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Joaquim Nabuco memorialista
Por: Alfredo Bosi
Texto da conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em
13 de abril de 2010.
Neste centenário da morte de Nabuco, tudo convida a reler Minha
formação. Trata-se de um livro de recordações de uma vida inteira, embora não
obedeça à tradicional estrutura linear das obras do gênero: nascimento,
infância, juventude, maturidade... A composição lembra antes um arquipélago do
que um continente. Os capítulos são ilhas, que o mar aparentemente infinito da
memória ora aproxima, ora distancia. Como acontece nos movimentos de nossa vida
subjetiva, há lembranças que, de tão longínquas e esgarçadas, parecem já estar
fora de nós, e precisamos de algum esforço para recompô-las e dizê-las, e há
outras que nos tomam de assalto, invadem os recantos mais fundos de nós mesmos,
deixam sinais, às vezes cicatrizes em nosso caráter e talvez em nosso próprio
destino.
Era convicção de Nietzsche que "nos homens profundos, as
vivências duram longamente". Minha formação é um arquipélago dessas
experiências que a hermenêutica nos ensinou a chamar de vivências, termo hoje
pouco usado, mas que continua imprescindível quando se deseja falar de um
enlace de sentimento e memória. Em outras palavras, recordação do vivido.
Segundo a reconstrução da história do conceito de Erlebnis, feita por
Gadamer em Verdade e método, a palavra só entrou na linguagem filosófica a
partir da biografia de Schleiermacher escrita por Dilthey em 1870. Na acepção
de experiência vivida, a expressão denota algo que sobrevive em nós de modo
individual e persistente. Lembramos porque continuamos a experimentar a força e
a qualidade do sentimento que outrora traspassou uma dada situação e que a
memória não deixou cair. Pois esquecer é, etimologicamente, deixar cair o que
quer que seja para fora de nossa mente.
O termo enriqueceu-se com a análise diferencial que lhe deu Gundolf em
sua biografia de Goethe. Repare-se, de passagem, quanto o método de histórias
de vida contribuiu para a elaboração do conceito. A vivência pode coincidir com
uma emoção originária, irrepetível (Ur-Erlebnis), ou estender-se no tempo na
forma de uma rede de experiências familiares, culturais ou políticas: seriam
vivências de formação (Bildungerlebnisse).
Quando Joaquim Nabuco escreveu Minha formação, pouco antes de entrar
na quadra dos cinquenta anos de idade, permaneciam em sua memória tanto um
episódio dramático da sua infância como algumas figuras de intelectuais e
políticos do Segundo Reinado que concorreram para a construção da sua persona
de escritor e homem público.
"Massangana" é o título de um dos derradeiros capítulos de
Minha formação. Não me parece aleatória a sua posição no corpo do livro: fica
entre os capítulos "Eleição de deputado" e "A Abolição", ou
seja, entre memórias de 1878 e 1888, decênio que é o tempo forte da campanha
pela libertação dos escravos. Para narrar as horas decisivas do militante, o
memorialista precisou interromper o relato da luta política, descer ao poço das
recordações e de lá fazer subir à tona da escrita uma imagem submersa pelo
tempo. Não imagens soltas e erráticas, mas uma só, luminosa, coerente,
pregnante, como a chamaria a psicologia da Gestalt. Nem diz outra coisa a
abertura do capítulo: "O traço todo da vida é para muitos um desenho de
criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o
saber...".
Nessas palavras, que gerações de leitores têm guardado como relíquia
de família, estão juntas metáforas que nos são caras: "o traço todo da
vida" é a própria imagem do itinerário que a obra percorre fielmente; o
"desenho de criança esquecido pelo homem" diz a forma primeira de uma
experiência que o adulto relegou para fora do seu cotidiano feito de cuidados
do aqui e agora; mas é desenho "ao qual ele terá sempre que se cingir sem
o saber", porque, mesmo ocultado na sombra do inconsciente, servirá de
bússola na hora das grandes decisões.
Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de
minha formação, instintiva ou moral definitiva... Passei esse período inicial,
tão remoto, porém mais presente do que qualquer outro, em um engenho de
Pernambuco, minha província natal.
Sabemos que aqueles "últimos longes de minha vida" se
fizeram não só presentes por força da memória, como alimentaram com a seiva da
compaixão a obra do futuro abolicionista.
O quadro e a cena
Para reviver o espírito e a letra das reminiscências de Massangana,
será preciso escolher entre dois caminhos: ou partir da evocação da paisagem
natural e social do engenho e só depois deparar a cena do jovem escravo fugido
que tão doridamente feriu a sensibilidade da criança; ou, em sentido contrário,
trazer ao primeiro plano a lembrança daquele encontro do menino de engenho com
a face absurda do cativeiro para em seguida ir espraiando o olhar pelos verdes
canaviais "cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de
musgos e cipós sombreando de lado a lado o pequeno rio Ipojuca". E
contemplar no centro a casa grande erguida entre a senzala fronteira e a capela
consagrada a São Mateus.
Escolhi a primeira alternativa, que fica rente à perspectiva do texto.
A descrição precedeu a narração, mas não de modo linear e bem
concertado: a cena irromperá no quadro, abrupta, desconcertante.
A paisagem é imóvel e silente. Nesse pequeno domínio perdido na zona
do Cabo, que o memorialista descreve como "inteiramente fechado a qualquer
ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão", até a
natureza parece recolhida em si mesma. Sob a sombra impenetrável de árvores
solitárias, abrigavam-se grupos de gado sonolento. E a água do Ipojuca, que já
sabemos exígua, é "quase dormente sobre os seus largos bancos de
areia". Por esse riacho, lembra Nabuco, se embarcava o açúcar para o
Recife. Veja-se como o movimento em direção à sociedade, que tem tanto a ver
com a economia do Nordeste em pleno Segundo Reinado, deflui de uma água quase
parada. O que está dentro só pouco e lentamente se comunica com o que vai lá
fora.
Mas, se entre o engenho e o resto do mundo há descontinuidade de ritmo
vital, o mesmo não acontece entre as terras de Massangana e o mar. "Mais
longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré..." A visão
do mar contíguo ao engenho traz a mesma impressão de experiência originária,
indelével:
Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele,
tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se
levantou diante de mim, verde e transparente como o biombo de esmeralda, um dia
que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros,
me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra
líquida e movente...
Está esboçado o quadro, ilha e oásis, em uma linguagem que deriva dos
grandes paisagistas românticos, Bernardin de Saint-Pierre, o precursor de
todos, Chateaubriand e o nosso Alencar. Na recordação do engenho, o sentimento
fundamental é o de uma harmonia cósmica que tudo penetra e envolve:
Durante o dia, pelos grandes calores dormia-se a sesta, respirando o
aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O
declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se
em uma poeira de ouro; a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável
e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados majestoso e profundo. De
todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão
sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga.
Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto
o rangido longínquo dos grandes carros de bois...
Se o autor das páginas de Massangana se tivesse detido nessa
revivescência da paisagem, teríamos um Joaquim Nabuco evocador encantado da vida
nos pequenos engenhos do Cabo, poeta de um mundo cuja dissolução seria a
matéria narrativa de um José Lins do Rego e a fonte antropológica de um
Gilberto Freyre. Mas a memória do quadro cede, a certa altura, à irrupção da
cena:
Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa,
quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de
dezoito anos, o qual se abraça a meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o
fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças,
procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha
fugido com risco de vida...
A história entra, de repente, naquele pequeno mundo antigo que havia
pouco o memorialista nos mostrara encerrado em si mesmo fazendo um só corpo com
a natureza em ritmo de eterno retorno do mesmo. Não: a escravidão feria de
todos os lados o cerne mesmo da vida humana, e não seria possível refugiar-se
no aconchego materno de Massangana sem defrontar-se, mais cedo ou mais tarde, com
a sua cruenta realidade. Lendo os diários de Nabuco, escrupulosamente anotados
por Evaldo Cabral de Melo, ficamos sabendo que o nome antigo do engenho era
Massangano, topônimo de origem angolana (quem diz Angola, diz escravo), mas que
Nabuco acabou preferindo, com o tempo, a desinência feminina, Massangana. O
historiador atribuiu à argúcia de Lélia Coelho Frota, organizadora da edição
dos diários, uma decifração psicanalítica para a mudança de gênero: o engenho
era o regaço materno, e o menino, como tantos dos seus escravos fiéis, não
tinha pai, só mãe, melhor dizendo, mãe-madrinha. É testemunho de Nabuco:
"minha primeira Mãe, mãe-madrinha, Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, de
Massangano, a quem até a idade de 8 anos dei aquele nome, não conhecendo minha
Mãe". Sabe-se que os pais do recém-nascido Joaquim se mudaram de
Pernambuco para o Rio de Janeiro, quando Nabuco de Araújo foi eleito deputado
às Cortes, deixando-o com a madrinha durante quase toda a sua infância. Mas o
Massangano africano, talvez recalcado, repontaria na figura do escravo fugido
que procura abrigo no ventre de Massangana.
Voltando à narração, ouve-se o contracanto reflexivo do memorialista:
"Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição
com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela
ocultava". O que segue será talvez o documento mais representativo da
ambivalência que tem permeado a interpretação que a inteligência brasileira
procura dar à relação senhor-escravo tal como se constituiu entre nós.
De um lado, há a imagem do "paraíso perdido". Sob o governo
benfazejo da madrinha, matriarca dadivosa a quem os escravos dedicavam um afeto
devoto, Massangana pôde ser o lugar de refúgio do escravo maltratado pelo
senhor de um algum engenho das redondezas. Nabuco visivelmente sublima os
sentimentos de gratidão e veneração que lhe parecem próprios da maioria dos
africanos trazidos ao Brasil. Eles teriam uma capacidade de sacrifício que os
isentaria de ódios e vinganças. As desforras sangrentas seriam raríssimas e
provocadas pela ferocidade de alguns senhores e feitores que tinham
interiorizado tão só o caráter perverso do sistema. Não por acaso, o jovem
negro suplicava ao menino Joaquim que o fizesse comprar por sua madrinha, ou
seja, que ele pudesse mudar de senhor.
Mas há o outro lado. Massangana é apenas uma ilha, um oásis, imagens
que implicam a existência de um outro mundo que se estende além de seus
confins. Esse mundo hostil, de onde escapou o jovem escravo, precisava mudar. E
mudar com urgência. Não podemos esquecer que o episódio se terá dado nos meados
da década de 1850, quando apenas a lei da extinção do tráfico fora decretada,
devendo-se ainda esperar quase vinte anos para que se travasse a batalha em
torno do projeto Rio Branco, de que resultaria a Lei do Ventre Livre.
É necessário comparar os dois discursos de Nabuco: o que se encontra
em algumas passagens de Massangana, e chega à expressão-limite, "saudade
do escravo" ("uma singular nostalgia, que muito espantaria um
Garrison ou um John Brown"), e o que condena abertamente a instituição e
representa o núcleo ético de toda a sua campanha abolicionista sustentada até a
decretação da Lei Áurea. Serão discursos contraditórios em termos absolutos?
Diria que são distintos, e que cabe a nós o ônus da interpretação.
O escravo afigura-se ao Nabuco memorialista tão sublime quanto
perversa é a instituição do cativeiro. Abolida a escravidão, o sistema
felizmente estaria extinto, mas com ele também desapareceria a figura humana
verdadeiramente nobre do servo incapaz de odiar o senhor. Suspenda-se
provisoriamente, nessa altura, o juízo progressista e democrático, que decerto
não toleraria racionalizações ideológicas que lembrem os mitos sacrificiais
recriados por Alencar nas figuras de servidão voluntária de Peri, Iracema e da
mãe-negra do dramaMãe. O que levou Nabuco à idealização do engenho da infância
terá sido o clima de benevolência propiciado pela personalidade da madrinha: o
sentimento grato de filiação, ele o estendeu da sua própria condição de menino
apartado do pai e da mãe a todos os escravos de Massangana. Esses, segundo o
testemunho do memorialista, choraram amargamente a morte de Dona Ana Rosa,
sentiram-se órfãos e viram com terror a chegada dos novos proprietários. É
significativa essa oposição recorrente entre Massangana e os demais lugares
onde vigorava o mesmo regime escravista. Se Nabuco tivesse levado às últimas
consequências esse antagonismo, o engenho da infância lhe apareceria apenas
como exceção, talvez única, impedindo que o seu discurso resvalasse para
temerárias generalizações. A passagem, às vezes imperceptível, do caso singular
à regra geral é, como se sabe, um dos riscos a que não escaparia nem mesmo um
observador social acutíssimo do porte de Gilberto Freyre.
De todo modo, é a práxis sustentada coerentemente que, em última
análise, importa para avaliar a somatória de todos os atos que configura o
caráter de um homem. Por isso, deve-se considerar o projeto que resultou da
experiência vital de Nabuco junto aos escravos de Massangana. Doze anos depois
da morte de Dona Ana Rosa, o jovem de vinte anos voltou à capela de São Mateus
onde jazia a madrinha na parede ao lado do altar, "e pela pequena
sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos...
Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas
urtigas, era tudo quase que restava da opulentafábrica, como se chamava o
quadro da escravatura...". O engenho vendido se transformara em usina. Da
casa velha não restara vestígio. "O trabalho livre" - observa o
memorialista - "tinha tomado o lugar em grande parte do trabalho
escravo". Debaixo dos seus pés estavam os ossos dos negros velhos que o
tinham amado na infância. Como na cena do escravo abraçado a seus pés, Nabuco
vive então um novo momento revelador: "Foi assim que o problema moral da
escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita
e com a sua solução obrigatória".
