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A poética de Com que
roupa?
A
obra de Noel Rosa é tributária em muitos aspectos do novo samba que estava sendo criado
pelos compositores negros cariocas, sobretudo, pelo conhecido grupo do Estácio.
Esse tipo de samba surgiu no mundo do disco, praticamente, no mesmo momento em
que Noel compôs suas primeiras canções. Se rítmica e melodicamente esse modo de
compor estava configurado em suas inovações – o ritmo mais marchado, menos
sincopado do que o samba produzido antes por Sinhô e Donga, as frases melódicas
mais longas – sem a contribuição do jovem compositor de Vila Isabel, o mesmo
não se pode dizer em relação às letras. Como se trata de canção, um gênero do
qual fazem parte música e letra, pode-se facilmente concluir que a contribuição
de Noel foi bem significativa não só para o novo samba que nascia, mas também
para a canção popular urbana que começava a se configurar como gênero nesse momento.
Mesmo em relação às letras, a produção do novo samba já havia dado
os sinais do que seria caracteristicamente sua temática – a da crise com a
malandragem - e seu estilo – atravessado pelo discurso coloquial. Aqui a obra
noelina vai ampliar as possibilidades artísticas do gênero com um tratamento
estilístico e discursivo verdadeiramente inovador; o humor e a ironia somados a
uma poética do tom coloquial se transformarão em elementos marcantes não só de
sua obra, mas de boa parte da produção da canção popular brasileira. Em relação
ao tom coloquial propriamente, Noel foi um dos grandes responsáveis por fazer
com que a canção soasse genuinamente brasileira, graças a uma competência ímpar
em trabalhar ritmo, melodia e letra em absoluta harmonia sonora. Somado a isso
está, evidentemente, a competência poética na elaboração de uma obra de humor
que revelou uma voz popular crítica no universo da canção como jamais havia
existido antes dele.
Um dos aspectos mais intrigantes na obra de Noel Rosa é que desde
seu primeiro samba configura-se um sólido paradigma poético. Sua voz já surgiu
em Com que roupa? capaz de fazer
convergir inúmeros elementos poéticos e musicais no sentido de se tornar
reconhecidamente popular e, além de carioca, brasileira.
Nessa
canção, absolutamente todos os elementos discursivos confluem para criar um efeito de sentido
em que uma voz familiar, popular, pudesse ser identificada rapidamente seja
pelos aspectos rítmico-musicais, seja pelos poéticos. O próprio mote da canção
é uma expressão popular que vinha se tornando cada vez mais usada no Rio de Janeiro para
significar a falta de dinheiro. Numa espécie de síntese de uma enunciação que
será construída ao longo de sete anos, há nesse mote concentradamente uma
temática – a da falta de dinheiro - e um tipo de discurso, o coloquial com
humor e ironia, que, juntos, contribuirão para criar o inconfundível estilo de
Noel Rosa.
O tom
coloquial, despretensioso e popular próprio do samba, atravessa a canção e se
fixa em estrofes construídas com base em paralelismos poéticos, entoativos,
interpretativos e rítmico-musicais – a única alteração nessa “fórmula” está no
conteúdo da letra, que a cada estrofe
descreve com mais detalhes a situação miserável do locutor. No que diz respeito
somente às letras das canções populares de um modo geral, o efeito de
familiaridade é criado devido à incorporação de determinados traços prosaicos
que se somam aos recursos da poesia – métrica, rimas, aliterações, assonâncias
etc. Em Com que roupa?, alguns desses traços são: a
sintaxe, que segue a ordem do discurso falado – sujeito/verbo/complementos –
evitando as inversões típicas da poesia; a encenação de interlocução, que
sugere um diálogo, uma interação no aqui/agora da canção que contribui para
criar o efeito de sentido de espontaneidade próprio do discurso coloquial;
algumas marcas do registro oral, como a contração da preposição “para” com os
artigos “o” e “a”, a substituição da forma verbal “está” por “tá”.
