20/06/2015

História de Jenni ou O Ateu e o Sábio, de Voltaire

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Voltaire, um homem de sua época

Estudaremos Voltaire como homem do século XVIII, procurando situá-lo em seu contexto histórico, a França setecentista, de forma a não incorrermos no erro de interpretá-lo como um fenômeno por si mesmo. Pretendemos analisá-lo como alguém que produziu sua obra em razão, até mesmo, de outros autores com os quais dialogou, seja para compactuar seja discordar das teses por eles defendidas.

Voltaire é um autor consagrado por seus escritos literários, filosóficos e históricos, cujo estudo tem como foco sua contribuição para a educação. A proposta é dar voz ao próprio Voltaire, discuti-lo a partir da leitura de suas obras, abordar aspectos que possibilitem entendê-lo como homem e autor de seu tempo, já que esteve envolvido com questões e teses pertinentes ao contexto de mudanças e contradições da sociedade francesa do século XVIII, século comumente denominado “Século das Luzes” e, mais tarde, Século de Voltaire.

Ao estudar o Iluminismo é preciso ter o cuidado de percebê-lo como um movimento intelectual não homogêneo e nem tampouco único para todas as nações européias dos séculos XVII e XVIII. De fato, pode-se falar de Iluminismo inglês, francês, alemão, entre outros.

Cêrca (sic) de 1760, a ‘Filosofia das Luzes’, da autoria de pensadores que si próprios se classificavam como ‘filósofos’, parecia triunfar. Tais pensadores exprimiam-se por meio de tragédias, poemas épicos, didáticos, satíricos, romances, panfletos, cartas, diálogos, exposições de sistemas e dicionários. A sua obra de conjunto por excelência, a Suma Filosófica do século XVIII, destinada a substituir a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, é um dicionário, a Enciclopédia Francesa de D´Alembert e Diderot, cujo primeiro volume foi publicado em 1º de junho de 1751, com um discurso preliminar escrito por D´Alembert e que, apesar dos entraves das autoridades, foi terminada em 1764. [...] Os principais ‘filósofos’, escritores universais como Voltaire ou Diderot, juristas como Montesquieu, matemáticos como D´Alembert são geralmente, homens que provêm dos diferentes graus da burguesia, ou magistrados nobres, menos afastados desta do que os nobres de espada. O pensamento da época é ainda mais burguês do que nos séculos anteriores (MOUSNIER & LABROUSSE, 1968, p.84).

 A denominação ‘Filosofia das Luzes’ situa mais especificamente o iluminismo francês do século XVIII. Não podemos nos esquecer do Iluminismo inglês do século XVII e, graças à Revolução Inglesa (1688), de sua repercussão no restante da Europa, sobretudo na França. Os pensadores franceses no período anterior a 1760, que Mousnier e Labrousse destacam, tinham sua atenção voltada para a Inglaterra, que tomaram como referência para suas críticas e considerações acerca da situação francesa. Como exemplo, podemos citar Voltaire e sua obra Cartas Filosóficas, de 1734, também conhecida como Cartas Inglesas.

Em relação à não homogeneidade do Iluminismo, destacamos que, entre os filósofos, encontramos deístas, ateus e materialistas. Apesar de existirem pontos comuns entre eles, algumas divergências podem ser apontadas:

Para quase todos os ‘filósofos’, a natureza, criada e dirigida por Deus, leva os homens a viver em sociedade. A razão humana deve descobrir as leis naturais que regem as sociedades, para lhes obedecer. Existe um direito natural, constituído por leis naturais. O homem tem de traduzir êste (sic) direito natural em leis positivas. Existe também uma moral natural, conforme às leis naturais. O homem deve traduzir esta moral em princípios e reuni-los num catecismo natural (MOUSNIER & LABROUSSE, 1968, p. 85-86).

A maioria dos filósofos aceitava o deísmo. Isso não quer dizer que não existissem aqueles que defendiam o ateísmo. Este grupo, que não era numeroso, foi duramente combatido pela maioria dos autores iluministas por pressupor a existência de um princípio superior, em função de sua fundamentação mecanicista.

