28/06/2015

Auto da Índia (Teatro), de Gil Vicente

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Sátira e representação

Trazendo à discussão a temática do descompasso social, Gil Vicente deixa transparecer em sua obra as mudanças pelas quais passa o mundo da virada do século, período que assinala a instauração progressiva de uma nova mentalidade na Europa citadina e que se encontra no cruzamento entre um pensamento ainda medieval e um outro já embebido dos novos ares da expansão marítimo-comercial e da Era Moderna. É essa temática da mudança que pretendemos trazer à baila neste estudo, ao apontar o diabo nas peças de Mestre Gil como uma forma de extravasamento da sátira social.

É, aliás, por apresentar em suas cenas teatrais esse desconcerto social em que estava mergulhada a nação portuguesa, que muitos críticos declararam que o teatro vicentino possui um substrato sociológico, pautado na exposição dos bastidores da sociedade de Lisboa. Idealizam um dramaturgo que tinha diante de si a “função de [...] desvelar os vícios da sociedade, de denunciar um mundo preso de irracionalidade e de loucura, enfim, de satirizar um mundo às avessas” (PINTO, 2003, p. 295 e 296). Ao desempenhar essa “função”, Gil Vicente imprimiria à sua obra o signo da originalidade.

É certo que o dramaturgo escreveu em um “período de crise” (SARAIVA, 1955, p. 231) e que sua escrita, como não poderia deixar de ser – afinal Gil Vicente é também parte dessa sociedade que ele mesmo desnuda –, traz marcas desse tempo. Não nos parece que resida aí a originalidade vicentina, nem seu valor literário, pois outros grandes escritores da virada do 5 século XV para o XVI também se utilizaram da sátira ao cotidiano para a produção de seus textos.

Encontramos nas idéias de Bernardes (2003) sustentação para nossas ponderações. Para o crítico, antes de uma matriz sociológica, que buscava no cotidiano a matéria para suas cenas, o teatro de Gil Vicente está ligado a um realismo6 como estética, a uma estratégia cênica comumente utilizada no teatro satírico e popular, que foi cultivada na Europa entre esses séculos (BERNARDES, 2003, p. 47).

Dessa forma, Mestre Gil não estava inaugurando uma nova forma de fazer teatro (que tentava uma representação da temática da mudança alicerçada no substrato sociológico), nem estava livre de influências, desagregado das práticas teatrais vigentes na Hispânia e no continente europeu. Pelo contrário, sua obra estava alinhada às técnicas de além-Pireneus, conforme argumenta Bernardes:

Quem percorrer as recolhas do teatro medieval que se têm publicado nos últimos anos (nomeadamente em língua francesa), não encontrará temas de mais ampla representação do que o tema da mudança, muito associado à tópica do status mundi, sistematicamente ilustrado numa perspectiva de sátira risível e caricatural (2003, p. 41).

Bernardes (2003, p. 41) deixa entrever que também na França a temática da mudança estava em voga quando Gil Vicente, na Península Ibérica, escrevia suas peças. Além de mostrar que essa transição não era exclusiva da sociedade portuguesa, mas extensível a uma Europa pós-medieval, o crítico abre espaço para a reflexão sobre essa técnica da sátira pelo riso, da crítica pela caricatura.

Utilizando-se do elemento cômico, autores coetâneos de Gil Vicente evocam elementos do quadro social e colocam-nos em posição de reflexão e observação: cavaleiros decadentes que vêem moinhos imaginários a girar e a crescer, a loucura que se revela eixo-motor de qualquer existência. Temos aí exemplos que retratam o sentimento de descompasso e que atestam que Mestre Gil não era um caso único no cenário europeu, nem mesmo no cenário ibérico. Os exemplos acima esboçados trazem-nos à memória o D. Quixote de La Mancha, de Cervantes, que tem o matiz da transição em seu bojo, e o Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, cujo pensamento está muito próximo do dramaturgo português, “especialmente por satirizar os pregadores escolásticos [...] em sermões burlescos” (PINTO, 2003, p. 297).

Contudo, mesmo que a obra de Gil Vicente perdesse o status de inauguradora das “leituras sociológicas” (BERNARDES, 2003, p. 47), o valor do teatro vicentino estaria salvaguardado, pois reside não somente num hipotético pioneirismo, mas, sobretudo, na construção estética do texto, na difusão de sua obra e na polifonia de sua arte. Não é ao acaso que seu teatro tem sido perenizado por meio de novas leituras e encenações.

E é ainda na percepção dessa transição sócio-cultural, que passa pelo imaginário popular e pelo estabelecimento dos valores morais de uma época, que nos propusemos a esquadrinhar a obra vicentina. Em meio à leitura de peças de Mestre Gil, deparamo-nos com uma peculiaridade assaz intrigante: a caracterização da figura demoníaca. A fim de tornar este texto o mais didático possível, optamos por focar o tema da capacidade argumentativa do Diabo no primeiro auto e sua verve cômica no segundo, embora nem sempre essa segmentação seja rígida.

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Fonte:

Otávio Rios (UFRJ): “E no meio do caminho, havia o diabo”. Disponível em: www.uefs.br

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