22/11/2014

Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires

 Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens
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A forma de tratamento dos temas nas Reflexões

Matias Aires elabora uma obra descritiva, as Reflexões se dedicam a investigar causas e estabelecer relações para as ações humanas, a exemplo:

“Fazem os homens ludíbrio da mudança da vontade, por isso muitas vêzes somos firmes só por evitar o desprêzo, vindo a parecer persistência na vocação, o que só é constância na vaidade. Vivemos temerosos, de que as nossas ações se reputam como efeitos da nossa variedade: queremos mudar, mas tememos o parecer vários; e assim a constância na virtude não a devemos à vontade, mas ao receio; não a conservamos por gôsto, mas por vaidade”(Matias Aires 21)

O caráter acentuadamente descritivo do discurso de Matias Aires não impede momentos de caráter mais prescritivo e pedagógico, lembrando que a forma descritiva não carrega, nas retóricas antigas, a pecha de ser um “luxo analógico”.

“Nas retóricas antigas, essa relação de pressuposição implica que não se faça a posição descrever/narrar. Retoricamente, quando se trata de processos, a descrição integra anarratio; e, principalmente, quando se trata de pessoa, personagem ou coisa implicados em processos, ela se aplica na invenção dos tipos e seus caracteres (éthe) e paixões (pathe), segundo os quatro graus do encômio doutrinados por Aristóteles e reiterados pelo anônimo da Retórica a Herênio, por Quintiliano e Menandro. Quintiliano – e, por exemplo, muito depois dele, Erasmo – fala da narratio como rei factae aut ut factae utilis ad persuadendum expositio: exposição da coisa feita ou da coisa como feita útil para persuadir. A coisa feita  a ação particular, como a conquista da Gália, realizada por pessoa particular, como Júlio César, no gênero histórico – e a coisa como feita  a ação universal, como a conquista do Lácio, realizada por personagem universal, como Eneias, no gênero épico – podem ser apenas citadas brevemente, nos casos em que já são conhecidas pelo auditório. Mas o preceito de que as res factae e seus exempla devem ser amplificados e ornados descritivamente está sempre presente nos modelos de dilatação narrativa dos exercícios que os latinos chamaram de opera minora, os progymnasmata gregos, principalmente nos exercícios epidíticos, em que a amplificação é principal. Um desses modelos propostos como exercício para desenvolvimento de habilidades técnicas do orador “não se pode fugir do raio despendido de uma nuvem; o amor ainda nos alcança com mais pressa, e mais vigor, porque é raio que se forma dentro de nós mesmos: o valor consiste em arrancar a seta, por mais que fique despedaçado o peito.” (Matias Aires 101)

A ultima frase é ilustrativa do uso de uma certa retórica prescritiva na forma descritiva utilizada pelo autor: ao tratar de maneira pretensamente neutra uma situação que leva a agir virtuosamente, ele não postula a impossibilidade de fugir das paixões, mas apresenta aquilo que é o caminho para uma ação virtuosa. Contudo, a escolha de (tentar) seguir o caminho em direção à ação virtuosa cabe aos homens.

A organização formal das práticas letradas evidencia sua diferença nos gêneros retóricos, revelando a falta de autonomia dos discursos setecentistas.

Kossovitch afirma que a gramática de Condillac, “é também receituário porque prevê efeitos” (KOSSOVITCH, 2011: 232). Nas Reflexões, a articulação entre os conteúdos trabalhados e a ideia de eficácia não se dá de maneira direta: ela se realiza do ponto de vista dos efeitos. Essa pedagogia indireta se afirma na eficácia do entendimento e na ação esclarecida, porque traz o entendimento dos motivos que regem a ação, baseia-se na ratio e visa ao bem comum. A eficácia se afirma com a publicização de comportamentos convencionais e adequados e a capacidade de prever comportamentos e ações mantém o bom funcionamento do teatro do mundo. A moral convencional se realiza no público: nenhuma moral é eficaz se não ultrapassa o sujeito individual, sendo o contrário do padrão do homem virtuoso burguês, cujo ethos está bem representado nesse trecho de Paul Hazard:

