nomeava-o
contudo herdeiro único dos seus bens, no valor de doze contos de réis. Esta
senhora tinha na sua biblioteca, anotadas carinhosamente, todas as obras do
escritor. (SAMPAIO, 1931)
Episódios como esse fazem-nos
refletir sobre as razões que levaram ao esquecimento do escritor, ao ostracismo
em que jaz a sua obra, haja vista este e outros comentários que os leitores dos
seus romances teciam. Felizmente, o século XX assumiu a tarefa de reverter o
processo e pôr novamente o nome de Botelho no cenário literário, e com isso,
despertar o interesse crítico sobre sua obra.
A obra de Abel Botelho não
cultivou apenas um público leitor entusiasmado como D. Theodolinda, mas também
despertou a admiração de escritores em início de carreira. Abel Botelho
escreveu com entusiasmo o prefácio de um livro de contos intitulado Esfolhadas,
dos dois jovens escritores: Orlando Marçal e Fernão CôrteReal. Nesse prefácio
encontramos uma das possíveis causas de seu esquecimento, justamente o fato de
posicionar-se como um escritor rebelde, de opinião forte e áspera. Abel Botelho
disserta, com propriedade, que o artista não deve se curvar às exigências das
“grossas predilecções do publico”. O que isso nos diz é que ele não escreve
para, mas simplesmente escreve; ele não produz, cria; e continua “[...] na resvaladia
cultura espiritual das lettras, não há senão dois caminhos basilares a seguir:
a arte ou o industrialismo, o arroteio árduo do talento ou a mera habilidade
profissional [...].”
Condena o fazer literário como
mero mecanismo para conseguir dinheiro. Acredita que o ato de escrever deva
estar comprometido com a criação, com a arte, com a inspiração e não com o
nível precário em que a educação e a cultura daquele momento se encontravam.
Constatamos, portanto, que, de acordo com a sua observação, o público para o
qual escrevia era, digamos, mais selecionado, formado por aqueles que não se
contentassem com o habitual. Comunga com a ideia de que o escritor não deve
escrever sobre temas medíocres, com linguagem ruim, apenas para agradar um
público desprovido de cultura e educação. Pelo contrário, o artista deve manter
a aura de sua obra, sua essência, pois antes de tudo um texto literário é uma
obra (de arte) e não uma mercadoria, pura e simplesmente. Para ele, caso o
escritor se submeta a esse processo, ele se aviltará, perderá a autenticidade,
e uma obra inautêntica é uma obra vazia.
Sua figura e talento fizeram
amigos e admiradores dentro e fora das letras. Alguns de seus contemporâneos
expressaram-se de maneira respeitosa e com admiração, ao falarem de sua figura
no cenário social e literário da época. Infelizmente, há pouca documentação
reveladora das opiniões e impressões sobre o autor da Patologia Social, por
seus pares, mas as que conseguimos recolher reproduzimos aqui.
Para tal propósito decidimos por
algumas ilustres figuras dos oitocentos que mencionaram o seu trabalho e a
opinião que formaram acerca da figura do escritor de Tabuaço. Destacaremos os
depoimentos de João Grave, Gomes Leal, Bulhão de Pato, Afonso Lopes Vieira,
Trindade Coelho e Artur Brandão .
João Grave, jornalista e escritor
nascido em Aveiro, conhecido carinhosamente por “João Reboca” por companheiros
de infância e pelos amigos e vizinhos, embora não tivesse um estilo próximo ao
de Abel Botelho, nutria grande admiração pelo autor naturalista e consolidaram
uma amizade. Quando da edição do romance Amor Crioulo (edição póstuma, 1919)
mereceu de seus editores (Lello & Irmão) uma homenagem escrita por João
Grave:
Abel Botelho, o artista ilustre que às letras do seu país legou tantas
páginas de inspiração e de beleza, não teve tempo de concluir o romance Amor
Crioulo, escrito bem longe da sua terra e da sua gente, mas sempre com a
imaginação e os olhos postos na Pátria distante. A morte colheu-o de súbito,
paralisando para sempre a mão augusta que tão activamente lidou e a lúcida
inteligência que nunca se fatigou de combater, durante meio século de esforço
permanente e fecundo, para atingir um ideal de perfeição suprema.
Analista subtil do coração humano, psicólogo, moralista pelo castigo
áspero do sarcasmo, Abel Botelho desceu a profundidades poucas vezes exploradas
antes deles, tentando imprimir uma utilidade social à sua arte. A vasta obra
que nos deixou e em que a sua alta personalidade se perpetuará, tem de ser
tomada como uma lição, mesmo nos seus aspectos de mais cru realismo e na mais
cruel expressão – que fazem dela um flagrante documento da época e do meio em
que foi elaborada. Vista em conjunto – que é como deve ser julgada pelo
espíritos imparciais -, há-de necessariamente reconhecer-se-lhe um mérito
estético e moral.
