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Poesia Completa de Gregório de Matos
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O riso do poeta
As
sátiras do poeta (2º e 4º poemas do corpus)
apresentam-se como respostas àquelas produzidas pelo vigário e desenvolvem-se
em torno de duas questões: a primeira delas diz respeito ao fato de o vigário,
sendo mulato, querer corrigir um homem branco:
Que um Cão revestido em Padre
por
culpa da Santa Sé
seja tão
ousado, que
contra
um Branco ousado ladre:
e que
esta ousadia quadre
ao
Bispo, ao Governador,
ao
Cortesão, ao Senhor,
tendo
naus no Maranhão:
milagres
do Brasil são.
e
a outra refere-se ao fato de o vigário em
versos querer dar penada. Analisaremos cada uma das questões em particular
e o que elas nos revelam acerca do riso do poeta.
A
primeira questão a ser destacada diz respeito, conforme já mencionamos acima, à
raça do vigário. O sujeito enunciador questiona a ousadia daquele ao repreendê-lo.
Não reconhece no vigário poderes para tanto, haja vista se tratar de um mulato.
Esse dado é para nós digno de atenção. E para bem analisá-lo retomaremos aquele
princípio segundo o qual o sujeito, ao
mostrar-se, inscreve-se em um espaço socioideológico e não em outros, enuncia a
partir de sua inscrição ideológica; e ainda, que a voz desse sujeito revela o lugar social (FERNANDES, 2005, p.25 ). Em vista disso questionamos: qual a inscrição
socioideológica do poeta? De que lugar ele enuncia? A seqüência abaixo extraída
do quarto poema da seqüência tomada para análise nos dirá:
Não
sabeis, Reverendo Mariola,
Remendado
de frade em salvajola,
Que cada
gota, que o meu sangue pesa
Vos
poderá a quintais vender nobreza?
Era
o Nobre, o Branco, o Senhor, que
investia contra a possibilidade de reconfiguração dos saberes da FD que o
constituiu sujeito, saberes que se constituem como exterior ao sujeito que
enuncia.
A
análise da conjuntura em que os poemas foram produzidos nos revelou a condição dos
membros do clero em relação aos senhores: aqueles lhes eram, sob certos
aspectos, subalternos. Ao tomar o ato do vigário/mulato como motivo de riso, o
poeta permite que identifiquemos a sua inscrição sócio-histórico-ideológica:
para a manutenção da hierarquia, era preciso refrear investidas que pudessem
abalar a autoridade e o poder do patriarca, do nobre. Vê-se, assim, que é a
manutenção da hegemonia, e em termos discursivos, dos saberes que configuram a
forma-sujeito daquela FD, que está em jogo. Nesse sentido, se era vetado ao vigário
o direito de corrigir dessa posição, como mulato isso era inadmissível. O
mulato era um sujeito que, por consangüinidade, transitava entre o mundo dos
nobres e a senzala:
Se a
este podengo asneiro
o Pai o
alvanece já,
a Mãe
lhe lembre, que está
roendo
em um tamoeiro:
Ao
abrir possibilidade para um mulato corrigir um Branco, provoca-se um enfraquecimento desse último em favor do
primeiro; logo, a intervenção do mulato poderia promover uma agitação nas filiações sócio-históricas de
identificação. É a unidade ilusória do UM que se encontra ameaçada pela
possibilidade de reconfiguração dos saberes que o constitui sujeito. Ou,
conforme Pêcheux ( 1997b, p. 117)
o que está em jogo é a identificação pela qual todo sujeito “se
reconhece” como homem, ou também como operário, empregado, funcionário, chefe, etc.
, ou ainda como turco, francês, alemão, etc., e como é organizada sua relação
com aquilo que o representa.
Ao
dotar esse sujeito daquele poder, poderia se colaborar na legitimação de relações
que não estivessem dentro dos padrões morais vigentes e, por sinal, muito
comuns no seio dessa formação social-ideológica: O mulato era já, na verdade,
um perigo iminente:
Que vos
direi do Mulato,
que vos
não tenha já dito,
se será
amanhã delito
falar
dele sem recato:
E
não apenas no sentido de poder repreender um branco, mas, ainda, pela
possibilidade de ocupar posições até então legitimamente ocupadas só por
brancos. Daí também a crítica ao fato de o vigário querer produzir versos: Já em versos quer dar penada. Há, neste
ato do poeta, uma tentativa de manutenção de um dado espaço social, o qual era assegurado
por um conjunto de formulações que circulavam enquanto memória dizendo quem
estava habilitado a desenvolver tal prática. Formulações do tipo
A poesia satírica não pode ser produzida
por um simples ato de vontade ou mimetismo literário, exigindo predicados
especiais de temperamento [...], mundividência e linguagem, não franqueadas a
todos os poetas, mesmo em época de coletivização literária. (GOMES, 1985, p.20)
que
fornecerão matéria-prima para a constituição das representações24 nas quais o sujeito
se instalará, sentindo-se “aprisionado”, identificado com a completa estranheza
de
uma evidência familiar; ( PÊCHEUX, 1997b, p.260) ou não! Já sabemos que o processo
de identificação pode não ocorrer de forma plena, abrindo espaço para diferentes
modalidades de subjetivação. Isto porque
a relação estabelecida com o sujeito do
saber, ainda que marque o assujeitamento, não apaga a alteridade. Na FD, há
espaço para diferentes sujeitos do discurso conviverem. Há uma forma sujeito/de
ser sujeito, da qual não há como escapar, mas o modo como cada um se relaciona
com ela determina a existência de diferentes representações. (DORNELES, 2000, p.169).
