05/07/2015

Todas as Letras, de Noel Rosa

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A poética de Com que roupa?

A obra de Noel Rosa é tributária em muitos aspectos do novo samba que estava sendo criado pelos compositores negros cariocas, sobretudo, pelo conhecido grupo do Estácio. Esse tipo de samba surgiu no mundo do disco, praticamente, no mesmo momento em que Noel compôs suas primeiras canções. Se rítmica e melodicamente esse modo de compor estava configurado em suas inovações – o ritmo mais marchado, menos sincopado do que o samba produzido antes por Sinhô e Donga, as frases melódicas mais longas – sem a contribuição do jovem compositor de Vila Isabel, o mesmo não se pode dizer em relação às letras. Como se trata de canção, um gênero do qual fazem parte música e letra, pode-se facilmente concluir que a contribuição de Noel foi bem significativa não só para o novo samba que nascia, mas também para a canção popular urbana que começava a se configurar como gênero nesse momento.

Mesmo em relação às letras, a produção do novo samba já havia dado os sinais do que seria caracteristicamente sua temática – a da crise com a malandragem - e seu estilo – atravessado pelo discurso coloquial. Aqui a obra noelina vai ampliar as possibilidades artísticas do gênero com um tratamento estilístico e discursivo verdadeiramente inovador; o humor e a ironia somados a uma poética do tom coloquial se transformarão em elementos marcantes não só de sua obra, mas de boa parte da produção da canção popular brasileira. Em relação ao tom coloquial propriamente, Noel foi um dos grandes responsáveis por fazer com que a canção soasse genuinamente brasileira, graças a uma competência ímpar em trabalhar ritmo, melodia e letra em absoluta harmonia sonora. Somado a isso está, evidentemente, a competência poética na elaboração de uma obra de humor que revelou uma voz popular crítica no universo da canção como jamais havia existido antes dele.

Um dos aspectos mais intrigantes na obra de Noel Rosa é que desde seu primeiro samba configura-se um sólido paradigma poético. Sua voz já surgiu em Com que roupa? capaz de fazer convergir inúmeros elementos poéticos e musicais no sentido de se tornar reconhecidamente popular e, além de carioca, brasileira.

Nessa canção, absolutamente todos os elementos discursivos confluem para criar um efeito de sentido em que uma voz familiar, popular, pudesse ser identificada rapidamente seja pelos aspectos rítmico-musicais, seja pelos poéticos. O próprio mote da canção é uma expressão popular que vinha se tornando cada vez mais usada no Rio de Janeiro para significar a falta de dinheiro. Numa espécie de síntese de uma enunciação que será construída ao longo de sete anos, há nesse mote concentradamente uma temática – a da falta de dinheiro - e um tipo de discurso, o coloquial com humor e ironia, que, juntos, contribuirão para criar o inconfundível estilo de Noel Rosa.

O tom coloquial, despretensioso e popular próprio do samba, atravessa a canção e se fixa em estrofes construídas com base em paralelismos poéticos, entoativos, interpretativos e rítmico-musicais – a única alteração nessa “fórmula” está no conteúdo da letra, que a cada estrofe descreve com mais detalhes a situação miserável do locutor. No que diz respeito somente às letras das canções populares de um modo geral, o efeito de familiaridade é criado devido à incorporação de determinados traços prosaicos que se somam aos recursos da poesia – métrica, rimas, aliterações, assonâncias etc. Em Com que roupa?, alguns desses traços são: a sintaxe, que segue a ordem do discurso falado – sujeito/verbo/complementos – evitando as inversões típicas da poesia; a encenação de interlocução, que sugere um diálogo, uma interação no aqui/agora da canção que contribui para criar o efeito de sentido de espontaneidade próprio do discurso coloquial; algumas marcas do registro oral, como a contração da preposição “para” com os artigos “o” e “a”, a substituição da forma verbal “está” por “tá”. 