Os derradeiros capítulos que compôs, com tanta ternura e tanto relevo
artístico, foram estes do Amor Crioulo, que os seus Editores hoje lançam aos
alaridos da publicidade para que nada se perca de tudo quanto o romancista
excelso produziu. O livro ficou incompleto. Todas as pacientes buscas
encetadas, para se encontrar a parte final, em Lisboa, onde Abel Botelho tinha
a sua casa, e em Buenos Aires, onde ele era o representante diplomático do
Governo da República Portuguesa, foram infrutíferas. A doença inesperada
interrompera, certamente, o trabalho do escritor insigne, que a morte não
tardaria a eliminar da comédia da existência. A acção do romance estava em
pleno desenvolvimento quando o braço do seu autor caiu desfalecido.
Adivinha-se, no entanto, o desfecho do Amor Crioulo pela leitura dos coloridos,
nervosos e movimentados episódios em que a sua tessitura se desenha
vigorosamente e o conflito sentimental se estabelece.
Publicando-o tal como foi lhe entregue, os Editores contribuem com
novos e valiosos subsídios para o estudo e para a crítica da individualidade de
Abel Botelho que, na moderna literatura nacional, se afirmou com nobre
superioridade. A Escola Realista entre nós por vastas massas, dispondo duma
paleta muito rica, um minucioso observador da vida que à sua volta desenrolava
maravilhosos cenários e que ele reproduzia com surpreendente fidelidade e um
justo conhecimento dos tons e dos valores.
Foi, em todo caso, lamentável que não terminasse este volume póstumo –
porventura aquele em que pôs mais devotado carinho, mais emoção, mais orgulho
de raça, e que, mesmo fragmentado, o denuncia como uma entidade representativa,
Nem ao menos pôde corrigir as provas em que os escritores da sua rara estirpe
dão sempre os últimos retoques de graça, de harmonia, de equilíbrio e de luz. A
elevada honra dessa tarefa foi-me confiada a mim, procurando eu desempenhá-la o
melhor que me foi possível e suprindo pela vontade de acertar o que me falta em
competência. Qualquer erro em que no texto apareça terá, portanto, de me ser
imputado, e não ao escritor que tanto dignificou a sua nacionalidade nos
luminosos domínios do pensamento e da arte (ALMEIDA, 1979, p.12)
O jornalista e boêmio Gomes Leal
fez parte do círculo de amizade de Abel Botelho. Defendia o realismo, embora
como poeta ainda fosse ultrarromântico. Neste recorte que se encontra do
Escorço Bibliográfico presente nas obras completas de Botelho, destaca o
escritor, o homem e o amigo.
Abel Botelho tem três qualidades eminentes para ser um bom romancista,
como é, as quais são: observação bem pronunciada e treinada; fidelidade na
minúcia e na conglobação; bela orientação na síntese. Como amigo, é
estimabilíssimo, como romancista, de primeira grandeza, como caráter, diamante
de primeira água. (ALMEIDA, 1979, p.5)
Assim como Abel Botelho, o
romântico Bulhões de Pato foi aluno da Escola Politécnica, contudo não chegou
ao término do curso. Acreditava ter sido inspiração para o personagem Tomás de
Alencar, d’ Os Maias de Eça de Queirós. A visão desse Bon Vivant, apreciador de
gastronomia (o prato tradicional português à base de frutos do mar que recebeu
seu nome – Amêijoas a Bulhões Pato), que gostava de viagens e saraus
literários, é talvez a mais simples, mas o define bem, pois realça seu
conhecimento e sua subjetividade: “Abel Botelho, para mim, é escritor de saber,
de vigoroso talento e de notável individualidade.”
O neorromântico Afonso Lopes
Vieira, integrante do grupo da Renascença Portuguesa, criada em 1911, após a
instauração da República, no intuito de corroborar as propostas da revolução
republicana, também se pronunciou acerca da imagem do escritor duriense,
demonstrando a amizade que mantinha com Abel Botelho. Destaca um aspecto
importante, presente na narrativa botelhiana – a deterioração do regime
monárquico, chamado aqui por Vieira de regímen moribundo, e a urgência de um
novo, a República.
Tenho por este grande e excelente camarada uma admiração sincera. O realismo
integral, o gravador intenso e cru dos infernos com que liquida um regímen
moribundo, este filósofo e este artista é um dos raríssimos escritores
portugueses destinados a serem sempre novos e amados pelas gerações que
sobrevêm. A sua glória não lha decretou o Estado, com ignomínia das suas
condecorações e das suas academias. Por isso é autêntica e resplandece. (ALMEIDA,
1979, p. 5)
O escritor Trindade Coelho
igualmente discursou favoravelmente a seu contemporâneo em ocasião do
aparecimento do romance O Barão de Lavos.