“Já não nos interessa que o homem honesto (honnette homme) seja o nosso guia, pois foi ultrapassado. Demasiado vil é o preço pelo qual se adquirem as suas qualidades para que as invejemos; muita presunção, uma fortuna confortável, alguns vícios que mereciam a aprovação geral, constituíam o seu patrimônio; e nele não havia lugar para a virtude, e todos os homens honestos do mundo não valem um homem virtuoso” (HAZARD, 1974: 216) a narratiuncula, ao pé da letra “narraçãozinha”, amplificação descritiva usada pelos alunos latinos de oratória e, a partir do século XVI, pela Companhia de Jesus na educação de padres sermonistas. Da mesma maneira, as fábulas, com sua tipologia de animais alegóricos de virtudes e vícios que amplificam a ação principal narrada, ou achria, menção breve de sentenças e coisas memoráveis, são consideradas elementos narrativos aplicados como descrição de coisas, eventos, pessoas e como detalhes caracteriais e morais de personagens etc.” (HANSEN, Categorias Epiditicas da Ekphrasis.
<http://www.sibila.com.br/index.php/mapa-da-lingua/1295-categorias-epiditicas-da-ekphrasis->. Consultado em 29.jan.2010).

Nas práticas letradas antigas, cujas construções discursivas se baseiam na ordem, nos usos corretos das prescrições retóricas, o gênero e a forma não são prisões, mas antes, são os modos de expressão que são capazes de articular conteúdos e assim cumprir a função comunicativa, porque sancionados socialmente:

“A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições especificas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (cientifica, técnica publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, especificas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é: determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos de seu acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento” (BAKHTIN, 2003: 266)

O topoi retórico utilizado por Matias Aires pressupõe o enquadramento na literatura moral, naquilo que se agrupa como textos moralistas No sentido de moraliste, um investigador da alma humana; mobiliza um certo tipo de pedagogia, que não é a pedagogia comportamental como visto em “L’Honnete Homme ou L’Art de Plaire a la Court” (1634), de Faret. Este explicita, sobretudo, modos, adequações, e não se detém na investigação dos motivos que levam os homens a se relacionar com os outros homens.

Matias Aires não pretende desvendar ou tornar mais eficiente a vida do homem em sociedade, mas investigar o que leva à ação: não se preocupa com a performatividade, mas com aquilo que está antes da ação. Os fatores que motivam as ações nem sempre estão de acordo com o resultado delas: para um observador dos atos esse fato não teria importância. A origem não invalida, entretanto, o caráter positivo ou negativo das ações.

“A virtude, ainda que venha de um principio vicioso, sempre é virtude de algum modo, ou mais ou menos qualificada, o obrar bem por qualquer motivo que seja, é bom; as nossas ações não se determinam pela causa que mostram, mas por outra que não se vê; e entre todas as causas, aquela que consiste em uma vaidade inocente, é menos má. Que importa que a vaidade seja que incite o exercício do valor, da constância, da ciência e da justiça?” (Matias Aires 132)

Essa investigação daquilo que está antes do ato também desloca o sentido do ato para o seu efeito, na medida em que a relevância está sempre naquilo que a ação produz e não naquilo que ela é. Nesse ponto é aplicado o mesmo princípio de impossibilidade de conhecimento da substância das coisas: as ações humanas apenas são passíveis de conhecimento quando há qualificativos para julgá-las (em seus princípios ou nos efeitos).

A investigação do estatuto formal das Reflexões Sobre a Vaidade dos homens, bem como dos modos particulares do tratamento dos conceitos mais importantes mobilizados pelo autor para a construção do texto não pretende nem esgotar os fundamentos da prática textual e nem alinhar o autor a uma corrente de pensamento, mas perceber relações entre os modos de apresentação das temáticas e as estratégias retórico-discusivas que informavam as práticas textuais no momento histórico da elaboração do texto.

Sendo assim, para efetuarmos uma análise mais adequada das categorias empregadas por Matias Aires no seu presente histórico, atentando para o sentido particular e tentando recompor uma “primeira legibilidade” do texto, devemos nos voltar às premissas formais que irão regular sua composição. Retoricamente o texto não deve, pois, ser abordado a partir das categorias pós-iluministas e pós-românticas de análise discursiva já que, tendo sido construído de acordo com uma orientação diversa tanto do modelo de neutralidade recorrente no discurso iluminista (KOSSOVITCH, 2011) quanto pelo modelo subjetivista romântico, é preciso pensar na construção dessas Reflexões como a prática da adequação entre os objetivos do texto e a forma como esses objetivos seriam atingidos.