O princípio entoativo, proposto por Tatit, permite compreender o paralelismo entoativo que obedece às inflexões entoativas da fala, em perfeito acordo com a melodia e a letra, a cada verso. Assim, no primeiro verso de cada estrofe, há uma afirmação geral sobre a condição do locutor no momento presente em contraposição ao passado, que introduz a estrofe com uma entoação suspensiva – que sustenta a mesma altura entoativa – e sugere a continuidade do discurso: Agora vou mudar minha conduta/Agora eu não ando mais fagueiro/Eu hoje estou pulando como sapo. Os versos seguintes, segundo e terceiro, explicam ou justificam a afirmação feita no primeiro e terminam com uma entoação descendente que sugere a conclusão do discurso: na primeira estrofe, Eu vou pra luta/Pois eu quero me aprumar; na segunda, Pois o dinheiro/Não é fácil de ganhar; e na terceira,           Pra ver se
escapo/Desta praga de urubu.

Na sequência, quarto e quinto versos, há uma descrição mais pormenorizada do estado do locutor que também termina com uma entoação descendente, isto é, esses versos agregam mais uma idéia ao que havia sido dito antes: na primeira estrofe, Vou tratar você com a força bruta/Pra poder me reabilitar, na segunda, Mesmo eu sendo um cara trapaceiro/Não consigo ter nem pra gastar, e na terceira, Já estou coberto de farrapo/Eu vou acabar ficando nu.

Com a última entoação descendente, o sexto verso praticamente finaliza a estrofe com uma expressão popular que comenta e ao mesmo tempo indica categoricamente a penúria do momento atual do locutor: Pois esta vida não está sopa/Eu já corri de vento em popa/Meu terno já virou estopa. O enfático breque com que o verso é mais falado do que cantado dá o tom coloquial, numa encenação que tende a plasmar com muita eficácia a espontaneidade do diálogo com o interlocutor da canção.

O sétimo verso - cuja variação de conteúdo está apenas nas expressões iniciais, com quatro sílabas poéticas, é uma introdução ao refrão que termina, como toda pergunta, com uma entoação ascendente: Eu pergunto: com que roupa?/Mas agora com que roupa?/E eu nem sei mais com que roupa?.

O refrão é composto por quatro versos que reiteram a pergunta feita no último verso da estrofe, mas apenas os três primeiros têm uma entoação ascendente, própria do tom que interroga: Com que roupa que eu vou/Pro samba que você me convidou?/Com que roupa que eu vou?. O último verso do refrão, no entanto, embora repita a pergunta já feita, é claramente descendente, isto é, enfatiza um tom categórico que indica a descrença do locutor na possibilidade de resolver seu problema:      Pro samba que você me convidou. Até nesse detalhe melódico-entoativo, Noel Rosa é coerente em criar um contraponto que joga ambiguamente com o que seria esperado do discurso nesse momento da canção: a repetição final da pergunta não faz o mesmo trajeto entoativo, ascendente, dos outros versos interpeladores, é uma pergunta retórica porque, pela sua entoação, percebe-se que de fato é uma asseveração. Ao empregar esse recurso – próprio do discurso falado no jogo entoativo de pergunta/afirmação – Noel já demonstrava uma inusitada segurança, sobretudo para um compositor iniciante, para criar efeitos discursivos que explorassem a ambiguidade de sentidos.

O tom coloquial desta canção vai atingir seu momento mais expressivo na última estrofe quando há uma convergência entre letra – com expressões e imagens populares em praticamente todos os versos - e entoação no sentido de enfatizar a imagem de penúria do locutor. Em sua interpretação, Noel canta o terceiro verso numa entoação muito próxima de uma fala que enfatiza o sentimento de certa raiva, de uma indignação impotente: Eu hoje estou pulando feito sapo/Pra ver se escapo/ Desta praga de urubu. E o clímax – em termos da imagem de penúria que foi sendo construída ao longo da canção – é atingido na sequência com os versos: Já estou coberto de farrapo/Eu vou acabar ficando nu, este último, o quinto verso, é onde a melodia atinge a sua região mais aguda, justamente no momento em que, tanto nas duas primeiras estrofes como nesta última, uma nova imagem da penúria é completada. Esse recurso melódico contribui muito para que a imagem seja enfatizada como a mais contundente; na interpretação, Noel explora esse efeito agregando uma entoação de lamento choroso a cada um dos versos que desenham o ápice melódico e imagético das estrofes.