O
princípio entoativo, proposto por Tatit, permite compreender o paralelismo
entoativo que obedece às inflexões entoativas da fala, em perfeito acordo com a
melodia e a letra, a cada verso. Assim, no primeiro verso de cada estrofe, há
uma afirmação geral sobre a condição do locutor no momento presente em
contraposição ao passado, que introduz a estrofe com uma entoação suspensiva –
que sustenta a mesma altura entoativa – e sugere a continuidade do discurso: Agora vou mudar minha conduta/Agora eu não ando mais
fagueiro/Eu hoje estou pulando como sapo. Os versos seguintes, segundo e terceiro, explicam ou
justificam a afirmação feita no primeiro e terminam com uma entoação descendente
que sugere a conclusão do discurso: na primeira estrofe, Eu vou pra luta/Pois eu quero me aprumar; na segunda, Pois o dinheiro/Não é fácil de ganhar; e na terceira, Pra ver se
escapo/Desta praga de
urubu.
Na sequência, quarto e quinto versos, há uma descrição mais
pormenorizada do estado do locutor que também termina com uma entoação
descendente, isto é, esses versos agregam mais uma idéia ao que havia sido dito
antes: na primeira estrofe, Vou
tratar você com a força bruta/Pra poder me reabilitar, na segunda, Mesmo eu sendo um cara trapaceiro/Não
consigo ter nem pra gastar, e na terceira, Já
estou coberto de farrapo/Eu vou acabar ficando nu.
Com a última entoação descendente, o sexto verso praticamente
finaliza a estrofe com uma expressão popular que comenta e ao mesmo tempo
indica categoricamente a penúria do momento atual do locutor: Pois esta vida não está sopa/Eu já corri
de vento em popa/Meu terno já virou estopa. O enfático breque com que o verso é
mais falado do que cantado dá o tom coloquial, numa encenação que tende a
plasmar com muita eficácia a espontaneidade do diálogo com o interlocutor da canção.
O sétimo verso - cuja variação de conteúdo está apenas nas
expressões iniciais, com quatro sílabas poéticas, é uma introdução ao refrão
que termina, como toda pergunta, com uma entoação ascendente: Eu pergunto: com que roupa?/Mas agora com que roupa?/E eu nem sei mais com que roupa?.
O refrão é composto por quatro versos que reiteram a pergunta
feita no último verso da estrofe, mas apenas os três primeiros têm uma entoação
ascendente, própria do tom que interroga: Com que roupa que eu vou/Pro samba que você me
convidou?/Com que roupa que eu vou?. O último verso do refrão, no entanto,
embora repita a pergunta já feita, é claramente descendente, isto é, enfatiza
um tom categórico que indica a descrença do locutor na possibilidade de
resolver seu problema: Pro
samba que você me convidou. Até nesse detalhe melódico-entoativo, Noel Rosa é coerente em criar um
contraponto que joga ambiguamente com o que seria esperado do discurso nesse momento da canção: a
repetição final da pergunta não faz o mesmo trajeto entoativo, ascendente, dos
outros versos interpeladores, é uma pergunta retórica porque, pela sua
entoação, percebe-se que de fato é uma asseveração. Ao empregar esse recurso –
próprio do discurso falado no jogo entoativo de pergunta/afirmação – Noel já
demonstrava uma inusitada segurança, sobretudo para um compositor iniciante,
para criar efeitos discursivos que explorassem a ambiguidade de sentidos.
O tom coloquial desta canção vai atingir seu momento mais
expressivo na última estrofe quando há uma convergência entre letra – com
expressões e imagens populares em praticamente todos os versos - e entoação no
sentido de enfatizar a imagem de penúria do locutor. Em sua interpretação, Noel
canta o terceiro verso numa entoação muito próxima de uma fala que enfatiza o
sentimento de certa raiva, de uma indignação impotente: Eu hoje estou pulando feito sapo/Pra ver
se escapo/ Desta praga de urubu. E o clímax – em termos da imagem de penúria
que foi sendo construída ao longo da canção – é atingido na sequência com os
versos: Já estou coberto
de farrapo/Eu vou acabar ficando nu, este último, o quinto verso, é onde a
melodia atinge a sua região mais aguda, justamente no momento em que, tanto nas
duas primeiras estrofes como nesta última, uma nova imagem da penúria é
completada. Esse recurso melódico contribui muito para que a imagem seja
enfatizada como a mais contundente; na interpretação, Noel explora esse efeito
agregando uma entoação de lamento choroso a cada um dos versos que desenham o ápice melódico e imagético das
estrofes.
