28/06/2015

O Anticristo, de Friedrich Nietzsche


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Nietzsche e o século da ciência

Nietzsche e o século da ciência Kant sustentou a distinção entre os “sonhos racionais” da metafísica, não partilháveis nem transmissíveis, ou o “egoísmo lógico” do dogmatismo, que não se submete à verificação pelo juízo de outrem, e a ciência, que requer o livre e público exame de seus produtos pela razão. Essa distinção prossegue no século XIX, em que o extraordinário avanço tecnocientífico teve como correlatos o descrédito da autoridade religiosa e dos sistemas metafísicos, os quais, fechados em si mesmos, não operam conforme à publicização e à validação de critérios exigidas pela racionalidade científica.

O século XIX caracteriza-se pelo avanço das ciências naturais, no qual se destaca o evolucionismo de Darwin, modificando a visão do mundo pela descoberta de que o homem, longe de ser a referência primeira e essencial da criação, é um degrau na escala zoológica, num contínuo que o aproxima dos outros animais. Avançam também as chamadas ciências humanas, seja pelo viés do darwinismo social, seja por uma consolidação dos métodos da filologia e da história.

A filosofia sofre o impacto dessas transformações. O forte movimento positivista sustenta a convicção otimista de um progresso irrefreável e necessário, atribuindo à ciência o principal papel na resolução dos problemas humanos e sociais. Numa outra vertente, um movimento de retorno a Kant, na Alemanha, vem retomar a reflexão sobre os fundamentos, os métodos e os limites da ciência. Seja pela exaltação do progresso científico, como ocorre no positivismo, seja por uma retomada crítica dos fundamentos do saber, como no neocriticismo, os caminhos da filosofia do século XIX se entrelaçam com os da ciência, de certa forma subordinando a primeira à segunda. Não pretendemos aprofundar-nos nas relações de Nietzsche com a ciência do seu tempo, hoje objeto de importantes investigações; as considerações gerais feitas aqui são suficientes para situar nosso problema. Importa destacar que o filósofo, apesar de sua formação essencialmente humanística, não podia ignorar os efeitos das aquisições das ciências naturais sobre o pensamento da época, sem grave prejuízo da sua produção filosófica. Quanto à filologia, para a qual foi rigorosamente treinado, opõe-se à forma dessa disciplina tal como vigora então nas universidades alemãs, cujas pretensões cientificas lhe parecem dissolver a ligação entre passado e presente, conhecimento e vida.37 Veja-se a Segunda Extemporânea, onde rejeita a reivindicação da história a constituir-se como ciência pura como um saber interior e ineficaz sobre a cultura que não se engaja numa cultura determinada, e a moderna sede de verdade que acaba por tornar-se estéril, criticando, como sempre o fará, o “furor de instrução” e a “vulgarização da ciência” característicos de sua época.

Como observamos anteriormente, a filosofia de Nietzsche permanece singularmente alheia aos cânones da produção acadêmica então vigentes, como se desconfiasse das formas de validação assim definidas, ou não pudesse encontrar expressão desta maneira; durante a maior parte de sua vida filosófica, permanece à parte das universidades e das comunidades científicas. Entretanto, o autor mantém-se a par dos debates da ciência do seu tempo, a eles concedendo grande atenção ao longo de sua obra: esta interlocução com a ciência tem efeitos importantes em sua filosofia, que aí encontra novos horizontes para o pensamento, agora desvencilhado dos entraves metafísicos que limitavam seu alcance.

Não pretendemos aprofundar-nos nas relações de Nietzsche com a ciência do seu tempo, hoje objeto de importantes investigações; as considerações gerais feitas aqui são suficientes para situar nosso problema. Importa destacar que o filósofo, apesar de sua formação essencialmente humanística, não podia ignorar os efeitos das aquisições das ciências naturais sobre o pensamento da época, sem grave prejuízo da sua produção filosófica. Quanto à filologia, para a qual foi rigorosamente treinado, opõe-se à forma dessa disciplina tal como vigora então nas universidades alemãs, cujas pretensões cientificas lhe parecem dissolver a ligação entre passado e presente, conhecimento e vida.38 Veja-se a Segunda Extemporânea, onde rejeita a reivindicação da história a constituir-se como ciência pura como um saber interior e ineficaz sobre a cultura que não se engaja numa cultura determinada, e a moderna sede de verdade que acaba por tornar-se estéril, criticando, como sempre o fará, o “furor de instrução” e a “vulgarização da ciência” característicos de sua época.

Os cientistas visam, no século XIX, destituir a religião da sua pretensão de detentora última da verdade39. Contudo, segundo Nietzsche, essa “morte de Deus” não é levada às suas últimas consequências. A nova concepção dita não religiosa do mundo proposta pela ciência vem ocupar o lugar da religião como fundamento da moral. O progresso conduziria inexoravelmente a uma melhoria moral, a evolução indicaria uma ordem subjacente à natureza. Dessa forma, a crítica à autoridade religiosa empreendida pelo positivismo acaba por absolutizar a ciência, revelando em última análise um ineliminável resíduo metafísico na nova “filosofia da realidade”.

Nesse enfrentamento, veem-se as imbricações não só entre verdade e moral, mas também entre essas e a política. A atribuição de um lugar central à ciência para a transformação do mundo e a melhoria da humanidade, iniciada no século anterior, com o Iluminismo, é simultânea ao surgimento do ideário de direitos universais do homem, com suas implicações políticas e morais. Nietzsche apreende uma estreita ligação entre estes dois aspectos: a universalidade do discurso da ciência fundamenta o princípio moral e político da igualdade universal entre os homens. O surgimento do “último homem” relaciona-se, a seu ver, às ‘ideias modernas” socialistas e democráticas, que buscam uma medíocre felicidade ao alcance de todos, baseada no conforto e no bem estar.

Esse lugar conferido ao conhecimento científico parecerá ao último Nietzsche relacionar-se a uma moral que não só enfatiza a “igualdade perante a lei”, como também exalta como valores supremos a compaixão, a abnegação, a utilidade coletiva. Tais valores implicam numa “abdicação de si” que se exige também do homem da ciência. A racionalidade e a regularidade das leis naturais só se deixariam descobrir pela objetividade do cientista desinteressado e isento. Ora, essa mesma perspectiva que busca anular o que há de pessoal e próprio em cada homem é a mesma que o culpabiliza. A velha noção metafísica de liberdade da vontade, que possibilita responsabilizar e portanto culpar o homem, é retomada na figura do erudito ou do esteta desinteressado, liberto das cadeias da vontade: esta é um mal ao qual somos culpados de sucumbir, afastando-nos de uma verdade que só se deixa atingir quando a extirpamos. A existência de um “mundo verdadeiro” que as aparências ocultam, assim como a oposição entre corpo e alma, instintos e razão, parecem a Nietzsche ressurgir como figuras constitutivas desse ideal.

Contudo, embora problematizando constantemente o lugar atribuído à ciência pela cultura moderna, a filosofia nietzscheana amadurece e avança no contato com seus métodos e produtos, preparando assim um conhecimento trágico que já não será o mesmo das suas concepções de juventude.

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Fonte:

Ana Marta Lobosque: “A vontade livre em Nietzsche”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Filosofia Linha de pesquisa: História da Filosofia Orientador: Professor Oswaldo Giacoia Jr - UNICAMP Co-orientador: Professor Rodrigo Duarte – UFMG). Belo Horizonte, 2010. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br

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