Mas a revelação da iniquidade duraria apenas o tempo breve de uma
epifania se não tivesse desencadeado no jovem Nabuco a certeza de uma decisão
sem retorno. Diante daqueles túmulos abandonados, mas sagrados, ali mesmo, aos
vinte anos, formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado,
ao serviço da raça generosa entre todas que a desigualdade da sua condição
enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava até
mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de bondade...
Nabuco poderia ter antecipado a frase que seria o lema do Mahatma
Gandhi: "Eu amo a beleza do compromisso".
Da experiência vital ao primeiro passo da carreira do abolicionista
Pouco tempo decorreu para que o estudante de Direito no Recife tivesse
ocasião de cumprir o seu voto solene. Um escravo de nome Tomás matara uma
autoridade que mandara açoitá-lo em praça pública; preso e condenado, dera um
golpe mortal no guarda que lhe impedira a fuga. Julgado como réu de dois
crimes, quem o defendeu foi o nosso quintanista de Direito. A causa estava de
antemão perdida, mas para Nabuco era o primeiro banco de prova do juramento
feito sobre os ossos dos escravos de Massangana.
Para elaborar a defesa, o estreante nas lides do fórum escreveu um
libelo a que deu o título de A escravidão. O texto ficou desconhecido até que,
em 1924, a viúva do autor, Evelina Nabuco, o entregou ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, que só viria a publicá-lo em sua revista em 1951. Não se
conhecem as razões do ineditismo dessa obra juvenil. Em Minha formação, ele
traça a memória daqueles anos fecundos que precederam a elaboração da Lei do
Ventre Livre, destacando o trabalho jurídico do pai, o senador Nabuco de
Araújo, e os seus contatos com a Anti-Slavery Society, cujas publicações
traduzia e dariam munição para os discursos abolicionistas. Mas não se detém na
história do texto de A escravidão. No entanto, essas já traziam argumentação
cerrada contra o instituto do cativeiro. Nabuco mostra-se conhecedor da
história da escravidão desde a Antiguidade, e é notável a riqueza de dados
sobre o tráfico ilícito que apresenta, provavelmente extraídos do livro que ele
chamaria mais tarde "o grande manancial", A escravidão no Brasil, de
Perdigão Malheiro. A obra, recém-publicada, já era conhecida entre os membros
do Instituto dos Advogados, a que pertencia o senador Nabuco de Araújo.
O libelo mereceria análise minuciosa que não cabe nos limites desta
exposição. Há nele um ímpeto juvenil que nos comove até hoje. O cerne do
discurso é ousado: se há um crime a ser punido antes de se condenar o escravo
Tomás, esse crime é a própria escravidão. A ideia do cativeiro como fenômeno
social total que degradava o Brasil e todas as sociedades escravistas seria
retomada por Nabuco no seu escrito maior, O abolicionismo, em discursos que
pronunciou na Câmara e em comícios eleitorais. A defesa do réu converte-se
desde o princípio em ataque, o que é sabidamente a melhor das estratégias. Tão
admirável como esse acorde inicial me parece a engenhosidade com que o nosso
fogoso estudante soube inverter o principal argumento dos defensores da
escravidão, o direito absoluto da propriedade, sancionado na Carta de 1824, que
repetia, por sua vez, o Código napoleônico. A decisão de libertar os escravos
nas colônias francesas fora tomada pela Convenção revolucionária em 1794, mas
Napoleão a revogou em 1802, e, novamente legalizada, a propriedade do homem
pelo homem se manteria até que a revolução de 1848 decretasse a abolição
definitiva. O liberalismo no Brasil não ficou muito a dever ao liberalismo
europeu. Cá e lá...
O que faz o defensor do escravo Tomás? Considerando, de plano, a
escravidão um crime, Nabuco o qualifica em termos de delito de dupla violação
contra o direito de propriedade: ao escravo tinham sido ilegitimamente
subtraídos o direito de dispor do próprio corpo, alienado ao senhor, e o
direito à vida, por força da pena de morte assinada no seu primeiro julgamento.
"Assim", propõe Nabuco, "veremos como a escravidão ataca o
direito da propriedade". A transgressão desse direito sagrado já havia
começado com um crime: o tráfico negreiro contemporâneo da descoberta e dos
três séculos de colonização. O tráfico acabara, mas seus efeitos perversos
perduravam. Nabuco cita as palavras de um de seus poetas diletos, Lamartine:
"Feliz o dia em que a legislação vir banidos diante da luz divina esses
dois grandes escândalos da razão do século dezenove: a escravidão e a pena de
morte".
De particular interesse para compreender as precoces manifestações
contraideológicas de Nabuco são as páginas dedicadas ao quilombo dos Palmares.
As fontes então disponíveis eram parcas: a rigor, só a História da América
portuguesa de Rocha Pita na edição de 1730 citada pelo nosso historiador
amador. Entende-se por que ele fale de uma "lenda pernambucana", o
que não o impede de narrar os fatos com a precisão de nomes, lugares e datas. E
não só: proferindo juízo sobre o valor dos quilombolas e destacando Zumbi e
seus guerreiros, realça seu caráter heroico, que sustenta contra "os
historiadores que caluniaram" aquela tentativa desesperada de viver livre
em terra de escravidão. Para destruir Palmares, foi necessária a aliança dos
maiores poderes da colônia: os portugueses assoldados pelo vice-rei João de
Lancastro e os bandeirantes comandados por Domingos Jorge Velho. Uma composição
similar de forças arrasaria a ferro e fogo, meio século depois, as missões dos
Sete Povos.
Memória individual e história social
Recorrendo ao termo "vivência", lembrei a sua dupla
dimensão: experiência de um momento decisivo e experiência de uma rede de
encontros alongada no espaço e no tempo. A pura memória, no sentido bergsoniano
de irrupção súbita de uma cena que parecia calada no silêncio do inconsciente,
pode determinar uma percepção nova da realidade e aquecer por algum tempo nossa
imaginação e nosso desejo: o episódio de Massangana e a volta do jovem Nabuco
ao engenho terão sido responsáveis pela sua promessa de dedicar a vida à
libertação dos escravos.
De outra qualidade é a reconstrução que o memorialista faz de seu
itinerário de homem público: aqui vemos os andaimes da persona, o trabalho das
ideias, a modelagem das convicções morais e doutrinárias; numa palavra, a
formação do indivíduo que pertence ao tempo, a memória que se faz história.
