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Nietzsche e o século da ciência
Nietzsche e o século da ciência
Kant sustentou a distinção entre os “sonhos racionais” da metafísica, não
partilháveis nem transmissíveis, ou o “egoísmo lógico” do dogmatismo, que não
se submete à verificação pelo juízo de outrem, e a ciência, que requer o livre
e público exame de seus produtos pela razão. Essa distinção prossegue no século
XIX, em que o extraordinário avanço tecnocientífico teve como correlatos o
descrédito da autoridade religiosa e dos sistemas metafísicos, os quais,
fechados em si mesmos, não operam conforme à publicização e à validação de
critérios exigidas pela racionalidade científica.
O século XIX caracteriza-se pelo
avanço das ciências naturais, no qual se destaca o evolucionismo de Darwin,
modificando a visão do mundo pela descoberta de que o homem, longe de ser a
referência primeira e essencial da criação, é um degrau na escala zoológica,
num contínuo que o aproxima dos outros animais. Avançam também as chamadas
ciências humanas, seja pelo viés do darwinismo social, seja por uma
consolidação dos métodos da filologia e da história.
A filosofia sofre o impacto
dessas transformações. O forte movimento positivista sustenta a convicção
otimista de um progresso irrefreável e necessário, atribuindo à ciência o
principal papel na resolução dos problemas humanos e sociais. Numa outra
vertente, um movimento de retorno a Kant, na Alemanha, vem retomar a reflexão
sobre os fundamentos, os métodos e os limites da ciência. Seja pela exaltação
do progresso científico, como ocorre no positivismo, seja por uma retomada
crítica dos fundamentos do saber, como no neocriticismo, os caminhos da
filosofia do século XIX se entrelaçam com os da ciência, de certa forma
subordinando a primeira à segunda. Não pretendemos aprofundar-nos nas relações de
Nietzsche com a ciência do seu tempo, hoje objeto de importantes investigações;
as considerações gerais feitas aqui são suficientes para situar nosso problema.
Importa destacar que o filósofo, apesar de sua formação essencialmente
humanística, não podia ignorar os efeitos das aquisições das ciências naturais
sobre o pensamento da época, sem grave prejuízo da sua produção filosófica.
Quanto à filologia, para a qual foi rigorosamente treinado, opõe-se à forma
dessa disciplina tal como vigora então nas universidades alemãs, cujas
pretensões cientificas lhe parecem dissolver a ligação entre passado e
presente, conhecimento e vida.37 Veja-se a Segunda Extemporânea, onde rejeita a
reivindicação da história a constituir-se como ciência pura como um saber
interior e ineficaz sobre a cultura que não se engaja numa cultura determinada,
e a moderna sede de verdade que acaba por tornar-se estéril, criticando, como
sempre o fará, o “furor de instrução” e a “vulgarização da ciência”
característicos de sua época.
Como observamos anteriormente, a
filosofia de Nietzsche permanece singularmente alheia aos cânones da produção
acadêmica então vigentes, como se desconfiasse das formas de validação assim
definidas, ou não pudesse encontrar expressão desta maneira; durante a maior
parte de sua vida filosófica, permanece à parte das universidades e das
comunidades científicas. Entretanto, o autor mantém-se a par dos debates da
ciência do seu tempo, a eles concedendo grande atenção ao longo de sua obra:
esta interlocução com a ciência tem efeitos importantes em sua filosofia, que
aí encontra novos horizontes para o pensamento, agora desvencilhado dos
entraves metafísicos que limitavam seu alcance.
Não pretendemos aprofundar-nos
nas relações de Nietzsche com a ciência do seu tempo, hoje objeto de
importantes investigações; as considerações gerais feitas aqui são suficientes
para situar nosso problema. Importa destacar que o filósofo, apesar de sua
formação essencialmente humanística, não podia ignorar os efeitos das
aquisições das ciências naturais sobre o pensamento da época, sem grave
prejuízo da sua produção filosófica. Quanto à filologia, para a qual foi
rigorosamente treinado, opõe-se à forma dessa disciplina tal como vigora então
nas universidades alemãs, cujas pretensões cientificas lhe parecem dissolver a
ligação entre passado e presente, conhecimento e vida.38 Veja-se a Segunda
Extemporânea, onde rejeita a reivindicação da história a constituir-se como
ciência pura como um saber interior e ineficaz sobre a cultura que não se
engaja numa cultura determinada, e a moderna sede de verdade que acaba por
tornar-se estéril, criticando, como sempre o fará, o “furor de instrução” e a
“vulgarização da ciência” característicos de sua época.
Os cientistas visam, no século
XIX, destituir a religião da sua pretensão de detentora última da verdade39.
Contudo, segundo Nietzsche, essa “morte de Deus” não é levada às suas últimas
consequências. A nova concepção dita não religiosa do mundo proposta pela
ciência vem ocupar o lugar da religião como fundamento da moral. O progresso
conduziria inexoravelmente a uma melhoria moral, a evolução indicaria uma ordem
subjacente à natureza. Dessa forma, a crítica à autoridade religiosa
empreendida pelo positivismo acaba por absolutizar a ciência, revelando em
última análise um ineliminável resíduo metafísico na nova “filosofia da
realidade”.
Nesse enfrentamento, veem-se as
imbricações não só entre verdade e moral, mas também entre essas e a política.
A atribuição de um lugar central à ciência para a transformação do mundo e a
melhoria da humanidade, iniciada no século anterior, com o Iluminismo, é
simultânea ao surgimento do ideário de direitos universais do homem, com suas
implicações políticas e morais. Nietzsche apreende uma estreita ligação entre
estes dois aspectos: a universalidade do discurso da ciência fundamenta o
princípio moral e político da igualdade universal entre os homens. O surgimento
do “último homem” relaciona-se, a seu ver, às ‘ideias modernas” socialistas e
democráticas, que buscam uma medíocre felicidade ao alcance de todos, baseada
no conforto e no bem estar.
Esse lugar conferido ao
conhecimento científico parecerá ao último Nietzsche relacionar-se a uma moral
que não só enfatiza a “igualdade perante a lei”, como também exalta como
valores supremos a compaixão, a abnegação, a utilidade coletiva. Tais valores implicam
numa “abdicação de si” que se exige também do homem da ciência. A racionalidade
e a regularidade das leis naturais só se deixariam descobrir pela objetividade
do cientista desinteressado e isento. Ora, essa mesma perspectiva que busca
anular o que há de pessoal e próprio em cada homem é a mesma que o culpabiliza.
A velha noção metafísica de liberdade da vontade, que possibilita
responsabilizar e portanto culpar o homem, é retomada na figura do erudito ou
do esteta desinteressado, liberto das cadeias da vontade: esta é um mal ao qual
somos culpados de sucumbir, afastando-nos de uma verdade que só se deixa
atingir quando a extirpamos. A existência de um “mundo verdadeiro” que as
aparências ocultam, assim como a oposição entre corpo e alma, instintos e razão,
parecem a Nietzsche ressurgir como figuras constitutivas desse ideal.
Contudo, embora problematizando
constantemente o lugar atribuído à ciência pela cultura moderna, a filosofia
nietzscheana amadurece e avança no contato com seus métodos e produtos,
preparando assim um conhecimento trágico que já não será o mesmo das suas concepções
de juventude.
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Fonte:
Fonte:
Ana Marta Lobosque: “A vontade
livre em Nietzsche”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Doutor em Filosofia Linha de pesquisa: História da
Filosofia Orientador: Professor Oswaldo Giacoia Jr - UNICAMP Co-orientador:
Professor Rodrigo Duarte – UFMG). Belo Horizonte, 2010. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br
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