E ei-lo, volvidos tempos, atirando à cara do mundo, olímpico de
desprezo, quase cínico, a brochura colossal do Barão de Lavos, que é tudo
quanto em literatura portuguesa tem surgido de mais audaz – como ideia, como
forma, como fórmula – e onde, simultaneamente, numa sarabanda macabra de
endemoninhado e num êxtase religioso de artista, Abel “queima os navios”,
metendo-lhes no porão, a ferros, nus e corridos de vilipêndio, preconceitos 62
de toda a casta – de moral, de arte literária, de justiça, de humanidade e de
vergonha! (COELHO, 1987: 140)
Artur Brandão, num artigo de
1898, publicado no periódico Mala da Europa, faz uma crítica mais atenta e
detida à obra de Abel Botelho e toma sua defesa, destacando a seriedade da obra
de um escritor que “deixou-se de fazer meras obrinhas de distracção – o que
seria extremamente fácil ao seu prodigioso talento – e pretendeu cavar um pouco
mais longe e mais fundo na alma humana.”, apontando com coerência aspectos do
seu temperamento. Vejamos:
Damos hoje o retrato de Abel Botelho, (…) para registar a grande
evidenciação que ao seu nome trouxe a aparição do seu último romance, O livro
de Alda.
Temos ouvido a muita gente apreciar com relativo desfavor este último
trabalho do audacioso e original escritor.
Acusam-no de demasiado cru, de se comprazer mais do que o lícito na
análise da podridão e do vício. Ora nós temos o maior respeito pela opinião dos
outros, e não negaremos mesmo que o talento de Abel Botelho apresente talvez
anormalidades, desequilíbrios que dão bastante flanco à crítica. (…)
Ora Abel Botelho – bem ou mal, isso é outra questão – propôs-se
particularmente estudar destes casos de teratologia moral e social, tão
predominantes e característicos do nosso tempo.
Com uma coragem e uma isenção pouco vulgar, deixou-se de fazer meras
obrinhas de distracção – o que seria extremamente fácil ao seu prodigioso
talento – e pretendeu cavar um pouco mais longe e mais fundo na alma humana.
Avança por vezes um pouco longe demais nos seus processos? O seu
temperamento arrasta-o a excessos dispensáveis? Não nos parece em todo o caso
que mereça por isso incondicional censura. (…) As coisas são o que são. Nua é a
verdade, nua é a inocência. A literatura falsa, piegas, de convenção leva-nos
às inofensivas estopadas das Arcádias e Academias dos séculos XVII e XVIII, que
hoje ninguém lê, ninguém conhece, porque eram meros produtos artificiais, uma
espécie de missanga intelectual sem ligação nenhuma com o modo de pensar e
sentir do seu tempo. (Brandão, 1898, p.2, Apud CORREIA, 2008, p.48)
Eça de Queirós, também manifestou
a ideia que tinha sobre o autor tabuacense. Contudo, seu discurso não foi
positivo e tampouco enaltecedor; muito ao contrário, faz duras críticas a ele e
a sua obra, chegando mesmo a mencionar, ironicamente, o fato de Abel Botelho
ser um indivíduo da região de Trás-os-Montes, de maneira cáustica. Esse
episódio está documentado em carta enviada de Bristol a Mariano Pina, em 7 de
junho de 1885, e integra a Correspondência (Porto, p.95-96).
[...] Enquanto a artigo para a Illustração, às ordens. Diga-me se quer
um curto contozinho – ou então o tal estudo sobre Hugo – agora que já passou a
primeira impressão – se é que Você ainda nos números seguintes, como é natural,
insere artigos sobre o Mestre. Esse artigo poderia ser em forma de carta a Você
– supondo que Você me pedia para eu lhe dar uma ideia, para a Illustração, de
qual foi a influência de Hugo na minha geração, isto é, há 20 anos... – Ou
então, não querendo Hugo, um contozinho.
Estão engraçados os seus comentários de Abel Acácio. Eu não conheço
esse rapaz, mas inquestionavelmente o patriotismo dele é simpático e o seu
grito em pró da língua portuguesa muito justo. Somente, o que é curioso, é que
esse patriota que pede com violência que se não escrevam estrangeirices –
escreve ele próprio, a julgar pela carta, não em bom português, mas em mau
francês! É das coisas mais cômicas que eu tenho visto. E quanto às ideias que
ele tem do lugar da França na civilização, são de um cavalheiro de
Trás-os-Montes ou do fundo do Alentejo, que, da França, só sabe que de lá
chegam todos os meses os figurinos, pelos quais a sua senhora corta os
casabeques. As ideias dele sobre a Inglaterra não são menos singulares. E a
este respeito, deixe-me dizer-lhe que Você também, a propósito da Inglaterra,
tem às vezes a opinião chauviniste de Boulevard [...] (ALMEIDA, 1979, p.
24.)
O tom irônico e sarcástico de Eça
é evidenciado nessa conversa com o amigo Mariano Pina, especialmente quando se
refere a Abel Botelho como um cavalheiro de Trás-os-Montes ou do fundo do
Alentejo, denotando certo desprezo não só pelas ideias de Botelho, como por sua
própria figura enquanto homem do interior.
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Fonte:
Simone Cristina Manso Escobar: “Abel Botelho – escritor “de entre tempos”: Literatura e Artes Plásticas em diálogo”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutora em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Profª Doutora Luci Ruas Pereira). Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: www.letras.ufrj.br
Fonte:
Simone Cristina Manso Escobar: “Abel Botelho – escritor “de entre tempos”: Literatura e Artes Plásticas em diálogo”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutora em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Profª Doutora Luci Ruas Pereira). Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: www.letras.ufrj.br
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