A biografia cultural e política de Joaquim Nabuco poderia ser figurada
co-mo uma constelação. São pessoas e lugares que ele foi encontrando em tempos
diversos, e que a mente aberta e o coração generoso foram trazendo para o seu
convívio como quem traça em torno de si um círculo familiar. Minha formação é
obra que poderá desnortear pela riqueza de personagens e situações evocadas,
mas que se lê como uma melodia única, porque única é a voz que a modula e único
o seu timbre puro, claro, sem deixar de ser cálido e afetuoso.
O pai
Quem leu Um estadista do Império não precisará de nenhuma outra prova
da influência duradoura que a figura paterna exerceu sobre a formação moral e
política de Joaquim Nabuco. No livro das memórias, o 18º capítulo abre-se com
este testemunho solene:
Por onde quer, entretanto, que eu andasse e quaisquer que fossem as
influências de país, sociedade, arte, autores, exercida sobre mim, eu fui
sempre inteiramente trabalhado por outra ação mais poderosa, que apesar, em
certo sentido, de estranha, parecia operar sobre mim de dentro, do fundo
hereditário, e por meio dos melhores impulsos do coração. Essa influência,
sempre presente por mais longe que eu me achasse dela, domina e modifica todas
as outras que invariavelmente lhe ficam subordinadas. É aqui o momento de falar
dela, porque não foi uma influência propriamente da infância nem do primeiro
verdor da mocidade, mas do crescimento e amadurecimento do espírito, e
destinada a aumentar cada vez mais com o tempo e a não atingir todo o seu
desenvolvimento senão quando póstuma. Essa influência foi a que exerceu meu
pai...
Deixo aos psicanalistas a tarefa de desatar o nó existencial:
influência em certo sentido estranha, mas que parecia operar de dentro do fundo
hereditário; influência que tudo domina mesmo a distância; mas que não se
manifestou nem na infância (o menino Nabuco viu o pai pela primeira vez aos
oito anos de idade), nem na primeira juventude, e que só atingiu seu ápice
depois da morte do pai... Estranha, tardia, longínqua, póstuma, e no entanto
poderosa herança transmitida pelo sangue, crescente com a idade, e afinal só
onipresente na hora da orfandade.
Ao estudioso de ideias e valores o que fica dessa memória reverencial
é o roteiro político e a sabedoria do jurista e conselheiro do Império. No primeiro
capítulo de Minha formação, a ênfase recai na sua passagem do campo conservador
para o liberal efetuada nos meados da década de 1860. A história dessa mudança
partidária foi contada com minúcia ao longo de Um estadista do Império,
levantamento exaustivo de dados em que o historiador Joaquim Nabuco recorre a
milhares de apontamentos do pai e a testemunhos de contemporâneos (ora
favoráveis, ora críticos), verdadeira memória de segundo grau, que muitas vezes
é a matéria-prima da historiografia.
Talvez caiba uma breve digressão sobre as convicções políticas de
Nabuco de Araújo, pois o quadro interessa também à formação doutrinária do seu
filho e biógrafo.
Para desbastar o terreno, parece-me necessário fazer uma distinção
entre dois liberalismos, válida não só para o Brasil Império, como para grande
parte do Ocidente ao longo do século XIX. Conhece-se o liberalismo conservador,
que se codificou sob o império de Napoleão, adensou-se nos anos da Restauração
e afinou-se sob o reinado burguês de Louis-Philippe. Entre seus maiores
ideólogos figuravam Benjamin Constant e Guizot, seguidos de perto pelos
políticos brasileiros que adotaram em plena Regência a bandeira do chamado
Regressismo. É uma ideologia proprietista, excludente, escorada no voto
censitário, sempre defensiva em relação aos ideais da Revolução Francesa.
Predominou até a Revolução de 48.
As ressonâncias desse movimento rebelde alcançariam toda a Europa e
chegariam, com algum atraso, também entre nós. Nos anos 1860 desponta um novo
liberalismo, de feição democrática e já capaz de contestar a política
escravista ainda hegemônica. Do primeiro liberalismo, monárquico e inteiramente
subordinado aos princípios de autoridade e hierarquia, Nabuco de Araújo foi
adepto, como juiz severo dos líderes da Revolução Praieira e parlamentar
influente do partido conservador, até o momento em que se desvincularia para
sempre dos corifeus da oligarquia saquarema. Ao hipotecar apoio à política de
conciliação do ministério Paraná e à corrente dos Progressistas, ele de algum
modo se aproximava do Partido Liberal que ganharia consistência ideológica ao
longo da crise política de 1868. O jovem Nabuco, que vimos em 1870 defender o
negro Tomás perante uma sociedade dominada por senhores de engenho, se
reconhece nesse segundo liberalismo a que o pai aportara precisamente naqueles
anos decisivos em que despontava o abolicionista.
A escrita de Minha formação remete-nos aos capítulos de Um estadista
do Império, em que o filho mostra o pai empenhando-se em dar formulação
jurídica às propostas pioneiras de libertação dos nascituros que resultariam no
projeto Rio Branco. Sem subestimar o trabalho de erudição e discernimento que
revelam os textos do senador Nabuco de Araújo (aproveitados no projeto do
Conselho de Estado por ele redigido em 1868), não podemos deixar de compará-los
com as páginas contemporâneas do libelo A escravidão ditadas pelo estreante no
fórum Joaquim Nabuco. Essa veemente defesa só foi de raspão mencionada em Minha
formação, e seu título não consta nem mesmo na bibliografia do autor listada na
cuidadosa edição da Aguilar de Um estadista do Império, que é de 1975. Mas, à
primeira leitura, saltam à vista o longo alcance e a radicalidade do libelo do
jovem Nabuco e, na outra ponta, a constante moderação do provecto conselheiro.
A escravidão dá à instituição do cativeiro o seu verdadeiro nome de
crime. Mas o projeto de emancipação dos nascituros, conservando como escravos
pai e mãe, todas as crianças e todos os adultos nascidos antes da promulgação
da lei, mantinha intacta a legalidade da instituição.
O jovem Nabuco contesta o direito de propriedade do homem pelo homem;
o texto do projeto do Conselho de Estado, ao contrário, o reconhece, na medida
em que propõe formas de indenizar o proprietário, obrigando os libertos a trabalhar
gratuitamente para seus ex-senhores até a idade de vinte anos. A Lei Rio Branco
iria além: ofereceria ao proprietário a alternativa de receber 600 mil réis
como ressarcimento pelos gastos despendidos na criação do ingênuo. Trata-se de
procedimentos imitados de leis similares promulgadas na Inglaterra, na França e
em Portugal. Cá e lá...
