30/06/2015

Minha formação, de Joaquim Nabuco

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Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:


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Joaquim Nabuco memorialista
Por: Alfredo Bosi
Texto da conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 13 de abril de 2010.


Neste centenário da morte de Nabuco, tudo convida a reler Minha formação. Trata-se de um livro de recordações de uma vida inteira, embora não obedeça à tradicional estrutura linear das obras do gênero: nascimento, infância, juventude, maturidade... A composição lembra antes um arquipélago do que um continente. Os capítulos são ilhas, que o mar aparentemente infinito da memória ora aproxima, ora distancia. Como acontece nos movimentos de nossa vida subjetiva, há lembranças que, de tão longínquas e esgarçadas, parecem já estar fora de nós, e precisamos de algum esforço para recompô-las e dizê-las, e há outras que nos tomam de assalto, invadem os recantos mais fundos de nós mesmos, deixam sinais, às vezes cicatrizes em nosso caráter e talvez em nosso próprio destino.

Era convicção de Nietzsche que "nos homens profundos, as vivências duram longamente". Minha formação é um arquipélago dessas experiências que a hermenêutica nos ensinou a chamar de vivências, termo hoje pouco usado, mas que continua imprescindível quando se deseja falar de um enlace de sentimento e memória. Em outras palavras, recordação do vivido.

Segundo a reconstrução da história do conceito de Erlebnis, feita por Gadamer em Verdade e método, a palavra só entrou na linguagem filosófica a partir da biografia de Schleiermacher escrita por Dilthey em 1870. Na acepção de experiência vivida, a expressão denota algo que sobrevive em nós de modo individual e persistente. Lembramos porque continuamos a experimentar a força e a qualidade do sentimento que outrora traspassou uma dada situação e que a memória não deixou cair. Pois esquecer é, etimologicamente, deixar cair o que quer que seja para fora de nossa mente.

O termo enriqueceu-se com a análise diferencial que lhe deu Gundolf em sua biografia de Goethe. Repare-se, de passagem, quanto o método de histórias de vida contribuiu para a elaboração do conceito. A vivência pode coincidir com uma emoção originária, irrepetível (Ur-Erlebnis), ou estender-se no tempo na forma de uma rede de experiências familiares, culturais ou políticas: seriam vivências de formação (Bildungerlebnisse).

Quando Joaquim Nabuco escreveu Minha formação, pouco antes de entrar na quadra dos cinquenta anos de idade, permaneciam em sua memória tanto um episódio dramático da sua infância como algumas figuras de intelectuais e políticos do Segundo Reinado que concorreram para a construção da sua persona de escritor e homem público.

"Massangana" é o título de um dos derradeiros capítulos de Minha formação. Não me parece aleatória a sua posição no corpo do livro: fica entre os capítulos "Eleição de deputado" e "A Abolição", ou seja, entre memórias de 1878 e 1888, decênio que é o tempo forte da campanha pela libertação dos escravos. Para narrar as horas decisivas do militante, o memorialista precisou interromper o relato da luta política, descer ao poço das recordações e de lá fazer subir à tona da escrita uma imagem submersa pelo tempo. Não imagens soltas e erráticas, mas uma só, luminosa, coerente, pregnante, como a chamaria a psicologia da Gestalt. Nem diz outra coisa a abertura do capítulo: "O traço todo da vida é para muitos um desenho de criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber...".

Nessas palavras, que gerações de leitores têm guardado como relíquia de família, estão juntas metáforas que nos são caras: "o traço todo da vida" é a própria imagem do itinerário que a obra percorre fielmente; o "desenho de criança esquecido pelo homem" diz a forma primeira de uma experiência que o adulto relegou para fora do seu cotidiano feito de cuidados do aqui e agora; mas é desenho "ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber", porque, mesmo ocultado na sombra do inconsciente, servirá de bússola na hora das grandes decisões.

Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instintiva ou moral definitiva... Passei esse período inicial, tão remoto, porém mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal.

Sabemos que aqueles "últimos longes de minha vida" se fizeram não só presentes por força da memória, como alimentaram com a seiva da compaixão a obra do futuro abolicionista.


O quadro e a cena

Para reviver o espírito e a letra das reminiscências de Massangana, será preciso escolher entre dois caminhos: ou partir da evocação da paisagem natural e social do engenho e só depois deparar a cena do jovem escravo fugido que tão doridamente feriu a sensibilidade da criança; ou, em sentido contrário, trazer ao primeiro plano a lembrança daquele encontro do menino de engenho com a face absurda do cativeiro para em seguida ir espraiando o olhar pelos verdes canaviais "cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós sombreando de lado a lado o pequeno rio Ipojuca". E contemplar no centro a casa grande erguida entre a senzala fronteira e a capela consagrada a São Mateus.

Escolhi a primeira alternativa, que fica rente à perspectiva do texto.

A descrição precedeu a narração, mas não de modo linear e bem concertado: a cena irromperá no quadro, abrupta, desconcertante.

A paisagem é imóvel e silente. Nesse pequeno domínio perdido na zona do Cabo, que o memorialista descreve como "inteiramente fechado a qualquer ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão", até a natureza parece recolhida em si mesma. Sob a sombra impenetrável de árvores solitárias, abrigavam-se grupos de gado sonolento. E a água do Ipojuca, que já sabemos exígua, é "quase dormente sobre os seus largos bancos de areia". Por esse riacho, lembra Nabuco, se embarcava o açúcar para o Recife. Veja-se como o movimento em direção à sociedade, que tem tanto a ver com a economia do Nordeste em pleno Segundo Reinado, deflui de uma água quase parada. O que está dentro só pouco e lentamente se comunica com o que vai lá fora.

Mas, se entre o engenho e o resto do mundo há descontinuidade de ritmo vital, o mesmo não acontece entre as terras de Massangana e o mar. "Mais longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré..." A visão do mar contíguo ao engenho traz a mesma impressão de experiência originária, indelével:

Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como o biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente...

Está esboçado o quadro, ilha e oásis, em uma linguagem que deriva dos grandes paisagistas românticos, Bernardin de Saint-Pierre, o precursor de todos, Chateaubriand e o nosso Alencar. Na recordação do engenho, o sentimento fundamental é o de uma harmonia cósmica que tudo penetra e envolve:

Durante o dia, pelos grandes calores dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira de ouro; a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes carros de bois...