Em relação à afirmação de uma moral natural pelos filósofos, destacamos:

É evidente para toda a terra que um benefício é mais honesto que um ultraje, que a brandura é preferível à exaltação. Cumpre apenas, portanto, usar nossa razão para discernir os matizes da honestidade e da desonestidade. Bem e mal tantas vezes estão próximos; nossas paixões os confundem: quem nos esclarecerá? Nós mesmos, quando estamos tranqüilos. Qualquer um que tenha escrito sobre nossos deveres bem escreveu em todas as partes do mundo, pois escreveu usando sua própria razão. Disseram todos a mesma coisa: Sócrates e Epicuro, Confúcio e Cícero, Marco Aurélio e Amurath II tiveram a mesma moral. Convém repetir todos os dias a todos os homens: a moral é uma só, vem de Deus; os dogmas são diferentes, vêm de nós (VOLTAIRE, 2006b, p. 2).

Segundo Voltaire, existe apenas uma moral natural, cujas raízes estão no próprio Deus, que, ao criar os homens, deu-lhes a razão. Ao pressupor isso, o autor enfatiza a existência de Deus, porém não faz qualquer menção à interferência divina na vida dos homens ou mesmo nas leis da natureza. Esclarecemos que o Deus pressuposto por Voltaire e pelo iluminismo não está vinculado às religiões, já que, para ele, as religiões são criações dos próprios homens.

Para Kreimendahl (2003, p. 7-8), é comum considerarmos o Iluminismo filosófico um movimento homogêneo, mas o iluminismo abrange diversas áreas; não se trata apenas de uma manifestação filosófica e, mesmo como movimento filosófico, não pode ser tratado como homogêneo.

Ao afirmar que o Iluminismo, especialmente a Filosofia Iluminista, não é homogêneo, embora, a princípio, seja marcado por características comuns, Kreimendahl estende essa falta de unidade até mesmo aos autores iluministas de um mesmo país. Mesmo que se fale em Iluminismo francês, deve-se ter em conta que, entre os próprios autores franceses, existem questões e teses que são distintas, apesar de formuladas nos embates às contradições que lhes são comuns.

É importante destacar esse fato, porque ele demonstra que as próprias idéias se fazem historicamente, evidenciando também que os autores vão se forjando com o tempo e ao longo das discussões de suas teses. Isso, de certa forma, confirma a história como um dos elementos que favorecem a compreensão do próprio processo educativo. Voltaire afirma que precisamos aprender com a história, com os antepassados, para não incidirmos nos erros por eles cometidos.

Quando os filósofos passaram a discutir a emergência de uma nova era e a apresentar os valores e virtudes a ela pertinentes, opondo-se àqueles que garantiam a manutenção do que passaram a denominar Antigo Regime, combateram as instituições que respaldavam e sustentavam o absolutismo francês. Entre essas instituições, a Igreja foi a mais atacada por eles. Voltaire é um dos autores que, ao longo de sua obra, fez um estudo minucioso dessa instituição, demonstrando sua importância para a formação e desenvolvimento da sociedade francesa. Isso ocorre sobremaneira na obra Ensaio sobre os costumes, de 1756. Porém, ao final de sua vida e nas obras que ele produziu nesse período de velhice, assumiu um posicionamento de acentuada crítica, o que autorizou alguns de seus intérpretes a afirmarem que a expressão por ele utilizada na saudação final de suas cartas - Écrasez l´Infâme! (Esmagai a Infame!) - estava diretamente relacionada à Igreja. Ao criticar as instituições, denunciando a necessidade de mudanças, os filósofos iluministas apontavam para uma nova ordem que passaram a denominar Idade da Razão, justificando que os novos valores e virtudes deviam se sobrepor à barbárie e ao caos social que assolavam a França.