Cumpre retomar a distinção entre vivências únicas, irrepetíveis e
experiências cumulativas. As primeiras são raios que iluminam de repente a alma
dos que as experimentam: assim foi o episódio do jovem abraçado aos pés do
menino pedindo-lhe a proteção da madrinha, assim foi a visão dos jazigos rasos
sobre os ossos dos velhos escravos na capela de São Mateus. Aí percebemos os
momentos em que tudo muda, e muda para sempre, aí está o germe da radicalidade
do futuro líder da causa. Quanto às outras, de fundo cultural e político, agem
lentamente, vão sedimentando no espírito de quem as introjeta aqueles valores
que nortearão a sua palavra e ação. É esse o caso do filho que contempla a
longa carreira ascensional do pai, conselheiro aberto à filantropia da
Anti-Slavery Society e aos políticos liberais da Europa que pelejaram pela
extinção do tráfico e, em seguida, pela abolição do cativeiro.
Centrando na figura do Conselheiro a sua própria formação de homem
público, Nabuco não esquece a constelação dos políticos que, nos anos de sua
juventude, davam o tom ao liberalismo democrático:
Em casa eu via muito a Tavares Bastos, que me mostrava simpatia, todo
o grupo político da época; era para mim estudante um desvanecimento descer e
subir a rua do Ouvidor de braço com Teófilo Otoni; um prazer ir conversar no
Diário do Rio com Saldanha Marinho e ouvir Quintino Bocaiúva, que me parecia o
jovem Hércules da imprensa, e cujo ataque contra Montezuma, a propósito da
capitulação de Uruguaiana, me deu a primeira idéia de um polemista destemido.
Quem conhece a biografia do jovem Machado de Assis reconhece as
figuras principais dessa constelação que o ajudou em seus primeiros anos de
jornalismo. Aqui o interesse está em mostrar a afinidade do grupo com a posição
do conselheiro Nabuco de Araújo na sua passagem para o novo liberalismo.
O instante singular da emoção tinha sido o motor que tudo aquecera e
transformara, mas foram os anos de sociabilidade política e reflexão que não o
deixaram arrefecer.
Leituras
Joaquim Nabuco foi desde a adolescência um leitor apaixonado. As
menções a livros e autores disseminadas emMinha formação podem, à primeira
vista, desorientar tal a variedade e o ecletismo das referências. Mas um exame
atento acaba encontrando duas fontes recorrentes de suas escolhas: a literatura
francesa ainda romântica ou já penetrada por veios realistas e os escritos
políticos ingleses da primeira metade do século XIX. As culturas francesa e
inglesa serão o pão cotidiano de Nabuco ao longo de toda a vida. Sabe-se quanto
ele dominava as respectivas línguas, tendo escrito diretamente em francês desde
a primeira juventude como o atestam o drama L'option, redigido pouco depois da
derrota da França e, na maturidade, as suas máximas morais e religiosas, Pensées
détachées, que levaram um crítico respeitável, Émile Faguet, a supor que o nome
de Joaquim Nabuco fosse o pseudônimo de algum escritor francês encapuzado... Em
inglês, aperfeiçoado durante as estadas em Londres, proferiu conferências
literárias e políticas em várias universidades norte-americanas na qualidade de
nosso primeiro embaixador em Washington. A sua leitura do canto 9º de Os
lusíadas acompanhada de versões das oitavas camonianas é exemplo dessa mestria.
Mas o que interessa ao intérprete da cultura é saber o que tocou fundo
o leitor Nabuco a ponto de manter-se vivo no seu livro de memórias. Creio que
só fica o que significa. O romantismo francês deu-lhe o gosto do lirismo
harmonioso de Lamartine, a magia da prosa de Chateaubriand (que se pode reconhecer
em suas encantadas descrições da natureza da ilha de Paquetá), mas
principalmente o élan de uma religiosidade ardente, pessoal, que na juventude
beirava a heterodoxia de Lamenais: as Palavras de um crente foram um de seus
livros de cabeceira. E havia também o Victor Hugo rebelde e Edgard Quinet,
autor hoje esquecido de um poema trágico sobre o judeu errante, o Ahasverus,
súmula de uma teologia da libertação avant la lettre. O orador arrebatado da
campanha abolicionista guardou o calor dessa herança romântica. E me arriscaria
a dizer que nem mesmo a influência confessa de Renan, com seu irônico
ceticismo, logrou apagar do coração de Nabuco a chama do sentimento religioso
que os últimos anos de vida iriam avivar com tanta intensidade.
Em compassado contraponto, veio-lhe da leitura dos publicistas
ingleses a convicção inabalável do seu liberalismo parlamentar e monárquico. É
possível que Nabuco haja idealizado os traços de um caráter nacional inglês em
estado puro e refratário a influências externas. Para entender essa
perspectiva, nada melhor do que ler a passagem sobre "o espírito
inglês", que está no centro de Minha formação. O seu primeiro mestre de
História no Colégio Pedro II, o barão de Tautphoeus, a quem dedicou páginas de
veneração, já lhe ensinara que a singularidade inglesa e o distanciamento das
modas continentais não seriam defeito de isolacionismo, mas prova de solidez e
vitalidade das próprias tradições.
A espinha dorsal do parlamentarismo monárquico de Nabuco ele a retirou
de um manual de direito, A Constituição Inglesa, de Bagehot. Há um capítulo de
Minha formação que se intitula precisamente "Bagehot". Não tenho
competência jurídica para apreciar quer o livro, quer a viabilidade da sua
aplicação ao nosso sistema político. Talvez deva louvar-me na opinião de um
mestre, Afonso Arinos de Melo Franco, que, no prefácio a Um estadista do
Império, qualifica de "inteiramente irrealista" a fé nunca desmentida
de Nabuco "nas possibilidades de adaptação, no Brasil, da Monarquia parlamentar
inglesa". E inclino-me a endossar a tese de Afonso Arinos segundo a qual
Minha formação e Um estadista do Império seriam não só biografias do próprio
autor e de seu pai, mas monumentos erigidos ao Império que o golpe republicano
derribara sem piedade. Se assim é, a República, afastando Nabuco da vida
pública, o teria involuntariamente estimulado a voltar-se saudoso para o regime
destituído. A ironia da história não para aí: lendo Um estadista do Império, o
presidente Campos Sales tomou-se de tanta admiração pelo autor que resolveu
convidá-lo para reintegrar-se no corpo diplomático e defender o Brasil na
questão dos limites com a Guiana Inglesa. Assim, o livro que lhe ditaram os
anos de ostracismo foi o mesmo que lhe abriu caminho para servir o novo
regime... Que a história seja sempre e de algum modo contemporânea do
historiador, é tese de Benedetto Croce cujo acerto não me canso de constatar.
