23/11/2014

No Declínio, de Visconde de Taunay

 No Declínio, de Visconde de Taunay
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A obra do Visconde de Taunay nos (tortuosos) caminhos da ficção

As descrições da paisagem brasileira, feitas por Alfredo Taunay, em especial, da paisagem mato-grossense, que propomos a analisar nesta tese, ganharam dimensão a partir da sua primeira obra Scenas de Viagem (1868), cujos manuscritos foram “lidos e corrigidos a lápis pelo Imperador” (TAUNAY, 1948, pp. 154, 301 e 302). Nela, há uma tentativa não só de registrar as impressões do olhar-viajante, mas de sintetizar muito do que escreveu em seguida.

Com essa obra, nota-se forte vinculação com as anotações do Relatório Geral, redigido durante a participação na guerra, em 1865. O relato encontra-se dividido em dois itinerários, do Rio de Janeiro ao Coxim, e do rio Taquari à Vila de Miranda, constituindo-se em um diário minucioso da “saída da corte” (p. 81), em 1º de abril de 1865, a 16 de outubro de 1867, quando “muitos dos nossos companheiros retiram-se de fadiga a buscarem em outros climas o único meio para lutar com tão medonha enfermidade, isto é, um ar mais puro, uma atmosphera menos corrupta e cheia de miasmas paludosos” (Alfredo TAUNAY, 1867, p. 276-7).

Publicado em 1867, é reimpresso com retificação, notas e cuidadosa revisão pelo próprio autor, na Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 37, parte segunda, que utilizo neste trabalho. A presença das notas, nesta Revista, dá ao  Relatório uma abrangência significativa pelos ingredientes informativos, críticos e, principalmente, pelo que considero desvios oficiais, onde é possível perceber os detalhes particulares do autor que servem, não só para ampliar a compreensão dos dados, mas para marcar, pausadamente, as impressões e sensações que aqueles fatos deixaram na memória. Essa memória é “indicadora do movimento de determinado grupo que, ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais” (POLLAK, 1989, p. 3).

O fato de determinados elementos da obra de Taunay pertencerem a uma região específica, não quer isso dizer que ela [a obra] se regionaliza, mas acentua a noção de que a memória nacional (pretendida por Taunay) constitui a forma mais completa de uma memória coletiva, como explica Halwachs (1990), isto é, a lembrança dos outros são reconstruídas para integrar a memória coletiva da nação. Por outro lado, nas lembranças existem os silêncios/esquecimentos, cujas fronteiras estão em constante deslocamento, pois são organizadas pela linguagem, portanto, passível de intervenções.

Desta forma, pode-se dizer que as notas marginais do Relatório ampliam, num outro momento (o da revisão), os dados coletados em primeira mão, constituindo paratextos de outras anotações ou da própria memória. Pressupõe-se que foram reutilizados em variados momentos da sua obra, como dados reais ou como elemento ficcional: “Foi o que fez o substituto no commando [...], que ordenou a partida d’aquelle local fatal a 24 de junho (77).[...]”. A nota numerada (77) diz o seguinte: 

A força deu um verdadeiro arranco. A transposição dos pantanes foi uma coisa horrorosa. Caminharam os soldados dias inteiros com agua pela cintura e, começando o sol a seccar os charcos, mais difficil tornou-se ainda romper pelos extenso lameiros. Nos pantanaes de Madre e Cangalha em que o lodo não dava pé, muitos lá ficaram atolados para sempre. O estivado coberto de feixes de macega serviu para os que passaram primeiro: a retaguarda, mulheres e bagagens tiveram que metter n’uma lama visguenta que serviu de abysmo á muita gente. O desespero salvou a outros (p. 264). 

Tal sentimento de certo heroísmo dos soldados brasileiros fará parte da composição da obra    A Retirada da Laguna, tanto nos momentos da caminhada em direção ao cenário da guerra, como no retorno forçado. O estilo narrativo da nota interrompe a descrição, expandindo-a. O leitor, acostumado ao tom oficial do relato, é absorvido pelo espetáculo dramático, ficando entregue à “pausa” colocada pelo texto (HAMON, 1976, p. 60). Neste caso, o diário visto como relação do acontecimento, como memória, relato e crônica – seriação datada dos fatos cotidianos – remete a pequenas histórias, implicando, portanto, uma subjetividade, em que o sujeito “constitui o seu traço distintivo”, porque a enunciação é que interessa em primeiro plano, inscrevendo o processo de produção e a forma como o sujeito se insere naquilo que diz (op. cit., p. 13).

Assim, à necessidade de contar, aliada ao prazer da história (para Barthes, 1998, “o sabor da palavra”), junta-se ao “prazer do discurso”, que gera o prazer do conhecimento (HAMON, ibidem, p. 15). De certa forma, é como Taunay buscava compor sua narrativa, mesmo no calor da caminhada. Vê-se, no roteiro percorrido pela Comissão, as diversas imagens que se configuram, ora em harmoniosa sintonia do homem com a natureza, ora em inquietantes descrições da “influencia lethal dos pântanos” (Alfredo TAUNAY, 1874, p.277). As imagens são sempre fiéis ao observado e ao vivido: o registro, os estudos e as virtudes que imperam no soldado brasileiro, deixando bem patentes o seu “caracter eminentemente soffredor e resignado e a subordinação e disciplina que lhe são naturaes” (idem, ibidem).

