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A forma de tratamento dos temas nas Reflexões
Matias Aires elabora uma obra
descritiva, as Reflexões se dedicam a
investigar causas e estabelecer relações para as ações humanas, a exemplo:
“Fazem os homens ludíbrio da mudança
da vontade, por isso muitas vêzes somos firmes só por evitar o desprêzo, vindo
a parecer persistência na vocação, o que só é constância na vaidade. Vivemos
temerosos, de que as nossas ações se reputam como efeitos da nossa variedade:
queremos mudar, mas tememos o parecer vários; e assim a constância na virtude
não a devemos à vontade, mas ao receio; não a conservamos por gôsto, mas por
vaidade”(Matias Aires 21)
O caráter acentuadamente
descritivo do discurso de Matias Aires não impede momentos de caráter mais
prescritivo e pedagógico, lembrando que a forma descritiva não carrega, nas
retóricas antigas, a pecha de ser um “luxo analógico”.
“Nas retóricas antigas, essa relação de
pressuposição implica que não se faça a posição descrever/narrar.
Retoricamente, quando se trata de processos, a descrição integra anarratio;
e, principalmente, quando
se trata de pessoa, personagem ou coisa implicados em processos, ela se aplica
na invenção dos tipos e seus caracteres (éthe) e paixões (pathe),
segundo os quatro graus do encômio doutrinados por Aristóteles e reiterados
pelo anônimo da Retórica a
Herênio, por Quintiliano e Menandro. Quintiliano – e, por exemplo, muito
depois dele, Erasmo – fala da narratio como rei
factae aut ut factae utilis ad persuadendum expositio: exposição da coisa feita ou da coisa como feita útil
para persuadir. A coisa
feita – a ação particular, como a
conquista da Gália,
realizada por pessoa particular, como Júlio César, no gênero histórico – e a coisa como feita – a ação universal, como a
conquista do Lácio, realizada por personagem universal, como Eneias, no gênero épico – podem
ser apenas citadas brevemente, nos casos em que já são conhecidas pelo
auditório. Mas o preceito de que as res
factae e seus exempla devem ser amplificados e ornados
descritivamente está sempre presente nos modelos de dilatação narrativa dos
exercícios que os latinos chamaram de opera
minora, os progymnasmata gregos, principalmente nos exercícios
epidíticos, em que a amplificação é principal. Um desses modelos propostos como
exercício para desenvolvimento de habilidades técnicas do orador “não se pode
fugir do raio despendido de uma nuvem; o amor ainda nos alcança com mais
pressa, e mais vigor, porque é raio que se forma dentro de nós mesmos: o valor
consiste em arrancar a seta, por mais que fique despedaçado o peito.” (Matias
Aires 101)
A ultima frase é ilustrativa do
uso de uma certa retórica prescritiva na forma descritiva utilizada pelo autor:
ao tratar de maneira pretensamente neutra uma situação que leva a agir
virtuosamente, ele não postula a impossibilidade de fugir das paixões, mas
apresenta aquilo que é o caminho para uma ação virtuosa. Contudo, a escolha de
(tentar) seguir o caminho em direção à ação virtuosa cabe aos homens.
A organização formal das práticas
letradas evidencia sua diferença nos gêneros retóricos, revelando a falta de
autonomia dos discursos setecentistas.
Kossovitch afirma que a gramática
de Condillac, “é também receituário porque prevê efeitos” (KOSSOVITCH, 2011:
232). Nas Reflexões, a articulação
entre os conteúdos trabalhados e a ideia de eficácia não se dá de maneira
direta: ela se realiza do ponto de vista dos efeitos. Essa pedagogia indireta
se afirma na eficácia do entendimento e na ação esclarecida, porque traz o
entendimento dos motivos que regem a ação, baseia-se na ratio e visa ao bem comum. A eficácia se afirma com a publicização
de comportamentos convencionais e adequados e a capacidade de prever
comportamentos e ações mantém o bom funcionamento do teatro do mundo. A moral
convencional se realiza no público: nenhuma moral é eficaz se não ultrapassa o
sujeito individual, sendo o contrário do padrão do homem virtuoso burguês, cujo
ethos está bem representado nesse
trecho de Paul Hazard:
“Já não nos interessa que o homem
honesto (honnette homme) seja o nosso
guia, pois foi ultrapassado. Demasiado vil é o preço pelo qual se adquirem as
suas qualidades para que as invejemos; muita presunção, uma fortuna
confortável, alguns vícios que mereciam a aprovação geral, constituíam o seu
patrimônio; e nele não havia lugar para a virtude, e todos os homens honestos
do mundo não valem um homem virtuoso” (HAZARD, 1974: 216) a narratiuncula, ao
pé da letra “narraçãozinha”, amplificação descritiva usada pelos alunos latinos
de oratória e, a partir do século XVI, pela Companhia de Jesus na educação de
padres sermonistas. Da mesma maneira, as fábulas, com sua tipologia de animais
alegóricos de virtudes e vícios que amplificam a ação principal narrada, ou achria,
menção breve de sentenças e coisas memoráveis, são consideradas elementos
narrativos aplicados como descrição de coisas, eventos, pessoas e como detalhes
caracteriais e morais de personagens etc.” (HANSEN, Categorias Epiditicas da
Ekphrasis.