Das viagens à luta: "outra provisão de sol interior"
Virou lugar-comum falar do cosmopolitismo de Nabuco e insinuar que ele
teria sido um exilado em sua própria terra, na esteira de uma frase antológica
(a meu ver discutível) de Sérgio Buarque de Holanda que acreditou interpretar o
que seria o desenraizamento dos intelectuais brasileiros. Que Nabuco tenha
viajado longamente pela Europa e pelos Estados Unidos antes e depois do momento
crucial da campanha abolicionista é fato sabido, e Minha formação narra por
miúdo o encantamento que sentiu em cidades inesquecíveis como Paris, Londres,
Florença, Roma, Nova York. Mas para relativizar a impressão de inquieto
cosmopolitismo do viajante Nabuco, nada como ler as reflexões que se encontram
na passagem "Atração do mundo". A matéria é a sede de conhecimento
que se apoderou do jovem mal entrado na quadra dos vinte anos. Para tudo
resumir, ele faz uma distinção drástica mas inspirada: "O sentimento em
nós é brasileiro, a imaginação européia". O contexto explica: trata-se da
própria formação cultural que o brasileiro (e não só o brasileiro) recebia no
século XIX e, em parte, deveras reduzida, recebe ainda hoje. A Europa era a
matriz universalizante de toda a história da civilização que chegava até nós
mediante figuras inesquecíveis. Imagens que, desde a Antiguidade greco-romana
até a Revolução Francesa, para não ir mais adiante, se converteram em ícones da
própria humanidade. Mas o Brasil era a pátria, as ligações afetivas com a
família, os amigos, os mestres, os escravos, os senhores, a luta, o povo. O seu
chamado acaba sendo o mais forte, definitivo. Dizendo-se um
"errático" na mocidade, o memorialista conclui:
Quando, porém, entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo, que é o
pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita forma em que estava a
cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos d'almas, Ustedes me entienden,
deixei ir a Europa, a história, a arte, guardando do que é universal só a
religião e as letras.
Chamo a atenção para o enraizamento político de Nabuco, eminentemente
brasileiro. Não se trata de nacionalismo retórico, ao qual ele sempre foi
infenso. Trata-se de um empenho sem tréguas pela libertação do escravo e ao
mesmo tempo pela elevação do nível do homem pobre do campo e da cidade. Já está
mais do que na hora de relegar a certo pseudojornalismo leviano fantasiado de
historiografia a exploração da imagem do Joaquim Nabuco dandy, Quincas o belo,
exibindo-se nos salões da aristocracia europeia e da elite americana. O
estereótipo fútil arrisca-se a ocultar a complexidade da pessoa. Nos últimos
anos de vida como embaixador, agravado por mais de uma enfermidade, e vivendo
profundamente a sua conversão religiosa, as exigências da vida social
pesavam-lhe como fardo quase insuportável: estão aí os diários que nos fazem
ouvir a sua voz combalida, embora publicamente animosa, como sentia ser de seu
dever sustentá-la. O diplomata não pode deixar de representar, é o seu ofício,
mas quantas vezes custa-lhe cumprir o ritual da noblesse oblige! Leio uma
anotação pungente datada de Washington, 23 de novembro de 1906: "Arrumando
papéis. Tive uma pequena náusea depois do café. Não pude almoçar e por isso
senti-me fraco à tardinha. I am quite a tottering house. Sou como uma casa que
vacila".
Mas voltemos às memórias. A evocação de Massangana fica entre os
capítulos "Eleição de deputado" e "A Abolição". O
sentimento de raiz penetra ambos os momentos do combate político como fluido
subterrâneo que ainda vai emergir para propiciar a mais bela florada. Na década
de 1870 Nabuco viajara pela Europa e América do Norte, com regressos
intermitentes ao Brasil, e ele próprio entende esses anos como os de um amador
curioso, enfeixando-os com a pitoresca expressão "fase de lazzaronismo
intelectual". Mas, morto o pai em março de 1878, Nabuco se lança à
política partidária: candidata-se ao Parlamento e é eleito em Pernambuco graças
ao prestígio do nome do velho senador.
eu tinha necessidade de outra provisão de sol interior; era-me
preciso, não mais o diletantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo,
palpitante, absorvente, no destino e na condição alheia, na sorte dos
infelizes; [...]. Era preciso que o interesse fosse humano, universal; que a
obra tivesse o caráter de finalidade, a certeza, a inerrância do absoluto, do
divino como têm as grandes redenções, as revoluções da caridade e da justiça,
as auroras da verdade e da consciência sobre o mundo. No Brasil havia ainda no
ano em que comecei minha vida pública um interesse daquela ordem, com todo esse
poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, igualmente impulsivo e
ilimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de criaturas isoladas, quer
do caráter da nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação, e por
felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse,
a compaixão, o sentimento pelo escravo - bulbo que devia dar a única flor da
minha carreira... [...] Como eu disse porém, há pouco, eu trazia da infância o
interesse pelo escravo...
Creio que Habermas teria prazer de conhecer esse texto, em que a
palavra "interesse" aparece tantas vezes resgatada, sempre portadora
de uma dupla dimensão, de idealismo ético e realismo político. O interesse leva
ao conhecimento, e o conhecimento compele à ação. Nabuco será, na sua primeira
experiência parlamentar, a voz que reabre a questão da liberdade dos escravos,
tema candente que ficara quase silenciado desde a promulgação da Lei dos
nascituros.
"Massangana" antecede o capítulo sobre a abolição,
verdadeiro balanço do que foi o movimento e preito de homenagem a seus
responsáveis diretos. Começa lembrando a situação que o estreante no Parlamento
se propôs enfrentar:
Quando a campanha da abolição foi iniciada, restavam quase dois
milhões de escravos, enquanto que os seus filhos de menos de oito anos e todos
os que viessem a nascer, apesar de ingênuos, estavam sujeitos até aos vinte e
um anos a um regime praticamente igual ao cativeiro. Foi esse imenso bloco que
atacamos em 1879, acreditando gastar a nossa vida sem chegar a entalhá-lo. No
fim de dez anos não restava dele senão o pó.
Dois milhões de escravos, o tráfico interprovincial ainda em ação
trazendo para Minas, São Paulo e Rio cativos do Nordeste, e o café sustentando
grande parte de nossa economia de exportação! Que desafio para a retomada do
ideal abolicionista que estivera entorpecido desde a Lei de 1871!
Ao fazer o retrospecto das razões do movimento Nabuco contempla de
modo generoso, diria mesmo otimista, fatores ligados ao contexto: a abolição
corresponderia ao espírito da época e ao progresso moral que a humanidade
estaria vivendo naquele último quartel do século XIX. Ao lado desse crédito ao
evolucionismo dominante, ele volta a exaltar a "doçura do caráter
nacional" para a qual teria contribuído a bondade do africano. A esses
traços atribui também a diferença das situações no Brasil e nos Estados Unidos.
Os criadores do Kentucky e os plantadores da Lousiania linchavam os
abolicionistas enquanto entre nós não poucos fazendeiros começavam a alforriar
aos centos os seus escravos. Algum impertinente poderia perguntar por que tanta
doçura e liberalidade tardou tantos e tantos anos para manifestar-se.