Entre as evidências que parecem autorizar o discurso dos filósofos está a questão da liberdade, um dos valores que eles apresentam como novidade e que ao contestarem o Antigo Regime, responsabilizam as instituições pela crise social por representarem a negação da liberdade.

Voltaire, no Dicionário Filosófico, assim apresenta a Liberdade: [...]

Em que consiste a vossa liberdade senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia com a absoluta necessidade? [...] A vossa vontade não é livre, são-no as vossas ações. Sois livres de fazer quando tiverdes o poder de fazer” (VOLTAIRE, 1973b, p. 243-244).

Voltaire define a liberdade por meio da simulação de um diálogo entre A e B. Apresenta uma situação em que, diante de um tiro de um canhão, a pessoa não tem como deixar de ouvi-lo, mas teria condições de correr para não ser atingida por ele. Quando A apresenta a idéia de liberdade, B a questiona com o argumento de que ela assemelha o homem aos animais. Segundo Voltaire, assemelhamo-nos aos animais, porém nossa liberdade e pensamento são muito superiores. Ou seja, possuímos instintos e sentidos semelhantes aos animais, mas o pensar que orienta nosso agir é o que nos torna tão diferentes. Com isso, ele destaca a necessidade da educação, pois, para que nossas ações possam ser orientadas pelo pensar, os homens precisam aprender a fazê-lo e o fazem mediante a transmissão que se dá de geração a geração. Pressupõe assim a educação para orientar as ações humanas.

Na Enciclopédia, três verbetes tratam da liberdade: a liberdade natural, a civil e a política.

A liberdade natural é o direito que a natureza dá a todos os homens de dispor de suas pessoas e de seus bens da maneira que julgarem mais conveniente para a sua felicidade, sob a restrição que o façam dentro dos limites da lei natural e que não abusem dela em prejuízo dos outros homens. [...] Este estado [o da liberdade natural] não pode ser trocado por um outro nem ser vendido nem perder-se, pois naturalmente todos os homens nascem livres, ou seja, não estão submetidos ao poder de nenhum outro senhor, e ninguém tem propriedade sobre eles (DIDEROT & D´ALEMBERT, 2006, p. 203).

A materialização da liberdade como um direito natural ocorre na relação do indivíduo com o grupo social do qual faz parte. A isso se denomina liberdade civil e política.

É a liberdade natural despojada desta parte que constituía a independência dos particulares e a comunidade de bens, em troca de uma vida sob leis que proporcionem a segurança e a propriedade. [...] É verdade que esta liberdade só se encontra nos governos cuja constituição é tal que ninguém é constrangido a fazer as coisas que a lei não obriga e a não fazer o que ela permite (DIDEROT & D´ALEMBERT, 2006, p. 205-206).

Assim, para o filósofo, a liberdade está diretamente relacionada à vida social, ao Estado. Ao apresentar a liberdade civil e política, ele procura demonstrar que a vida dos indivíduos transcorre na esfera do público; assim, a função do governo é vital para que a liberdade, entendida como um direito natural, possa ser garantida. A liberdade do indivíduo dependerá da garantia da segurança e da propriedade por parte do Estado.

Retomamos aqui a idéia de que o Iluminismo filosófico, como movimento intelectual, não foi homogêneo em suas discussões e enfrentamentos em relação ao absolutismo francês e às instituições que lhe davam sustentação. Retomamos também a idéia de que Voltaire é importante para a compreensão do cenário francês do século XVIII. Ao discutir as diversas temáticas pertinentes à sua época, sobretudo a relação entre Estado e Igreja, ele aponta para uma questão central no âmbito educacional: a tolerância como resultante do processo educativo.

 

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Fonte:
Djaci Pereira Leal
: “Voltaire: ensaio sobre os costumes - a história como elemento educativo para a tolerância”. (Dissertação apresentada por Djaci Pereira Leal, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Área de Concentração: História e Historiografia da Educação, da Universidade Estadual de Maringá, como um dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profa . Dra.: Terezinha Oliveira).  Maringá, 2008 .

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