Se o autor das páginas de Massangana se tivesse detido nessa revivescência da paisagem, teríamos um Joaquim Nabuco evocador encantado da vida nos pequenos engenhos do Cabo, poeta de um mundo cuja dissolução seria a matéria narrativa de um José Lins do Rego e a fonte antropológica de um Gilberto Freyre. Mas a memória do quadro cede, a certa altura, à irrupção da cena:

Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça a meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida...

A história entra, de repente, naquele pequeno mundo antigo que havia pouco o memorialista nos mostrara encerrado em si mesmo fazendo um só corpo com a natureza em ritmo de eterno retorno do mesmo. Não: a escravidão feria de todos os lados o cerne mesmo da vida humana, e não seria possível refugiar-se no aconchego materno de Massangana sem defrontar-se, mais cedo ou mais tarde, com a sua cruenta realidade. Lendo os diários de Nabuco, escrupulosamente anotados por Evaldo Cabral de Melo, ficamos sabendo que o nome antigo do engenho era Massangano, topônimo de origem angolana (quem diz Angola, diz escravo), mas que Nabuco acabou preferindo, com o tempo, a desinência feminina, Massangana. O historiador atribuiu à argúcia de Lélia Coelho Frota, organizadora da edição dos diários, uma decifração psicanalítica para a mudança de gênero: o engenho era o regaço materno, e o menino, como tantos dos seus escravos fiéis, não tinha pai, só mãe, melhor dizendo, mãe-madrinha. É testemunho de Nabuco: "minha primeira Mãe, mãe-madrinha, Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, de Massangano, a quem até a idade de 8 anos dei aquele nome, não conhecendo minha Mãe". Sabe-se que os pais do recém-nascido Joaquim se mudaram de Pernambuco para o Rio de Janeiro, quando Nabuco de Araújo foi eleito deputado às Cortes, deixando-o com a madrinha durante quase toda a sua infância. Mas o Massangano africano, talvez recalcado, repontaria na figura do escravo fugido que procura abrigo no ventre de Massangana.

Voltando à narração, ouve-se o contracanto reflexivo do memorialista: "Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava". O que segue será talvez o documento mais representativo da ambivalência que tem permeado a interpretação que a inteligência brasileira procura dar à relação senhor-escravo tal como se constituiu entre nós.

De um lado, há a imagem do "paraíso perdido". Sob o governo benfazejo da madrinha, matriarca dadivosa a quem os escravos dedicavam um afeto devoto, Massangana pôde ser o lugar de refúgio do escravo maltratado pelo senhor de um algum engenho das redondezas. Nabuco visivelmente sublima os sentimentos de gratidão e veneração que lhe parecem próprios da maioria dos africanos trazidos ao Brasil. Eles teriam uma capacidade de sacrifício que os isentaria de ódios e vinganças. As desforras sangrentas seriam raríssimas e provocadas pela ferocidade de alguns senhores e feitores que tinham interiorizado tão só o caráter perverso do sistema. Não por acaso, o jovem negro suplicava ao menino Joaquim que o fizesse comprar por sua madrinha, ou seja, que ele pudesse mudar de senhor.

Mas há o outro lado. Massangana é apenas uma ilha, um oásis, imagens que implicam a existência de um outro mundo que se estende além de seus confins. Esse mundo hostil, de onde escapou o jovem escravo, precisava mudar. E mudar com urgência. Não podemos esquecer que o episódio se terá dado nos meados da década de 1850, quando apenas a lei da extinção do tráfico fora decretada, devendo-se ainda esperar quase vinte anos para que se travasse a batalha em torno do projeto Rio Branco, de que resultaria a Lei do Ventre Livre.
É necessário comparar os dois discursos de Nabuco: o que se encontra em algumas passagens de Massangana, e chega à expressão-limite, "saudade do escravo" ("uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown"), e o que condena abertamente a instituição e representa o núcleo ético de toda a sua campanha abolicionista sustentada até a decretação da Lei Áurea. Serão discursos contraditórios em termos absolutos? Diria que são distintos, e que cabe a nós o ônus da interpretação.

O escravo afigura-se ao Nabuco memorialista tão sublime quanto perversa é a instituição do cativeiro. Abolida a escravidão, o sistema felizmente estaria extinto, mas com ele também desapareceria a figura humana verdadeiramente nobre do servo incapaz de odiar o senhor. Suspenda-se provisoriamente, nessa altura, o juízo progressista e democrático, que decerto não toleraria racionalizações ideológicas que lembrem os mitos sacrificiais recriados por Alencar nas figuras de servidão voluntária de Peri, Iracema e da mãe-negra do dramaMãe. O que levou Nabuco à idealização do engenho da infância terá sido o clima de benevolência propiciado pela personalidade da madrinha: o sentimento grato de filiação, ele o estendeu da sua própria condição de menino apartado do pai e da mãe a todos os escravos de Massangana. Esses, segundo o testemunho do memorialista, choraram amargamente a morte de Dona Ana Rosa, sentiram-se órfãos e viram com terror a chegada dos novos proprietários. É significativa essa oposição recorrente entre Massangana e os demais lugares onde vigorava o mesmo regime escravista. Se Nabuco tivesse levado às últimas consequências esse antagonismo, o engenho da infância lhe apareceria apenas como exceção, talvez única, impedindo que o seu discurso resvalasse para temerárias generalizações. A passagem, às vezes imperceptível, do caso singular à regra geral é, como se sabe, um dos riscos a que não escaparia nem mesmo um observador social acutíssimo do porte de Gilberto Freyre.

De todo modo, é a práxis sustentada coerentemente que, em última análise, importa para avaliar a somatória de todos os atos que configura o caráter de um homem. Por isso, deve-se considerar o projeto que resultou da experiência vital de Nabuco junto aos escravos de Massangana. Doze anos depois da morte de Dona Ana Rosa, o jovem de vinte anos voltou à capela de São Mateus onde jazia a madrinha na parede ao lado do altar, "e pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas urtigas, era tudo quase que restava da opulentafábrica, como se chamava o quadro da escravatura...". O engenho vendido se transformara em usina. Da casa velha não restara vestígio. "O trabalho livre" - observa o memorialista - "tinha tomado o lugar em grande parte do trabalho escravo". Debaixo dos seus pés estavam os ossos dos negros velhos que o tinham amado na infância. Como na cena do escravo abraçado a seus pés, Nabuco vive então um novo momento revelador: "Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com a sua solução obrigatória".

Mas a revelação da iniquidade duraria apenas o tempo breve de uma epifania se não tivesse desencadeado no jovem Nabuco a certeza de uma decisão sem retorno. Diante daqueles túmulos abandonados, mas sagrados, ali mesmo, aos vinte anos, formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas que a desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava até mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de bondade...