A interpretação segura de Noel, capaz de enfatizar os diferentes
matizes da entoação com efeitos singulares, se filiava, desde a gravação de seu
primeiro samba, ao estilo de interpretação criado por Mário Reis. Basicamente,
esse estilo consagrou a entoação coloquial como o centro em torno do qual
deveria girar toda a “bossa” do cantor. Além disso, ou por isso mesmo, a pronúncia
deveria ser também a mais próxima do discurso falado. Em todas as canções que
gravou, Noel mantém uma pronúncia espontânea, familiar a qualquer habitante do
Brasil e com um leve sotaque do Rio de Janeiro. A marca carioca está,
sobretudo, nos ss levemente chiados em palavras como: esta, está, mais, mesmo, gastar, estou, escapo, estopa.
Como
compositor, a preocupação em respeitar o ritmo prosódico da língua também está
presente em suas canções – não há hiatos que viram ditongos ou vice-versa, tampouco
sílabas átonas que se transformam em tônicas apenas para respeitar a acentuação
do compasso. Um bom exemplo de como Noel sabia encaixar a prosódia na melodia,
ou vice-versa, está no refrão de Com que roupa?, em que as síncopes melódicas encontram-se exatamente
nas sílabas tônicas de palavras – não por acaso substantivos e formas verbais -
cuja carga semântica acaba sendo enfatizada sutilmente por esse procedimento: roupa, vou, samba, convidou. Outro exemplo pode ser observado nos
encontros entre as vogais em que há uma fusão natural, exatamente como ocorre
na fala: mea/prumar, eeu/pergunto,
queeu/vou, mesmoeu/sendoum.
Ao cuidado de encaixar a prosódia na melodia soma-se a lapidação
da sonoridade poética da letra adequada perfeitamente às frases melódicas. Essa
adequação segue a regularidade do paralelismo na métrica - cada estrofe tem a
seguinte composição: o primeiro verso tem dez sílabas poéticas, o segundo,
quatro, o terceiro e o sétimo têm sete, o quarto e o quinto, nove sílabas, e o
sexto verso, oito. E o esquema de rimas tem rigorosamente a mesma regularidade
nas três estrofes: a/a/b/a/b/c/c. Além do paralelismo da métrica e das rimas
repetido a cada estrofe, a aliteração das nasais /m/ e /n/ presente ao longo de
toda letra contribui para enfatizar um tipo de sonoridade caracteristicamente
brasileira – forjada pela influência de línguas fortemente nasalizadas como o
português, as línguas ameríndias e africanas. Na voz de Noel, cujo timbre é
meio nasalizado, o efeito dessa aliteração acaba sendo ampliado, o que
contribui para dar um leve tom de lamento choroso a sua interpretação.
Como todo recurso poético, o trabalho com a sonoridade ajuda a
fixar a autoridade da voz da canção como autenticamente popular. Isto é, em
todas as instâncias – poética, entoativa, interpretativa, rítmico-melódica -
percebe-se um ajuste milimétrico no sentido de criar uma sonoridade harmônica,
cujo efeito de sentido gera a impressão de familiaridade com o discurso. E esse
efeito se deve, sobretudo, ao manejo das possibilidades da língua não só no que
diz respeito à sonoridade,
mas também na criação de imagens poéticas. Esse primeiro samba de Noel, que se
organiza em torno de uma expressão popular, é coerentemente construído com expressões e imagens
populares.
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Fonte:
Mayra Pinto: “Noel Rosa: o humor na canção”. (Tese apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de Concentração: Linguagem e Educação. Orientador: Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto). São Paulo, 2010
Fonte:
Mayra Pinto: “Noel Rosa: o humor na canção”. (Tese apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de Concentração: Linguagem e Educação. Orientador: Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto). São Paulo, 2010
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