Os objetivos declarados do autor estão expressos na dedicatória: autoinstrução e apresentação da vaidade para o Rei — único que, sendo homem, é desprovido de vaidade, tendo uma natureza diferente daquela dos demais seres humanos por sua participação direta na Substância Divina. O Rei, destinatário preferencial das Reflexões, encontra-se fora da rede intersubjetiva forjada pela vaidade (o mundo social), todos os demais homens, inclusive o próprio Matias Aires, participam do império da vaidade.

Elaborado de acordo com os preceitos da boa retórica, e informado pela técnica de “produzir os efeitos adequados à audição”, o discurso das Reflexões atua em “dois polos complementares: a convenção e a naturalidade” (HANSEN, 2006: 44). A convencionalidade utiliza de relações figurais previamente reconhecidas, como analogia entre a passagem do tempo e as águas de um rio:

“as águas de uma fonte a cada passo mudam; porque apenas deixam a brenha, ou rocha donde nascem, quando em uma parte ficam sendo limo, em outra flor, e em outra diamante. Que outra coisa mais é a natureza, do que uma perpétua, e singular metamorfose?” (Matias Aires, num 09).

Já a naturalidade apela para a agudeza da capacidade de relacionar elementos diferentes a partir da “razão natural”, dando ao texto uma aparente leveza de leitura, simulando a oralidade.

Isso pode parecer afetação discursiva ou mero formalismo linguístico, porém, dentro da lógica discursiva de Matias Aires surge da adequação aos preceitos de gênero, que ao atrelar seu valor aos juízos da recepção afirma o caráter relacional do discurso. Assim é que dentro dos critérios escolhidos para a composição das Reflexões existe uma noção formal da recepção do texto, dos seus destinatários, e, sobretudo do modo de legibilidade.

Tal relação entre autor e público (ou entre retor e auditório) nas práticas letradas fundamenta-se num critério de verossimilhança, em oposição a um critério de verdade universal. Toda a adequação é relacional e circunstancial, e não se cristaliza numa oposição binária entre falso–verdadeiro ou certo–errado. (HANSEN, 2006: 51).

Se a descoberta da ordem do discurso retórico supõe descobrir quem fala e para quem se fala (PRADO JR, 2008), nas práticas letradas setecentistas essas categorias são definidas na própria prática discursiva: o sujeito a quem se dirige o texto é modelado juntamente com o autor, ambos, receptor e autor, são construídos como “honnete homme”, ou, na Península Ibérica, o discreto, seu análogo.

26 A Razão Natural é dom atribuído por Deus aos homens. Nesse sentido, natural se relaciona à capacidade do uso do raciocínio de forma adequada, nada tendo em relação aos fenômenos da natureza. Assim é que a nós pode parecer demasiado afetado um discurso agudo e ou engenhoso, e que na forma mentis do vivente das monarquias ibéricas do século XVIII é qualificado como “natural”.

A singularidade da cultura da corte, sua ênfase no desempenho das funções sociais, faz com que as posições desempenhadas sejam adaptáveis: as circunstâncias determinam o modo de agir, e cada situação exige um desempenho. A capacidade adaptativa torna-se uma das características mais valorizadas pela racionalidade de corte, “tanto é verdade que apenas o acaso determina as ações do homem” diria o Cardeal Mazarin no seu Breviário dos Políticos (1684, 1997).

“A realidade e o modo. Não basta a substância, requer-se também a circunstância. Um mau modo tudo estraga, até a justiça e a razão. O bom tudo supre; doura o não, adoça a verdade e enfeita até a velhice. É grande o papel do como nas coisas, e o bom jeito é o taful das coisas. O bel portar-se é a gala do viver, desempeço singular de todo bom termo.” (GRACIÀN, 1996, XIV)


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Fonte:

Manuella Luz de Oliveira Valinhas: “A ideia de História em Matias Aires”. (Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientador: Prof. Luiz de França Costa Lima Filho). Rio de Janeiro, 2012.

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