Nabuco poderia ter antecipado a frase que seria o lema do Mahatma Gandhi: "Eu amo a beleza do compromisso".


Da experiência vital ao primeiro passo da carreira do abolicionista
Pouco tempo decorreu para que o estudante de Direito no Recife tivesse ocasião de cumprir o seu voto solene. Um escravo de nome Tomás matara uma autoridade que mandara açoitá-lo em praça pública; preso e condenado, dera um golpe mortal no guarda que lhe impedira a fuga. Julgado como réu de dois crimes, quem o defendeu foi o nosso quintanista de Direito. A causa estava de antemão perdida, mas para Nabuco era o primeiro banco de prova do juramento feito sobre os ossos dos escravos de Massangana.

Para elaborar a defesa, o estreante nas lides do fórum escreveu um libelo a que deu o título de A escravidão. O texto ficou desconhecido até que, em 1924, a viúva do autor, Evelina Nabuco, o entregou ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que só viria a publicá-lo em sua revista em 1951. Não se conhecem as razões do ineditismo dessa obra juvenil. Em Minha formação, ele traça a memória daqueles anos fecundos que precederam a elaboração da Lei do Ventre Livre, destacando o trabalho jurídico do pai, o senador Nabuco de Araújo, e os seus contatos com a Anti-Slavery Society, cujas publicações traduzia e dariam munição para os discursos abolicionistas. Mas não se detém na história do texto de A escravidão. No entanto, essas já traziam argumentação cerrada contra o instituto do cativeiro. Nabuco mostra-se conhecedor da história da escravidão desde a Antiguidade, e é notável a riqueza de dados sobre o tráfico ilícito que apresenta, provavelmente extraídos do livro que ele chamaria mais tarde "o grande manancial", A escravidão no Brasil, de Perdigão Malheiro. A obra, recém-publicada, já era conhecida entre os membros do Instituto dos Advogados, a que pertencia o senador Nabuco de Araújo.

O libelo mereceria análise minuciosa que não cabe nos limites desta exposição. Há nele um ímpeto juvenil que nos comove até hoje. O cerne do discurso é ousado: se há um crime a ser punido antes de se condenar o escravo Tomás, esse crime é a própria escravidão. A ideia do cativeiro como fenômeno social total que degradava o Brasil e todas as sociedades escravistas seria retomada por Nabuco no seu escrito maior, O abolicionismo, em discursos que pronunciou na Câmara e em comícios eleitorais. A defesa do réu converte-se desde o princípio em ataque, o que é sabidamente a melhor das estratégias. Tão admirável como esse acorde inicial me parece a engenhosidade com que o nosso fogoso estudante soube inverter o principal argumento dos defensores da escravidão, o direito absoluto da propriedade, sancionado na Carta de 1824, que repetia, por sua vez, o Código napoleônico. A decisão de libertar os escravos nas colônias francesas fora tomada pela Convenção revolucionária em 1794, mas Napoleão a revogou em 1802, e, novamente legalizada, a propriedade do homem pelo homem se manteria até que a revolução de 1848 decretasse a abolição definitiva. O liberalismo no Brasil não ficou muito a dever ao liberalismo europeu. Cá e lá...

O que faz o defensor do escravo Tomás? Considerando, de plano, a escravidão um crime, Nabuco o qualifica em termos de delito de dupla violação contra o direito de propriedade: ao escravo tinham sido ilegitimamente subtraídos o direito de dispor do próprio corpo, alienado ao senhor, e o direito à vida, por força da pena de morte assinada no seu primeiro julgamento. "Assim", propõe Nabuco, "veremos como a escravidão ataca o direito da propriedade". A transgressão desse direito sagrado já havia começado com um crime: o tráfico negreiro contemporâneo da descoberta e dos três séculos de colonização. O tráfico acabara, mas seus efeitos perversos perduravam. Nabuco cita as palavras de um de seus poetas diletos, Lamartine: "Feliz o dia em que a legislação vir banidos diante da luz divina esses dois grandes escândalos da razão do século dezenove: a escravidão e a pena de morte".

De particular interesse para compreender as precoces manifestações contraideológicas de Nabuco são as páginas dedicadas ao quilombo dos Palmares. As fontes então disponíveis eram parcas: a rigor, só a História da América portuguesa de Rocha Pita na edição de 1730 citada pelo nosso historiador amador. Entende-se por que ele fale de uma "lenda pernambucana", o que não o impede de narrar os fatos com a precisão de nomes, lugares e datas. E não só: proferindo juízo sobre o valor dos quilombolas e destacando Zumbi e seus guerreiros, realça seu caráter heroico, que sustenta contra "os historiadores que caluniaram" aquela tentativa desesperada de viver livre em terra de escravidão. Para destruir Palmares, foi necessária a aliança dos maiores poderes da colônia: os portugueses assoldados pelo vice-rei João de Lancastro e os bandeirantes comandados por Domingos Jorge Velho. Uma composição similar de forças arrasaria a ferro e fogo, meio século depois, as missões dos Sete Povos.


Memória individual e história social

Recorrendo ao termo "vivência", lembrei a sua dupla dimensão: experiência de um momento decisivo e experiência de uma rede de encontros alongada no espaço e no tempo. A pura memória, no sentido bergsoniano de irrupção súbita de uma cena que parecia calada no silêncio do inconsciente, pode determinar uma percepção nova da realidade e aquecer por algum tempo nossa imaginação e nosso desejo: o episódio de Massangana e a volta do jovem Nabuco ao engenho terão sido responsáveis pela sua promessa de dedicar a vida à libertação dos escravos.

De outra qualidade é a reconstrução que o memorialista faz de seu itinerário de homem público: aqui vemos os andaimes da persona, o trabalho das ideias, a modelagem das convicções morais e doutrinárias; numa palavra, a formação do indivíduo que pertence ao tempo, a memória que se faz história.

A biografia cultural e política de Joaquim Nabuco poderia ser figurada co-mo uma constelação. São pessoas e lugares que ele foi encontrando em tempos diversos, e que a mente aberta e o coração generoso foram trazendo para o seu convívio como quem traça em torno de si um círculo familiar. Minha formação é obra que poderá desnortear pela riqueza de personagens e situações evocadas, mas que se lê como uma melodia única, porque única é a voz que a modula e único o seu timbre puro, claro, sem deixar de ser cálido e afetuoso.