<http://www.sibila.com.br/index.php/mapa-da-lingua/1295-categorias-epiditicas-da-ekphrasis->.
Consultado em 29.jan.2010).
Nas práticas letradas antigas,
cujas construções discursivas se baseiam na ordem, nos usos corretos das
prescrições retóricas, o gênero e a forma não são prisões, mas antes, são os
modos de expressão que são capazes de articular conteúdos e assim cumprir a
função comunicativa, porque sancionados socialmente:
“A relação orgânica e
indissolúvel do estilo com o gênero se revela nitidamente também na questão dos
estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou
funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas
da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros
que correspondem às condições especificas de dado campo; é a esses gêneros que
correspondem determinados estilos. Uma determinada função (cientifica, técnica
publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação
discursiva, especificas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é:
determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais
relativamente estáveis. O estilo é indissociável de determinadas unidades
temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades
composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos de
seu acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da
comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso
do outro, etc. O estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu
elemento” (BAKHTIN, 2003: 266)
O topoi retórico utilizado por
Matias Aires pressupõe o enquadramento na literatura moral, naquilo que se
agrupa como textos moralistas No sentido de moraliste, um investigador da alma
humana; mobiliza um certo tipo de pedagogia, que não é a pedagogia
comportamental como visto em “L’Honnete Homme ou L’Art de Plaire a la Court”
(1634), de Faret. Este explicita, sobretudo, modos, adequações, e não se detém
na investigação dos motivos que levam os homens a se relacionar com os outros
homens.
Matias Aires não pretende
desvendar ou tornar mais eficiente a vida do homem em sociedade, mas investigar
o que leva à ação: não se preocupa com a performatividade, mas com aquilo que
está antes da ação. Os fatores que motivam as ações nem sempre estão de acordo
com o resultado delas: para um observador dos atos esse fato não teria
importância. A origem não invalida, entretanto, o caráter positivo ou negativo
das ações.
“A virtude, ainda que venha de um
principio vicioso, sempre é virtude de algum modo, ou mais ou menos
qualificada, o obrar bem por qualquer motivo que seja, é bom; as nossas ações
não se determinam pela causa que mostram, mas por outra que não se vê; e entre
todas as causas, aquela que consiste em uma vaidade inocente, é menos má. Que
importa que a vaidade seja que incite o exercício do valor, da constância, da
ciência e da justiça?” (Matias Aires 132)
Essa investigação daquilo que
está antes do ato também desloca o sentido do ato para o seu efeito, na medida
em que a relevância está sempre naquilo que a ação produz e não naquilo que ela
é. Nesse ponto é aplicado o mesmo princípio de impossibilidade de conhecimento
da substância das coisas: as ações humanas apenas são passíveis de conhecimento
quando há qualificativos para julgá-las (em seus princípios ou nos efeitos).
A investigação do estatuto formal
das Reflexões Sobre a Vaidade dos homens,
bem como dos modos particulares do tratamento dos conceitos mais importantes
mobilizados pelo autor para a construção do texto não pretende nem esgotar os
fundamentos da prática textual e nem alinhar o autor a uma corrente de
pensamento, mas perceber relações entre os modos de apresentação das temáticas
e as estratégias retórico-discusivas que informavam as práticas textuais no
momento histórico da elaboração do texto.