A interpretação segura de Noel, capaz de enfatizar os diferentes matizes da entoação com efeitos singulares, se filiava, desde a gravação de seu primeiro samba, ao estilo de interpretação criado por Mário Reis. Basicamente, esse estilo consagrou a entoação coloquial como o centro em torno do qual deveria girar toda a “bossa” do cantor. Além disso, ou por isso mesmo, a pronúncia deveria ser também a mais próxima do discurso falado. Em todas as canções que gravou, Noel mantém uma pronúncia espontânea, familiar a qualquer habitante do Brasil e com um leve sotaque do Rio de Janeiro. A marca carioca está, sobretudo, nos ss levemente chiados em palavras como: esta, está, mais, mesmo, gastar, estou, escapo, estopa.

Como compositor, a preocupação em respeitar o ritmo prosódico da língua também está presente em suas canções – não há hiatos que viram ditongos ou vice-versa, tampouco sílabas átonas que se transformam em tônicas apenas para respeitar a acentuação do compasso. Um bom exemplo de como Noel sabia encaixar a prosódia na melodia, ou vice-versa, está no refrão de Com que roupa?, em que as síncopes melódicas encontram-se exatamente nas sílabas tônicas de palavras – não por acaso substantivos e formas verbais - cuja carga semântica acaba sendo enfatizada sutilmente por esse procedimento: roupa, vou, samba, convidou. Outro exemplo pode ser observado nos encontros entre as vogais em que há uma fusão natural, exatamente como ocorre na fala: mea/prumar, eeu/pergunto, queeu/vou, mesmoeu/sendoum. 

Ao cuidado de encaixar a prosódia na melodia soma-se a lapidação da sonoridade poética da letra adequada perfeitamente às frases melódicas. Essa adequação segue a regularidade do paralelismo na métrica - cada estrofe tem a seguinte composição: o primeiro verso tem dez sílabas poéticas, o segundo, quatro, o terceiro e o sétimo têm sete, o quarto e o quinto, nove sílabas, e o sexto verso, oito. E o esquema de rimas tem rigorosamente a mesma regularidade nas três estrofes: a/a/b/a/b/c/c. Além do paralelismo da métrica e das rimas repetido a cada estrofe, a aliteração das nasais /m/ e /n/ presente ao longo de toda letra contribui para enfatizar um tipo de sonoridade caracteristicamente brasileira – forjada pela influência de línguas fortemente nasalizadas como o português, as línguas ameríndias e africanas. Na voz de Noel, cujo timbre é meio nasalizado, o efeito dessa aliteração acaba sendo ampliado, o que contribui para dar um leve tom de lamento choroso a sua interpretação.

Como todo recurso poético, o trabalho com a sonoridade ajuda a fixar a autoridade da voz da canção como autenticamente popular. Isto é, em todas as instâncias – poética, entoativa, interpretativa, rítmico-melódica - percebe-se um ajuste milimétrico no sentido de criar uma sonoridade harmônica, cujo efeito de sentido gera a impressão de familiaridade com o discurso. E esse efeito se deve, sobretudo, ao manejo das possibilidades da língua não só no que diz respeito à sonoridade, mas também na criação de imagens poéticas. Esse primeiro samba de Noel, que se organiza em torno de uma expressão popular, é coerentemente construído com expressões e imagens populares.

  

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Fonte:
Mayra Pinto:
“Noel Rosa: o humor na canção”. (Tese apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de Concentração: Linguagem e Educação. Orientador: Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto). São Paulo, 2010

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