O pai

Quem leu Um estadista do Império não precisará de nenhuma outra prova da influência duradoura que a figura paterna exerceu sobre a formação moral e política de Joaquim Nabuco. No livro das memórias, o 18º capítulo abre-se com este testemunho solene:

Por onde quer, entretanto, que eu andasse e quaisquer que fossem as influências de país, sociedade, arte, autores, exercida sobre mim, eu fui sempre inteiramente trabalhado por outra ação mais poderosa, que apesar, em certo sentido, de estranha, parecia operar sobre mim de dentro, do fundo hereditário, e por meio dos melhores impulsos do coração. Essa influência, sempre presente por mais longe que eu me achasse dela, domina e modifica todas as outras que invariavelmente lhe ficam subordinadas. É aqui o momento de falar dela, porque não foi uma influência propriamente da infância nem do primeiro verdor da mocidade, mas do crescimento e amadurecimento do espírito, e destinada a aumentar cada vez mais com o tempo e a não atingir todo o seu desenvolvimento senão quando póstuma. Essa influência foi a que exerceu meu pai...

Deixo aos psicanalistas a tarefa de desatar o nó existencial: influência em certo sentido estranha, mas que parecia operar de dentro do fundo hereditário; influência que tudo domina mesmo a distância; mas que não se manifestou nem na infância (o menino Nabuco viu o pai pela primeira vez aos oito anos de idade), nem na primeira juventude, e que só atingiu seu ápice depois da morte do pai... Estranha, tardia, longínqua, póstuma, e no entanto poderosa herança transmitida pelo sangue, crescente com a idade, e afinal só onipresente na hora da orfandade.

Ao estudioso de ideias e valores o que fica dessa memória reverencial é o roteiro político e a sabedoria do jurista e conselheiro do Império. No primeiro capítulo de Minha formação, a ênfase recai na sua passagem do campo conservador para o liberal efetuada nos meados da década de 1860. A história dessa mudança partidária foi contada com minúcia ao longo de Um estadista do Império, levantamento exaustivo de dados em que o historiador Joaquim Nabuco recorre a milhares de apontamentos do pai e a testemunhos de contemporâneos (ora favoráveis, ora críticos), verdadeira memória de segundo grau, que muitas vezes é a matéria-prima da historiografia.

Talvez caiba uma breve digressão sobre as convicções políticas de Nabuco de Araújo, pois o quadro interessa também à formação doutrinária do seu filho e biógrafo.

Para desbastar o terreno, parece-me necessário fazer uma distinção entre dois liberalismos, válida não só para o Brasil Império, como para grande parte do Ocidente ao longo do século XIX. Conhece-se o liberalismo conservador, que se codificou sob o império de Napoleão, adensou-se nos anos da Restauração e afinou-se sob o reinado burguês de Louis-Philippe. Entre seus maiores ideólogos figuravam Benjamin Constant e Guizot, seguidos de perto pelos políticos brasileiros que adotaram em plena Regência a bandeira do chamado Regressismo. É uma ideologia proprietista, excludente, escorada no voto censitário, sempre defensiva em relação aos ideais da Revolução Francesa. Predominou até a Revolução de 48.

As ressonâncias desse movimento rebelde alcançariam toda a Europa e chegariam, com algum atraso, também entre nós. Nos anos 1860 desponta um novo liberalismo, de feição democrática e já capaz de contestar a política escravista ainda hegemônica. Do primeiro liberalismo, monárquico e inteiramente subordinado aos princípios de autoridade e hierarquia, Nabuco de Araújo foi adepto, como juiz severo dos líderes da Revolução Praieira e parlamentar influente do partido conservador, até o momento em que se desvincularia para sempre dos corifeus da oligarquia saquarema. Ao hipotecar apoio à política de conciliação do ministério Paraná e à corrente dos Progressistas, ele de algum modo se aproximava do Partido Liberal que ganharia consistência ideológica ao longo da crise política de 1868. O jovem Nabuco, que vimos em 1870 defender o negro Tomás perante uma sociedade dominada por senhores de engenho, se reconhece nesse segundo liberalismo a que o pai aportara precisamente naqueles anos decisivos em que despontava o abolicionista.

A escrita de Minha formação remete-nos aos capítulos de Um estadista do Império, em que o filho mostra o pai empenhando-se em dar formulação jurídica às propostas pioneiras de libertação dos nascituros que resultariam no projeto Rio Branco. Sem subestimar o trabalho de erudição e discernimento que revelam os textos do senador Nabuco de Araújo (aproveitados no projeto do Conselho de Estado por ele redigido em 1868), não podemos deixar de compará-los com as páginas contemporâneas do libelo A escravidão ditadas pelo estreante no fórum Joaquim Nabuco. Essa veemente defesa só foi de raspão mencionada em Minha formação, e seu título não consta nem mesmo na bibliografia do autor listada na cuidadosa edição da Aguilar de Um estadista do Império, que é de 1975. Mas, à primeira leitura, saltam à vista o longo alcance e a radicalidade do libelo do jovem Nabuco e, na outra ponta, a constante moderação do provecto conselheiro.

A escravidão dá à instituição do cativeiro o seu verdadeiro nome de crime. Mas o projeto de emancipação dos nascituros, conservando como escravos pai e mãe, todas as crianças e todos os adultos nascidos antes da promulgação da lei, mantinha intacta a legalidade da instituição.

O jovem Nabuco contesta o direito de propriedade do homem pelo homem; o texto do projeto do Conselho de Estado, ao contrário, o reconhece, na medida em que propõe formas de indenizar o proprietário, obrigando os libertos a trabalhar gratuitamente para seus ex-senhores até a idade de vinte anos. A Lei Rio Branco iria além: ofereceria ao proprietário a alternativa de receber 600 mil réis como ressarcimento pelos gastos despendidos na criação do ingênuo. Trata-se de procedimentos imitados de leis similares promulgadas na Inglaterra, na França e em Portugal. Cá e lá...

Cumpre retomar a distinção entre vivências únicas, irrepetíveis e experiências cumulativas. As primeiras são raios que iluminam de repente a alma dos que as experimentam: assim foi o episódio do jovem abraçado aos pés do menino pedindo-lhe a proteção da madrinha, assim foi a visão dos jazigos rasos sobre os ossos dos velhos escravos na capela de São Mateus. Aí percebemos os momentos em que tudo muda, e muda para sempre, aí está o germe da radicalidade do futuro líder da causa. Quanto às outras, de fundo cultural e político, agem lentamente, vão sedimentando no espírito de quem as introjeta aqueles valores que nortearão a sua palavra e ação. É esse o caso do filho que contempla a longa carreira ascensional do pai, conselheiro aberto à filantropia da Anti-Slavery Society e aos políticos liberais da Europa que pelejaram pela extinção do tráfico e, em seguida, pela abolição do cativeiro.