Sendo assim, para efetuarmos uma
análise mais adequada das categorias empregadas por Matias Aires no seu
presente histórico, atentando para o sentido particular e tentando recompor uma
“primeira legibilidade” do texto, devemos nos voltar às premissas formais que
irão regular sua composição. Retoricamente o texto não deve, pois, ser abordado
a partir das categorias pós-iluministas e pós-românticas de análise discursiva
já que, tendo sido construído de acordo com uma orientação diversa tanto do
modelo de neutralidade recorrente no discurso iluminista (KOSSOVITCH, 2011)
quanto pelo modelo subjetivista romântico, é preciso pensar na construção
dessas Reflexões como a prática da
adequação entre os objetivos do texto e a forma como esses objetivos seriam
atingidos.
Os objetivos declarados do autor
estão expressos na dedicatória: autoinstrução e apresentação da vaidade para o
Rei — único que, sendo homem, é desprovido de vaidade, tendo uma natureza
diferente daquela dos demais seres humanos por sua participação direta na
Substância Divina. O Rei, destinatário preferencial das Reflexões, encontra-se fora da rede intersubjetiva forjada pela
vaidade (o mundo social), todos os demais homens, inclusive o próprio Matias
Aires, participam do império da vaidade.
Elaborado de acordo com os
preceitos da boa retórica, e informado pela técnica de “produzir os efeitos
adequados à audição”, o discurso das Reflexões
atua em “dois polos complementares: a convenção e a naturalidade” (HANSEN, 2006:
44). A convencionalidade utiliza de relações figurais previamente reconhecidas,
como analogia entre a passagem do tempo e as águas de um rio:
“as águas de uma fonte a cada
passo mudam; porque apenas deixam a brenha, ou rocha donde nascem, quando em
uma parte ficam sendo limo, em outra flor, e em outra diamante. Que outra coisa
mais é a natureza, do que uma perpétua, e singular metamorfose?” (Matias Aires,
num 09).
Já a naturalidade apela para a
agudeza da capacidade de relacionar elementos diferentes a partir da “razão
natural”, dando ao texto uma aparente leveza de leitura, simulando a oralidade.
Isso pode parecer afetação discursiva
ou mero formalismo linguístico, porém, dentro da lógica discursiva de Matias
Aires surge da adequação aos preceitos de gênero, que ao atrelar seu valor aos
juízos da recepção afirma o caráter relacional do discurso. Assim é que dentro
dos critérios escolhidos para a composição das Reflexões existe uma noção formal da recepção do texto, dos seus
destinatários, e, sobretudo do modo de legibilidade.
Tal relação entre autor e público
(ou entre retor e auditório) nas práticas letradas fundamenta-se num critério
de verossimilhança, em oposição a um critério de verdade universal. Toda a
adequação é relacional e circunstancial, e não se cristaliza numa oposição
binária entre falso–verdadeiro ou certo–errado. (HANSEN, 2006: 51).
Se a descoberta da ordem do
discurso retórico supõe descobrir quem fala e para quem se fala (PRADO JR,
2008), nas práticas letradas setecentistas essas categorias são definidas na
própria prática discursiva: o sujeito a quem se dirige o texto é modelado
juntamente com o autor, ambos, receptor e autor, são construídos como “honnete
homme”, ou, na Península Ibérica, o discreto, seu análogo.
A singularidade da cultura da
corte, sua ênfase no desempenho das funções sociais, faz com que as posições
desempenhadas sejam adaptáveis: as circunstâncias determinam o modo de agir, e
cada situação exige um desempenho. A capacidade adaptativa torna-se uma das
características mais valorizadas pela racionalidade de corte, “tanto é verdade
que apenas o acaso determina as ações do homem” diria o Cardeal Mazarin no seu
Breviário dos Políticos (1684, 1997).
“A realidade e o modo. Não basta
a substância, requer-se também a circunstância. Um mau modo tudo estraga, até a
justiça e a razão. O bom tudo supre; doura o não, adoça a verdade e enfeita até
a velhice. É grande o papel do como nas coisas, e o bom jeito é o taful das
coisas. O bel portar-se é a gala do viver, desempeço singular de todo bom
termo.” (GRACIÀN, 1996, XIV)
---
Fonte:
Manuella Luz de Oliveira Valinhas:
“A ideia de História em Matias Aires”. (Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História
Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da
PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientador: Prof.
Luiz de França Costa Lima Filho). Rio de Janeiro, 2012.
ótimo filósofo
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