Em seguida, testemunha do movimento, enumera "cinco ações ou
concursos diferentes que cooperaram para o resultado final". Resumindo:
• o papel dos intelectuais, parlamentares, jornalistas, professores,
em suma, dos formadores de opinião;
• o trabalho ousado dos militantes que favoreciam as evasões e defesas
dos escravos;
• a atitude de alguns proprietários que libertavam os seus
trabalhadores compulsórios;
• a ação política de estadistas que negociavam as concessões do
governo;
• enfim, a vontade do Imperador e de sua família.
Nossa historiografia tem feito reparos a esse balanço. De minha parte,
não sendo historiador, diria que nem sempre as críticas me parecem procedentes.
A principal e mais grave diz respeito a um pecado de omissão: faltaria ao
elenco das forças que concorreram para o 13 de maio a menção ao movimento dos
próprios escravos, as suas fugas e revoltas tão amiudadas na década de 1880.
Nabuco defende-se antecipadamente da acrimônia dos seus juízes póstumos
reivindicando para a ação parlamentar não só a prioridade na consecução da
luta, como também o seu locus mais adequado. Incitar os escravos à aberta
rebeldia contra os senhores sempre lhe pareceu uma conduta irresponsável, se
não covarde. Feita longe da Câmara, dos jornais, dos clubes e das escolas, a
campanha se converteria em "um encontro de facções", "uma guerra
de raças", na qual o lado mais fraco seria esmagado implacavelmente. O
Nabuco liberal-democrata acreditava firmemente no princípio da representação
política. Os escravos deveriam ser representados pelos abolicionistas, desde um
parlamentar como ele ou José Mariano até um rábula audaz e insubornável como
Luís Gama, um jornalista fogoso como Patrocínio, um estadista clarividente como
Dantas, um apóstolo de todas as horas como André Rebouças. Nesse ponto, aliás
fundamental, parece-me que o líder abolicionista agiu de modo coerente seguindo
a própria consciência. O que evidentemente não deve deter o trabalho de
pesquisa histórica em torno do movimento dos próprios escravos. As fugas, as
rebeliões nas senzalas e a multiplicação dos quilombos pesaram na desagregação
do sistema de trabalho ainda vigente na economia cafeeira. O quanto o fizeram é
questão aberta.
Mas para tudo dizer sem rebuços fetichistas, confesso que me
decepciona um tantinho o imerecido reconhecimento que Nabuco dá a alguns
políticos da undécima, talvez 25ª hora. Conservadores com senso da
oportunidade, homens como o conselheiro Antônio Prado e João Alfredo talvez não
devessem figurar nas menções honrosas que Nabuco prodigamente lhes dá ao nomear
alguns políticos que contribuíram tardiamente para o êxito do movimento. O
conselheiro Prado votara contra a Lei do Ventre Livre e, conforme denúncia de
Patrocínio, quis, quando ministro da Agricultura, restaurar burocraticamente a
matrícula dos escravos em províncias que já os haviam libertado, como o
Amazonas e o Ceará. Como outros políticos ligados à oligarquia do café, o seu
objetivo maior era obter o apoio do governo para financiar a imigração
europeia, daí o interesse pela abolição manifestado às vésperas da Lei Áurea.
De todo modo, não se vislumbra no Nabuco memorialista sombra alguma de
ressentimento ou parcialidade partidária. Caso ele se tenha equivocado no
julgamento, foi por excesso de benevolência, o que me parece sempre melhor do
que o excesso contrário. E, sem endeusá-lo, prefiro reiterar aqui meu
testemunho de admiração. E dizer como um historiador marxista insuspeito, Luiz
Felipe Alencastro: "Que saudades dos abolicionistas!".
Modernização conservadora ou reformismo democrático?
O rótulo modernização conservadora, concebido pela historiografia de
esquerda, tem sido adotado para qualificar algumas iniciativas dos governos
imperial e republicano. Trata-se, em geral, de propostas de reforma que não
alteraram o equilíbrio de forças em uma sociedade marcada por evidentes
assimetrias econômicas e políticas. Exemplo arquicitado é a reforma eleitoral
conhecida por Lei Saraiva que, instituindo a eleição direta, mas excluindo o
voto do analfabeto, reduziu drasticamente o corpo eleitoral do Império. O que
se modernizou, por um lado, retardou-se por outro, impedindo a democratização
efetiva do processo político da nação. Exemplo menos típico, diremos
ambivalente, é a Lei do Ventre Livre: "passo de gigante", nas
palavras de Joaquim Nabuco, acabou, segundo a avaliação dele próprio, virando
bandeira dos escravistas mais renitentes que se opunham a qualquer alargamento
do seu âmbito, chegando ao extremo quase inverossímil de vetar a proposta da
libertação dos sexagenários em 1884. Aplicação controvertida da mesma fórmula é
a que se poderia fazer em relação ao regime republicano: instaurado por um
movimento militar jacobino, foi largamente usufruído pela oligarquia cafeeira
ao longo da República Velha.
Essa ingrata combinação de progressismo e conservadorismo tem sido
atribuída à práxis política brasileira ou, mais amplamente,
"periférica", a meu ver com certo grau de miopia histórica. É preciso
enxergar de perto e de longe. As violentas regressões ideológicas verificadas
na Europa burguesa nos anos nazi-fascistas e o longo calvário do negro
americano após a abolição nos instruem a respeito do lado sinistro da história
do capitalismo moderno. Mutatis mutandis, o que aconteceu na União Soviética
sob Stalin e na China maoista, Estados em que revoluções de amplo espectro
popular e progressista involuíram para burocracias sanguinárias, tampouco nos
deixa margem para crer cegamente nas potencialidades democráticas das soluções
violentamente estatistas.
Voltando ao Brasil, o que chamamos, às vezes de modo indiferenciado,
"revolução burguesa" abriga contradições recorrentes que não devem
ser interpretadas apenas em termos estritamente nacionais.
A luta abolicionista de Joaquim Nabuco faz parte do processo de
modernização que se seguiu ao fim do tráfico negreiro em 1850. Essa proposição
geral deve ser dialetizada. A extinção do cativeiro entre nós demorou quatro
décadas para ser efetivada. Nas colônias inglesas e francesas e nos Estados
Unidos, também decorreu um lapso de tempo entre a proibição do tráfico e a
libertação definitiva: cerca de trinta anos na Inglaterra (1807-1838) e
quarenta na França (1807-1848); no caso das metrópoles, os governos pagaram
indenização aos proprietários de escravos. A tentação é criar um novo conceito,
que valeria para o Ocidente: modernização retardada. Allegro ma non troppo,
antes adagio adagio.