Centrando na figura do Conselheiro a sua própria formação de homem público, Nabuco não esquece a constelação dos políticos que, nos anos de sua juventude, davam o tom ao liberalismo democrático:

Em casa eu via muito a Tavares Bastos, que me mostrava simpatia, todo o grupo político da época; era para mim estudante um desvanecimento descer e subir a rua do Ouvidor de braço com Teófilo Otoni; um prazer ir conversar no Diário do Rio com Saldanha Marinho e ouvir Quintino Bocaiúva, que me parecia o jovem Hércules da imprensa, e cujo ataque contra Montezuma, a propósito da capitulação de Uruguaiana, me deu a primeira idéia de um polemista destemido.

Quem conhece a biografia do jovem Machado de Assis reconhece as figuras principais dessa constelação que o ajudou em seus primeiros anos de jornalismo. Aqui o interesse está em mostrar a afinidade do grupo com a posição do conselheiro Nabuco de Araújo na sua passagem para o novo liberalismo.

O instante singular da emoção tinha sido o motor que tudo aquecera e transformara, mas foram os anos de sociabilidade política e reflexão que não o deixaram arrefecer.


Leituras
Joaquim Nabuco foi desde a adolescência um leitor apaixonado. As menções a livros e autores disseminadas emMinha formação podem, à primeira vista, desorientar tal a variedade e o ecletismo das referências. Mas um exame atento acaba encontrando duas fontes recorrentes de suas escolhas: a literatura francesa ainda romântica ou já penetrada por veios realistas e os escritos políticos ingleses da primeira metade do século XIX. As culturas francesa e inglesa serão o pão cotidiano de Nabuco ao longo de toda a vida. Sabe-se quanto ele dominava as respectivas línguas, tendo escrito diretamente em francês desde a primeira juventude como o atestam o drama L'option, redigido pouco depois da derrota da França e, na maturidade, as suas máximas morais e religiosas, Pensées détachées, que levaram um crítico respeitável, Émile Faguet, a supor que o nome de Joaquim Nabuco fosse o pseudônimo de algum escritor francês encapuzado... Em inglês, aperfeiçoado durante as estadas em Londres, proferiu conferências literárias e políticas em várias universidades norte-americanas na qualidade de nosso primeiro embaixador em Washington. A sua leitura do canto 9º de Os lusíadas acompanhada de versões das oitavas camonianas é exemplo dessa mestria.

Mas o que interessa ao intérprete da cultura é saber o que tocou fundo o leitor Nabuco a ponto de manter-se vivo no seu livro de memórias. Creio que só fica o que significa. O romantismo francês deu-lhe o gosto do lirismo harmonioso de Lamartine, a magia da prosa de Chateaubriand (que se pode reconhecer em suas encantadas descrições da natureza da ilha de Paquetá), mas principalmente o élan de uma religiosidade ardente, pessoal, que na juventude beirava a heterodoxia de Lamenais: as Palavras de um crente foram um de seus livros de cabeceira. E havia também o Victor Hugo rebelde e Edgard Quinet, autor hoje esquecido de um poema trágico sobre o judeu errante, o Ahasverus, súmula de uma teologia da libertação avant la lettre. O orador arrebatado da campanha abolicionista guardou o calor dessa herança romântica. E me arriscaria a dizer que nem mesmo a influência confessa de Renan, com seu irônico ceticismo, logrou apagar do coração de Nabuco a chama do sentimento religioso que os últimos anos de vida iriam avivar com tanta intensidade.

Em compassado contraponto, veio-lhe da leitura dos publicistas ingleses a convicção inabalável do seu liberalismo parlamentar e monárquico. É possível que Nabuco haja idealizado os traços de um caráter nacional inglês em estado puro e refratário a influências externas. Para entender essa perspectiva, nada melhor do que ler a passagem sobre "o espírito inglês", que está no centro de Minha formação. O seu primeiro mestre de História no Colégio Pedro II, o barão de Tautphoeus, a quem dedicou páginas de veneração, já lhe ensinara que a singularidade inglesa e o distanciamento das modas continentais não seriam defeito de isolacionismo, mas prova de solidez e vitalidade das próprias tradições.

A espinha dorsal do parlamentarismo monárquico de Nabuco ele a retirou de um manual de direito, A Constituição Inglesa, de Bagehot. Há um capítulo de Minha formação que se intitula precisamente "Bagehot". Não tenho competência jurídica para apreciar quer o livro, quer a viabilidade da sua aplicação ao nosso sistema político. Talvez deva louvar-me na opinião de um mestre, Afonso Arinos de Melo Franco, que, no prefácio a Um estadista do Império, qualifica de "inteiramente irrealista" a fé nunca desmentida de Nabuco "nas possibilidades de adaptação, no Brasil, da Monarquia parlamentar inglesa". E inclino-me a endossar a tese de Afonso Arinos segundo a qual Minha formação e Um estadista do Império seriam não só biografias do próprio autor e de seu pai, mas monumentos erigidos ao Império que o golpe republicano derribara sem piedade. Se assim é, a República, afastando Nabuco da vida pública, o teria involuntariamente estimulado a voltar-se saudoso para o regime destituído. A ironia da história não para aí: lendo Um estadista do Império, o presidente Campos Sales tomou-se de tanta admiração pelo autor que resolveu convidá-lo para reintegrar-se no corpo diplomático e defender o Brasil na questão dos limites com a Guiana Inglesa. Assim, o livro que lhe ditaram os anos de ostracismo foi o mesmo que lhe abriu caminho para servir o novo regime... Que a história seja sempre e de algum modo contemporânea do historiador, é tese de Benedetto Croce cujo acerto não me canso de constatar.


