28/12/2014

Ao de leve, de Brito Camacho

Livro provisoriamente disponível no site Minhateca (link baixo):


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O estudante que ontem, no Rocio, foi atingido por uma bala na cabeça, já faleceu.
(Dos jornais).

Como não havia de adorá-lo, se era seu filho único!

Para mais, ele era o retrato vivo do pai, com todas as qualidades e todos os defeitos — se um filho pode ter defeitos para a mãe que o estremece!

Ficara com ele nos braços, viúva pela maior das fatalidades, quando ainda não tinham secado de todo as flores de laranjeira que lhe tinham posto no cabelo no dia do seu casamento, e nas suas faces havia ainda um pouco do rubor intenso com que as haviam tingido os beijos loucos que ele lhe dera, já seu marido, ao voltarem da Igreja.

Anos e anos chorara a sua viuvez, e mesmo quando o filho lhe estendia os bracitos gordos, muito risonho, as suas lágrimas não estancavam. Mas o seu pranto já não era só de dor; a desgraça ainda lhe escaldava a garganta com soluços que lhe vinham do coração, mas já lhe nimbava a alma a promessa de uma felicidade remota. No filho via o marido — era como se dentro de um túmulo assistisse ao esplendor de uma aurora.

Se não havia de adorá-lo, a pobre mãe!

Quando ele lhe saiu de casa para continuar os estudos, pareceu-lhe que ficava viúva pela segunda vez. As suas cartas mitigariam a sua saudade, e ela havia de lê-las com tamanha devoção, evocá-lo com tanto amor, que a leitura seria afinal uma conversa entre ambos, ele a enxugar-lhe os olhos com beijos, e ela a lavar-lhe as faces com lágrimas.

Já então ele era quase um homem, alto e desempenado, uma penugem leve prenunciando um bigode negro, que seria talvez farto e provocador como o do pai. Muito estudioso, e, ao mesmo tempo, muito inteligente, contava as distinções pelos exames, nunca se rebaixando a esmolar uma proteção, mantendo sempre perante os mestres uma atitude que, nem por ser respeitosa, deixava de ser altiva. Ainda nisso ele era como o pai, orgulhoso sem presunção, delicado sem maneirismos, altivo sem arrogâncias.

Como não havia de adorá-lo!

Surpreendia-se a fazer projetos de vida em comum, quando ele acabasse os estudos, e fosse, para aqui ou para além, exercer a sua profissão. Já a deixariam livre os negócios da sua casa, que a retinham agora separada dele, a contar o tempo pelo seu amor, e a achar os meses infinitamente mais compridos do que dizem os calendários.

Talvez ele um dia casasse; mas nem assim o deixaria, humilde na casa alheia, fazendo-se útil, sendo prestimosa, realizando quantos milagres fossem precisos para se tornar indispensável. Pois se ele era a única razão da sua vida, como poderia alguém roubar-lho sem ao mesmo tempo a matar?

Recebia as suas cartas em dias certos, e nunca ele deixara de lhe escrever com a mais rigorosa pontualidade. às vezes eram apenas quatro linhas, meia dúzia de palavras que ela umedecia com os olhos, para as enxugar com os lábios.

Como não havia de adorá-lo, a pobre mãe, se ele era o seu filho único, para mais o retrato vivo do pai, com todas as suas qualidades e defeitos — defeitos que para ela eram qualidades!

Ora sucedeu que naquele dia, estando como de costume à espera do carteiro, viu que ele passava pela sua porta, sem entrar. Era lá possível não ter carta? Provavelmente confundira-a no maço, e só daria por ela finda a distribuição. Viria então entregar-lha.

Passou uma hora, passaram duas horas, passou uma eternidade, e o carteiro não voltou.

Estaria doente? Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça?

Distraidamente, quase sem intenção, pega num jornal. O coração deu-lhe um salto dentro do peito, como se a um leão dentro de uma jaula lhe enterrassem nas carnes uma choupa em brasa.

Houvera tiros, houvera espadeiradas, como em uma batalha. Do campo tinham retirado muitos feridos, tendo lá ficado alguns mortos.

Foi lendo, lendo tudo, devorando as colunas do jornal, à procura de um nome, na ânsia de um condenado à pena última, que um indulto pode salvar.

Esse nome lá estava. Ferido com uma bala na cabeça, fora levado ao hospital, onde os médicos verificaram o óbito.

Não chorou, não soluçou, não gemeu, aniquilada por completo.

Quando voltou à consciência da realidade, ainda tinha nas mãos o jornal.

Serena e trágica, como se debruçada sobre uma sepultura visse lá dentro o próprio coração; trágica e dolorida como se lhe pesasse n'alma todo o sofrimento humano; morta para o amor, abrasada em ódio:

 — Mataram o meu pobre filho! Maldito seja para sempre, na sua descendência, o miserável assassino!

Como não havia de adorá-lo, a pobre mãe, se ele era o seu filho único!

Se fores um dia ao mar,
Que a fortuna te não deixe;
Bota a rede e vai-te embora,
— Quanto mais burro mais peixe.

 Fora criado de médico, e como a Natureza o dotara com bastante inteligência e um notável espírito de observação, aprendeu mil coisas com o doutor, a ponto de se julgar apto a fazer o que ele fazia. Depois chocava-o aquela subalternidade de moço de consultório, as pessoas que entravam nem reparando nele, e algumas que nele reparavam tratando-o sem cortesia. Farto daquele viver, reconhecendo-se talhado para mais altos destinos, um dia pediu contas ao patrão, e abalou sem dizer para onde.

Meses passados, enchia a cidade a fama de um doutor novo, que fazia verdadeiros milagres, havendo quem afiançasse que dera vista... a uns poucos de aleijados, e cegara uma meia dúzia de coxos. Por acaso o doutor topou o milagrante colega na rua, e reconheceu nele o seu velho criado, muito correto, muito bem posto, tal qual um intrujão com diploma. Ao outro dia, era um domingo, foi procurá-lo ao consultório, curioso de saber como aquilo era feito. No largo, junto ao adro da Igreja, havia uma extraordinária multidão.

 — Quantas pessoas calcula o dr. que estejam além?

 — Uns milhares.

 — E quantas dessas lhe parece que serão inteligentes?

 — Algumas dúzias.

 — Pois essas formam a sua clientela; o resto pertence-me.


Vinha isto a propósito... a propósito... Ah! sim; a propósito da tiragem do jornal, que o administrador acha pequena.

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