Essa pesada lentidão, essa inércia das estruturas (para valer-me de
uma expressão de Lévi-Strauss) indignava Nabuco, e já vimos que o seu ímpeto
libertário vinha da primeira juventude, da defesa do negro Tomás redigida um
ano antes da Lei do Ventre Livre. A correspondência com os abolicionistas
ingleses, há pouco exemplarmente editada por José Murilo de Carvalho e Leslie
Bethell, as páginas de O abolicionismo e as campanhas eleitorais no Recife
formam elos de uma corrente de ideias e valores cujo alvo é a instituição vista
em termos de fenômeno social total. Aqui está o coração do nosso tema:
modernização, sim, mas em um sentido progressista e democrático.
A modernização proposta por Nabuco extinguiria não só o trabalho
compulsório, mas todos os seus condicionamentos econômicos. "Acabar com a
escravidão não basta. É preciso destruir a obra da escravidão."
Modernização escorada no contrato de trabalho, mas sem aderir à panaceia do
imigrantismo, que foi a solução exclusivista levada a efeito pelas oligarquias sequiosas
de mão de obra, mas inteiramente alheias à valorização do trabalhador
brasileiro: o ex-escravo foi deixado ao léu; o sertanejo pobre, dito livre,
continuou submetido a uma estrutura agrária iníqua ou se viu obrigado a virar
um pária urbano nos mocambos esquálidos que já começavam a cogumelar nas
periferias das grandes cidades. Nabuco entendeu tudo em um relance quando pediu
votos nos distritos humildes do Recife e falou aos operários, então chamados de
"artistas", convocando-os a se unirem para reivindicar um nível de
vida humano:
Vós sois a grande força do futuro; é preciso que tenhais consciência
disso, e que também o meio de desenvolver a vossa força é somente a associação.
Para aprender, para deliberar, para subir, é preciso que vos associeis. Fora da
associação não tendes que ter esperança.
Nabuco viu claro quando, na esteira de seu fraterno amigo André
Rebouças, propôs uma reforma agrária como precondição para conferir dignidade
ao trabalhador do campo e estancar o êxodo que resultaria na urbanização
patológica, mal que hoje nos parece crônico. Rebouças lhe falava da urgência de
promover a "democracia rural" no Brasil.
Lendo o resumo do que restou da sua passagem pela política, o
memorialista me convenceu, uma vez por todas, de que nenhum projeto e nenhuma
opção doutrinária puderam nele aflorar sem o empuxo de uma experiência pessoal
que o moveu à ação.
Esta evocação é de uma visita do candidato a um bairro pobre do
Recife:
Duvido ter eu tido maior revelação, ou impressão exterior, que ficasse
atuando sobre mim de modo mais permanente, do que essas eleições de 1884 a 1887
- [...]. Elas puseram-me em contacto direto com a parte mais necessitada da
população e em mais de uma morada de pobre tive uma lição de coisas tão
pungente e tão sugestiva sobre o desinteresse dos que nada possuem, que a só
lembrança do que vi terá sempre sobre mim o poder, o efeito de um exame de
consciência... Eu visitava os eleitores, de casa em casa, batendo em algumas
ruas a todas as portas... A pobreza de alguns desses interiores e a intensidade
da religião política alimentada neles fez-me por vezes desistir de ir mais
longe... Doía ver o quanto custava a essa gente crédula a sua devoção política.
Diversos desses episódios gravaram-se-me no coração. Uma vez entrei na casa de
um operário, empregado em um dos Arsenais, para pedir-lhe o voto. Chamava-se
Jararaca, mas só tinha de terrível o nome. Estava pronto a votar por mim, tinha
simpatia pela causa, disse-me ele; mas votando, era demitido, perdia o pão da
família; tinha recebido a chapa de caixão (uma cédula marcada com um segundo
nome, que servia de sinal), e se ela não aparecesse na urna, sua sorte estava
liquidada no mesmo instante. "Olhe, senhor doutor", disse-me ele,
mostrando-me quatro pequenos, que me olhavam com indiferença, na mais perfeita
inconsciência de que se tratava deles mesmos, de quem no dia seguinte lhes
daria de comer... E depois, voltando-se para uma criancinha, deitada sobre os
buracos de um antigo canapé desmantelado: "Ainda em cima, minha mulher há
dois meses achou essa criança diante de nossa porta, quase morrendo de fome,
roída pelas formigas, e hoje é mais um filho que temos! No entanto, estou
pronto a votar pelo senhor, recomeçava, cedendo à sua tentação liberal, se o
senhor me trouxer um pedido do brigadeiro Floriano Peixoto". Esse foi
talvez o primeiro florianista do país... "Pode vir por telegrama... Ele
está no engenho nas Alagoas... E o que ele me pedir, custe o que custar, eu não
deixo de fazer... Telegrafe a ele..." "Não, não é preciso", respondi-lhe,
vote como quer o Governo, não deixe de levar a sua chapa de caixão... não
arrisque à fome toda essa gentinha que me está olhando... Há-de vir tempo em
que o senhor poderá votar por mim livremente; até lá, é como se o tivesse
feito... Não devo dar-lhe um pretexto para fazer o que quer, invocando a
intervenção do seu protetor. E saí, instando com a mulher, suplicando, com o
medo de que ele se arrependesse e fosse votar em mim.
Em outras casas o chefe da família estava sem emprego havia anos por causa
de um voto dado ao partido da oposição; a pobreza era completa, quase a
miséria, mas todos ali tinham o orgulho de sofrer por sua lealdade ao partido.
Glosando uma frase de Pascal, será justo dizer que onde se procura
encontrar o político Nabuco o que se descobre é o homem Nabuco, aquele que
transformou o sentimento em ideia e a ideia em ação.
Estamos em tempo de lembrar homens que marcaram fundo a nossa
identidade de brasileiros. Euclides ontem, Nabuco hoje. E já que o tempo é de
memória, retorno a um texto que li, adolescente, na Antologia Nacional de
Carlos de Laet e Fausto Barreto, obra que acompanhou tantos de nós em nosso
tempo de escola. Trata-se da célebre comparação que Castilho fez entre Vieira e
Bernardes, e que acabava com um período incisivo: "A Vieira admira-se, a
Bernardes admira-se e ama-se". Peço licença aos euclidianos e,
especialmente a meu caro confrade Alberto Venâncio Filho, para dizer com a
maior franqueza: A Euclides admira-se, a Nabuco admira-se e ama-se.
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Fonte:
Estud. av. vol.24 no.69 São Paulo,
2010. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-401420100002000.
Nota:
Alfredo Bosi é titular de Literatura Brasileira na Universidade de São
Paulo e pertence à Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre outras obras,
História concisa da literatura brasileira, O ser e o tempo da poesia, Céu,
inferno, Dialética da colonização, Machado de Assis: o enigma do olhar,
Literatura e resistência, Brás Cubas em três versões e Ideologia e
Contraideologia. É editor da revista ESTUDOS AVANÇADOS.
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