Das viagens à luta: "outra provisão de sol interior"

Virou lugar-comum falar do cosmopolitismo de Nabuco e insinuar que ele teria sido um exilado em sua própria terra, na esteira de uma frase antológica (a meu ver discutível) de Sérgio Buarque de Holanda que acreditou interpretar o que seria o desenraizamento dos intelectuais brasileiros. Que Nabuco tenha viajado longamente pela Europa e pelos Estados Unidos antes e depois do momento crucial da campanha abolicionista é fato sabido, e Minha formação narra por miúdo o encantamento que sentiu em cidades inesquecíveis como Paris, Londres, Florença, Roma, Nova York. Mas para relativizar a impressão de inquieto cosmopolitismo do viajante Nabuco, nada como ler as reflexões que se encontram na passagem "Atração do mundo". A matéria é a sede de conhecimento que se apoderou do jovem mal entrado na quadra dos vinte anos. Para tudo resumir, ele faz uma distinção drástica mas inspirada: "O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia". O contexto explica: trata-se da própria formação cultural que o brasileiro (e não só o brasileiro) recebia no século XIX e, em parte, deveras reduzida, recebe ainda hoje. A Europa era a matriz universalizante de toda a história da civilização que chegava até nós mediante figuras inesquecíveis. Imagens que, desde a Antiguidade greco-romana até a Revolução Francesa, para não ir mais adiante, se converteram em ícones da própria humanidade. Mas o Brasil era a pátria, as ligações afetivas com a família, os amigos, os mestres, os escravos, os senhores, a luta, o povo. O seu chamado acaba sendo o mais forte, definitivo. Dizendo-se um "errático" na mocidade, o memorialista conclui:

Quando, porém, entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo, que é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita forma em que estava a cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos d'almas, Ustedes me entienden, deixei ir a Europa, a história, a arte, guardando do que é universal só a religião e as letras.

Chamo a atenção para o enraizamento político de Nabuco, eminentemente brasileiro. Não se trata de nacionalismo retórico, ao qual ele sempre foi infenso. Trata-se de um empenho sem tréguas pela libertação do escravo e ao mesmo tempo pela elevação do nível do homem pobre do campo e da cidade. Já está mais do que na hora de relegar a certo pseudojornalismo leviano fantasiado de historiografia a exploração da imagem do Joaquim Nabuco dandy, Quincas o belo, exibindo-se nos salões da aristocracia europeia e da elite americana. O estereótipo fútil arrisca-se a ocultar a complexidade da pessoa. Nos últimos anos de vida como embaixador, agravado por mais de uma enfermidade, e vivendo profundamente a sua conversão religiosa, as exigências da vida social pesavam-lhe como fardo quase insuportável: estão aí os diários que nos fazem ouvir a sua voz combalida, embora publicamente animosa, como sentia ser de seu dever sustentá-la. O diplomata não pode deixar de representar, é o seu ofício, mas quantas vezes custa-lhe cumprir o ritual da noblesse oblige! Leio uma anotação pungente datada de Washington, 23 de novembro de 1906: "Arrumando papéis. Tive uma pequena náusea depois do café. Não pude almoçar e por isso senti-me fraco à tardinha. I am quite a tottering house. Sou como uma casa que vacila".

Mas voltemos às memórias. A evocação de Massangana fica entre os capítulos "Eleição de deputado" e "A Abolição". O sentimento de raiz penetra ambos os momentos do combate político como fluido subterrâneo que ainda vai emergir para propiciar a mais bela florada. Na década de 1870 Nabuco viajara pela Europa e América do Norte, com regressos intermitentes ao Brasil, e ele próprio entende esses anos como os de um amador curioso, enfeixando-os com a pitoresca expressão "fase de lazzaronismo intelectual". Mas, morto o pai em março de 1878, Nabuco se lança à política partidária: candidata-se ao Parlamento e é eleito em Pernambuco graças ao prestígio do nome do velho senador.

eu tinha necessidade de outra provisão de sol interior; era-me preciso, não mais o diletantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo, palpitante, absorvente, no destino e na condição alheia, na sorte dos infelizes; [...]. Era preciso que o interesse fosse humano, universal; que a obra tivesse o caráter de finalidade, a certeza, a inerrância do absoluto, do divino como têm as grandes redenções, as revoluções da caridade e da justiça, as auroras da verdade e da consciência sobre o mundo. No Brasil havia ainda no ano em que comecei minha vida pública um interesse daquela ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, igualmente impulsivo e ilimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de criaturas isoladas, quer do caráter da nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação, e por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo - bulbo que devia dar a única flor da minha carreira... [...] Como eu disse porém, há pouco, eu trazia da infância o interesse pelo escravo...

Creio que Habermas teria prazer de conhecer esse texto, em que a palavra "interesse" aparece tantas vezes resgatada, sempre portadora de uma dupla dimensão, de idealismo ético e realismo político. O interesse leva ao conhecimento, e o conhecimento compele à ação. Nabuco será, na sua primeira experiência parlamentar, a voz que reabre a questão da liberdade dos escravos, tema candente que ficara quase silenciado desde a promulgação da Lei dos nascituros.

"Massangana" antecede o capítulo sobre a abolição, verdadeiro balanço do que foi o movimento e preito de homenagem a seus responsáveis diretos. Começa lembrando a situação que o estreante no Parlamento se propôs enfrentar:

Quando a campanha da abolição foi iniciada, restavam quase dois milhões de escravos, enquanto que os seus filhos de menos de oito anos e todos os que viessem a nascer, apesar de ingênuos, estavam sujeitos até aos vinte e um anos a um regime praticamente igual ao cativeiro. Foi esse imenso bloco que atacamos em 1879, acreditando gastar a nossa vida sem chegar a entalhá-lo. No fim de dez anos não restava dele senão o pó.

Dois milhões de escravos, o tráfico interprovincial ainda em ação trazendo para Minas, São Paulo e Rio cativos do Nordeste, e o café sustentando grande parte de nossa economia de exportação! Que desafio para a retomada do ideal abolicionista que estivera entorpecido desde a Lei de 1871!

Ao fazer o retrospecto das razões do movimento Nabuco contempla de modo generoso, diria mesmo otimista, fatores ligados ao contexto: a abolição corresponderia ao espírito da época e ao progresso moral que a humanidade estaria vivendo naquele último quartel do século XIX. Ao lado desse crédito ao evolucionismo dominante, ele volta a exaltar a "doçura do caráter nacional" para a qual teria contribuído a bondade do africano. A esses traços atribui também a diferença das situações no Brasil e nos Estados Unidos. Os criadores do Kentucky e os plantadores da Lousiania linchavam os abolicionistas enquanto entre nós não poucos fazendeiros começavam a alforriar aos centos os seus escravos. Algum impertinente poderia perguntar por que tanta doçura e liberalidade tardou tantos e tantos anos para manifestar-se.