São
essas representações que alimentam a produção do poeta, como se pode ver nos versos
abaixo:
Ilustre,
e reverendo Frei Lourenço,
Quem vos
disse, que um burro tão imenso,
Siso em
agraz, miolos de pateta
Pode
meter-se em réstia de poeta?
Quem vos
disse, magano,
Que fará
verso bom um Franciscano?
Cuidais,
que um tonto revestido em saco
O mesmo é
ser poeta, que velhaco?
Seres
mestre vós na velhacaria
Vos vem
por reta via
De
trajar de burel essa libréia,
E o ser
poeta nasce de outra veia;
As
características destacadas na seqüência discursiva acima – burro, siso em agraz,
miolos de pateta, tonto – colocam-se como empecilho ao exercício da prática de produzir
versos. E a razão disso pode ser detectada na seqüência que reproduzimos abaixo:
Falais
em qualidade,
Tendo
nessas artérias quantidade
De
sangue vil, humor meretricano,
Pois
nascestes de sêmen franciscano,
E sobre
vossa Mãe em tempos francos
Caíram
mil tamancos,
De Sorte
que não soube a sua pele,
Se vos
fundiu mais este, do que aquele:
Tais
questões estariam em conformidade com o que Courtine (1981) denominou de aspectos
da existência material de uma formação discursiva como memória. São da ordem
do domínio do saber de uma FD. E, nesse sentido, poderíamos pensar no fechamento
fundamentalmente instável de uma FD. Vemos que os limites traçados acima pelo
poeta dão a ver, ainda que de forma não definitiva, as condições de possibilidades
de exercício daquela prática discursiva. E essas condições são dadas pelo interdiscurso da FD que domina a seqüência,
como podemos atestar pelo depoimento abaixo transcrito:
Naquela
época, havia uma triagem através de um processo chamado habilitação de gênere.
O sujeito que fosse mestiço — tivesse sangue de mouro, de judeu, de africano,
ou como eles chamavam, “sangue de infecta nação” — ou que descendesse de
oficial mecânico não poderia freqüentar a Universidade de Coimbra nem ser
nomeado pelo rei para exercer uma função de juiz. (PERES, 1996) Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/peres01.html.
...
tampouco produzir versos. Essa era uma prática reservada aos sábios, aos que falassem elegante, e invariavelmente, aos filhos dos Senhores que
iam para a capital estudar nas Faculdades de Direito e lá adquiriam o dom da
oratória, bem como o título de Doutor. Era, pois, uma prática discursiva
regulada por um aparelho ideológico, condição que aponta para a repetibilidade,
ainda que transitória. Ao aventar-se a possibilidade de o vigário-mulato instituir-se nesse lugar social,
faculta-se a reconfiguração dos saberes próprios àquela FD pela incorporação de
novos elementos e/ou apagamento de outros já consolidados. Se o ato de produzir
for considerado legítimo, ainda que praticado por um mulato, promove-se uma agitação nos processos identitários, bem
como na natureza das circunscrições dos sujeitos na ordem dos discursos. E isso
não era algo impossível de acontecer naquela conjuntura: a reconstituição das
CPs possibilitou-nos a observação de que a atividade intelectual apresentava-se
aos elementos da camada intermediária - na qual se enquadra o vigário-mulato -
como via de acesso social, permitindo, inclusive, o ingresso na nobreza de títulos,
o acesso às funções não maculadas pelo trabalho físico.
Vemos,
com isso, que o riso do poeta coloca-se como instrumento de imobilismo, como força
capaz de impedir o avanço de forças opostas, como princípio de exclusão, como princípio
de resistência.
Destacamos
até este ponto aspectos referentes ao riso dos sujeitos enunciadores. Daqui em
diante passaremos à reflexão do papel do autor literário como uma forma sujeito
capaz de, através de sua produção, intervir tanto no que se refere à manutenção
quanto à reconfiguração dos grupos que compõem a formação social da qual faz
parte. E o faremos guiados pela questão que deu origem a esse estudo: de que
forma o riso, em suas manifestações discursivizadas - em especial neste estudo,
sob a forma de sátira - pode contribuir para a manutenção ou reconfiguração de
grupos de poder já instituídos e socialmente bem aceitos, como também para o estabelecimento de grupos de poder
emergentes?
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Fonte:
Fonte:
Rosely
Costa Silva Gomes: “O riso, seus poderes e perigos: Um estudo da
discursivização do riso e da materialização do poder na sátira gregoriana”. (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal
de Uberlândia, como requisito para obtenção do título de mestre em Lingüística.
Área de concentração: Estudos em Lingüística e Lingüística Aplicada; Linha de
pesquisa: estudos sobre texto e discurso; Tema: Análise do Discurso: formação e
funcionamentos de discursos político-institucional, literário e pedagógico. Orientador:
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes). Uberlândia, 2007.
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