Em seguida, testemunha do movimento, enumera "cinco ações ou concursos diferentes que cooperaram para o resultado final". Resumindo:

• o papel dos intelectuais, parlamentares, jornalistas, professores, em suma, dos formadores de opinião;
• o trabalho ousado dos militantes que favoreciam as evasões e defesas dos escravos;
• a atitude de alguns proprietários que libertavam os seus trabalhadores compulsórios;
• a ação política de estadistas que negociavam as concessões do governo;
• enfim, a vontade do Imperador e de sua família.

Nossa historiografia tem feito reparos a esse balanço. De minha parte, não sendo historiador, diria que nem sempre as críticas me parecem procedentes. A principal e mais grave diz respeito a um pecado de omissão: faltaria ao elenco das forças que concorreram para o 13 de maio a menção ao movimento dos próprios escravos, as suas fugas e revoltas tão amiudadas na década de 1880.

Nabuco defende-se antecipadamente da acrimônia dos seus juízes póstumos reivindicando para a ação parlamentar não só a prioridade na consecução da luta, como também o seu locus mais adequado. Incitar os escravos à aberta rebeldia contra os senhores sempre lhe pareceu uma conduta irresponsável, se não covarde. Feita longe da Câmara, dos jornais, dos clubes e das escolas, a campanha se converteria em "um encontro de facções", "uma guerra de raças", na qual o lado mais fraco seria esmagado implacavelmente. O Nabuco liberal-democrata acreditava firmemente no princípio da representação política. Os escravos deveriam ser representados pelos abolicionistas, desde um parlamentar como ele ou José Mariano até um rábula audaz e insubornável como Luís Gama, um jornalista fogoso como Patrocínio, um estadista clarividente como Dantas, um apóstolo de todas as horas como André Rebouças. Nesse ponto, aliás fundamental, parece-me que o líder abolicionista agiu de modo coerente seguindo a própria consciência. O que evidentemente não deve deter o trabalho de pesquisa histórica em torno do movimento dos próprios escravos. As fugas, as rebeliões nas senzalas e a multiplicação dos quilombos pesaram na desagregação do sistema de trabalho ainda vigente na economia cafeeira. O quanto o fizeram é questão aberta.

Mas para tudo dizer sem rebuços fetichistas, confesso que me decepciona um tantinho o imerecido reconhecimento que Nabuco dá a alguns políticos da undécima, talvez 25ª hora. Conservadores com senso da oportunidade, homens como o conselheiro Antônio Prado e João Alfredo talvez não devessem figurar nas menções honrosas que Nabuco prodigamente lhes dá ao nomear alguns políticos que contribuíram tardiamente para o êxito do movimento. O conselheiro Prado votara contra a Lei do Ventre Livre e, conforme denúncia de Patrocínio, quis, quando ministro da Agricultura, restaurar burocraticamente a matrícula dos escravos em províncias que já os haviam libertado, como o Amazonas e o Ceará. Como outros políticos ligados à oligarquia do café, o seu objetivo maior era obter o apoio do governo para financiar a imigração europeia, daí o interesse pela abolição manifestado às vésperas da Lei Áurea.
De todo modo, não se vislumbra no Nabuco memorialista sombra alguma de ressentimento ou parcialidade partidária. Caso ele se tenha equivocado no julgamento, foi por excesso de benevolência, o que me parece sempre melhor do que o excesso contrário. E, sem endeusá-lo, prefiro reiterar aqui meu testemunho de admiração. E dizer como um historiador marxista insuspeito, Luiz Felipe Alencastro: "Que saudades dos abolicionistas!".


Modernização conservadora ou reformismo democrático?

O rótulo modernização conservadora, concebido pela historiografia de esquerda, tem sido adotado para qualificar algumas iniciativas dos governos imperial e republicano. Trata-se, em geral, de propostas de reforma que não alteraram o equilíbrio de forças em uma sociedade marcada por evidentes assimetrias econômicas e políticas. Exemplo arquicitado é a reforma eleitoral conhecida por Lei Saraiva que, instituindo a eleição direta, mas excluindo o voto do analfabeto, reduziu drasticamente o corpo eleitoral do Império. O que se modernizou, por um lado, retardou-se por outro, impedindo a democratização efetiva do processo político da nação. Exemplo menos típico, diremos ambivalente, é a Lei do Ventre Livre: "passo de gigante", nas palavras de Joaquim Nabuco, acabou, segundo a avaliação dele próprio, virando bandeira dos escravistas mais renitentes que se opunham a qualquer alargamento do seu âmbito, chegando ao extremo quase inverossímil de vetar a proposta da libertação dos sexagenários em 1884. Aplicação controvertida da mesma fórmula é a que se poderia fazer em relação ao regime republicano: instaurado por um movimento militar jacobino, foi largamente usufruído pela oligarquia cafeeira ao longo da República Velha.

Essa ingrata combinação de progressismo e conservadorismo tem sido atribuída à práxis política brasileira ou, mais amplamente, "periférica", a meu ver com certo grau de miopia histórica. É preciso enxergar de perto e de longe. As violentas regressões ideológicas verificadas na Europa burguesa nos anos nazi-fascistas e o longo calvário do negro americano após a abolição nos instruem a respeito do lado sinistro da história do capitalismo moderno. Mutatis mutandis, o que aconteceu na União Soviética sob Stalin e na China maoista, Estados em que revoluções de amplo espectro popular e progressista involuíram para burocracias sanguinárias, tampouco nos deixa margem para crer cegamente nas potencialidades democráticas das soluções violentamente estatistas.

Voltando ao Brasil, o que chamamos, às vezes de modo indiferenciado, "revolução burguesa" abriga contradições recorrentes que não devem ser interpretadas apenas em termos estritamente nacionais.

A luta abolicionista de Joaquim Nabuco faz parte do processo de modernização que se seguiu ao fim do tráfico negreiro em 1850. Essa proposição geral deve ser dialetizada. A extinção do cativeiro entre nós demorou quatro décadas para ser efetivada. Nas colônias inglesas e francesas e nos Estados Unidos, também decorreu um lapso de tempo entre a proibição do tráfico e a libertação definitiva: cerca de trinta anos na Inglaterra (1807-1838) e quarenta na França (1807-1848); no caso das metrópoles, os governos pagaram indenização aos proprietários de escravos. A tentação é criar um novo conceito, que valeria para o Ocidente: modernização retardada. Allegro ma non troppo, antes adagio adagio.

Essa pesada lentidão, essa inércia das estruturas (para valer-me de uma expressão de Lévi-Strauss) indignava Nabuco, e já vimos que o seu ímpeto libertário vinha da primeira juventude, da defesa do negro Tomás redigida um ano antes da Lei do Ventre Livre. A correspondência com os abolicionistas ingleses, há pouco exemplarmente editada por José Murilo de Carvalho e Leslie Bethell, as páginas de O abolicionismo e as campanhas eleitorais no Recife formam elos de uma corrente de ideias e valores cujo alvo é a instituição vista em termos de fenômeno social total. Aqui está o coração do nosso tema: modernização, sim, mas em um sentido progressista e democrático.

A modernização proposta por Nabuco extinguiria não só o trabalho compulsório, mas todos os seus condicionamentos econômicos. "Acabar com a escravidão não basta. É preciso destruir a obra da escravidão." Modernização escorada no contrato de trabalho, mas sem aderir à panaceia do imigrantismo, que foi a solução exclusivista levada a efeito pelas oligarquias sequiosas de mão de obra, mas inteiramente alheias à valorização do trabalhador brasileiro: o ex-escravo foi deixado ao léu; o sertanejo pobre, dito livre, continuou submetido a uma estrutura agrária iníqua ou se viu obrigado a virar um pária urbano nos mocambos esquálidos que já começavam a cogumelar nas periferias das grandes cidades. Nabuco entendeu tudo em um relance quando pediu votos nos distritos humildes do Recife e falou aos operários, então chamados de "artistas", convocando-os a se unirem para reivindicar um nível de vida humano:

Vós sois a grande força do futuro; é preciso que tenhais consciência disso, e que também o meio de desenvolver a vossa força é somente a associação. Para aprender, para deliberar, para subir, é preciso que vos associeis. Fora da associação não tendes que ter esperança.

Nabuco viu claro quando, na esteira de seu fraterno amigo André Rebouças, propôs uma reforma agrária como precondição para conferir dignidade ao trabalhador do campo e estancar o êxodo que resultaria na urbanização patológica, mal que hoje nos parece crônico. Rebouças lhe falava da urgência de promover a "democracia rural" no Brasil.

Lendo o resumo do que restou da sua passagem pela política, o memorialista me convenceu, uma vez por todas, de que nenhum projeto e nenhuma opção doutrinária puderam nele aflorar sem o empuxo de uma experiência pessoal que o moveu à ação.

Esta evocação é de uma visita do candidato a um bairro pobre do Recife:

Duvido ter eu tido maior revelação, ou impressão exterior, que ficasse atuando sobre mim de modo mais permanente, do que essas eleições de 1884 a 1887 - [...]. Elas puseram-me em contacto direto com a parte mais necessitada da população e em mais de uma morada de pobre tive uma lição de coisas tão pungente e tão sugestiva sobre o desinteresse dos que nada possuem, que a só lembrança do que vi terá sempre sobre mim o poder, o efeito de um exame de consciência... Eu visitava os eleitores, de casa em casa, batendo em algumas ruas a todas as portas... A pobreza de alguns desses interiores e a intensidade da religião política alimentada neles fez-me por vezes desistir de ir mais longe... Doía ver o quanto custava a essa gente crédula a sua devoção política. Diversos desses episódios gravaram-se-me no coração. Uma vez entrei na casa de um operário, empregado em um dos Arsenais, para pedir-lhe o voto. Chamava-se Jararaca, mas só tinha de terrível o nome. Estava pronto a votar por mim, tinha simpatia pela causa, disse-me ele; mas votando, era demitido, perdia o pão da família; tinha recebido a chapa de caixão (uma cédula marcada com um segundo nome, que servia de sinal), e se ela não aparecesse na urna, sua sorte estava liquidada no mesmo instante. "Olhe, senhor doutor", disse-me ele, mostrando-me quatro pequenos, que me olhavam com indiferença, na mais perfeita inconsciência de que se tratava deles mesmos, de quem no dia seguinte lhes daria de comer... E depois, voltando-se para uma criancinha, deitada sobre os buracos de um antigo canapé desmantelado: "Ainda em cima, minha mulher há dois meses achou essa criança diante de nossa porta, quase morrendo de fome, roída pelas formigas, e hoje é mais um filho que temos! No entanto, estou pronto a votar pelo senhor, recomeçava, cedendo à sua tentação liberal, se o senhor me trouxer um pedido do brigadeiro Floriano Peixoto". Esse foi talvez o primeiro florianista do país... "Pode vir por telegrama... Ele está no engenho nas Alagoas... E o que ele me pedir, custe o que custar, eu não deixo de fazer... Telegrafe a ele..." "Não, não é preciso", respondi-lhe, vote como quer o Governo, não deixe de levar a sua chapa de caixão... não arrisque à fome toda essa gentinha que me está olhando... Há-de vir tempo em que o senhor poderá votar por mim livremente; até lá, é como se o tivesse feito... Não devo dar-lhe um pretexto para fazer o que quer, invocando a intervenção do seu protetor. E saí, instando com a mulher, suplicando, com o medo de que ele se arrependesse e fosse votar em mim.

Em outras casas o chefe da família estava sem emprego havia anos por causa de um voto dado ao partido da oposição; a pobreza era completa, quase a miséria, mas todos ali tinham o orgulho de sofrer por sua lealdade ao partido.
Glosando uma frase de Pascal, será justo dizer que onde se procura encontrar o político Nabuco o que se descobre é o homem Nabuco, aquele que transformou o sentimento em ideia e a ideia em ação.

Estamos em tempo de lembrar homens que marcaram fundo a nossa identidade de brasileiros. Euclides ontem, Nabuco hoje. E já que o tempo é de memória, retorno a um texto que li, adolescente, na Antologia Nacional de Carlos de Laet e Fausto Barreto, obra que acompanhou tantos de nós em nosso tempo de escola. Trata-se da célebre comparação que Castilho fez entre Vieira e Bernardes, e que acabava com um período incisivo: "A Vieira admira-se, a Bernardes admira-se e ama-se". Peço licença aos euclidianos e, especialmente a meu caro confrade Alberto Venâncio Filho, para dizer com a maior franqueza: A Euclides admira-se, a Nabuco admira-se e ama-se.


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Fonte:
Estud. av. vol.24 no.69 São Paulo,  2010. Disponível em:  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-401420100002000.

Nota:
Alfredo Bosi é titular de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo e pertence à Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre outras obras, História concisa da literatura brasileira, O ser e o tempo da poesia, Céu, inferno, Dialética da colonização, Machado de Assis: o enigma do olhar, Literatura e resistência, Brás Cubas em três versões e Ideologia e Contraideologia. É editor da revista ESTUDOS AVANÇADOS.

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