Ambas as “fidelidades”, ao objeto observado e à postura dos homens recrutados para a guerra, serão componentes dessa imagem de que tratamos, visto que estarão baseadas nas anotações: “Em Uberaba comecei a redigir o Relatório Geral da Comissão de Engenheiros, reunindo as notas que os colegas me entregavam e afinal deixaram de ministrar-me, o que se tornou mais cômodo para mim e para eles. Aos meus cuidados ficou tudo entregue” (Alfredo TAUNAY, 1948, p. 132). Nesse panorama, a escrita é produzida sob o efeito direto da guerra em Mato Grosso, isto é, de 1865 a 1868, surgem quase que concomitantemente, três obras: (a)Relatório Geral da Commissão de Engenheiros junto às forças em expedição para a Província de Matto-Grosso; (b) Scenas de Viagem e (c) a primeira parte, em francês, de A Retirada da Laguna.

Essas obras terão em comum, além do cenário da guerra, sentimentos semelhantes, porque foram frutos de uma experiência-limite do jovem escritor tomado pelo clima de tensão e pelas marcas indeléveis deixadas pela vivência e pelo exercício estético. Quando Taunay registra o cenário da guerra, comporta-se como relator do diário que dá origem ao Relatório, e como recriador desses fatos (ficcionista), nas outras duas obras.

Tantos choques, porém, tantos e tão duros trabalhos deviam ter consequencias que mais vieram fazer resplandecer o espirito de resignação e dedicação já tão experimentado da columna expedicionária. Moléstia terrível e desconhecida até então n’esses lugares grassa mortífera entre os officaes e soldados. A paralysia dos membros inferiores rouba-nos vidas preciosas, e em menos de quarenta dias oito officaes succumbem. Muitos soldados morrem (Relatório Geral, 1867, p. 267).

As mil difficuldades que embaração a marcha das forças, a peste, a fome que acoommeterão os nossos infelizes soldados, o fallecimento de officiaes e afinal do commandante o bravo general Galvão, erão as causas d’essa demora desesperadora que, retendo a expedição em mortíferos paúes, ia, mezes depois, produzir a medonha enfermidade, - a paralysia reflexa -, adquirida n’aquelle período fatal (Scenas de Viagem, 1868, p. 107)

Seguiu-se a este dia cruel uma noite tal como temíamos. No dia 20, pela manhã, o tempo, a princípio chuvoso, clareou, e o sol logo se tornou ardente; os animais avançavam pouco, os homens se arrastavam, com a morte sob os olhos e dentro do coração (A Retirada da Laguna [1868] 1997, p. 190).

Nos três fragmentos, é marcante a imagem da destruição e da morte, símbolos de uma situação política pela qual passava a própria nação. A guerra sinaliza a ruína, pois é como a doença que vai minando as entranhas, paralisa os membros e anuncia a morte. O tom mais oficial, do primeiro fragmento, mostra o “narrador descritivo” (ALPERS, 1999), que olha os fatos de dentro, portanto, expectador e participante. Nos outros dois, o tom é mais pessoal, não deixando dúvidas sobre o desfile de infortúnios pelos quais a Comissão de Engenheiros teria que passar. As impressões particulares são mais fortes, porque o narrador está tomado pelos acontecimentos que marcam homens perdidos em meio a uma guerra de parcos e infrutíferos planejamentos, como atesta Sérgio Medeiros (2004) em suas análises sobre as memórias deixadas por Taunay.

Na análise de Hamon (1976, p. 57), o cenário passa para o primeiro plano pois há interrupção na narrativa. Aos olhos do leitor, as circunstâncias se pormenorizam (choques, resignação, moléstias, paralisia, morte...), numa gradação que vai do movimento à inércia, da vida à morte, como é o próprio movimento da guerra, presente nos trechos citados acima.

Esses mesmos sintomas estarão presentes nas obras que se seguirão a essas três. Embora tenham sido escritas na segunda metade da década de 60, só circularão nas primeiras décadas do século XX: Visões do Sertão, Marcha das Forças (Expedição de Matto Grosso) e   Em  Mato Grosso Invadido (1866-1867 – Do Rio de Janeiro ao Coxim), reeditadas por Afonso d’Escragnolle Taunay, filho do escritor, em 1923, 1928 e 1929, respectivamente.

Sem outra preocupação, pelo que se pôde observar, senão a de comercializar a obra – pode-se até dizer que o historiador subestima a obra do pai – essas edições seriam o resultado de compilação de inéditos, de publicações na imprensa, de reedições, a partir do  Relatório do Ministério da Guerra e da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de forma bastante desordenada. Tal fato trouxe certa dificuldade para a composição exata da cronologia do conjunto da produção do Visconde de Taunay. Embora o objeto desta tese seja o da exposição crítica da sua obra ambientada em Mato Grosso, não foi possível desvencilhar-se do conjunto dela.

Pressente-se que, entre as obras, há uma certa tendência de esboço de um projeto literário voltado, não só para a necessidade de cumprir a tarefa a que se viu destinado, mas de construir uma imagem do interior brasileiro que, infelizmente, não foi observado pelo filho durante a publicação dos inéditos.

 Estamos, pois, dividindo a obra de Taunay, escrita e publicada em vida, em três fases: a primeira vai até 1870, quando retorna da sua segunda participação na guerra contra o Paraguai e conclui o Diário do Exército, do qual foram impressos apenas quinhentos exemplares, pela Tipografia Nacional. Tem a Guerra do Paraguai como propósito maior da escrita, exercendo fortes influências na sua formação de escritor e, conseqüentemente, no conjunto de sua produção intelectual.

A segunda, de 1871 a 1889, é a mais profícua, tanto pela participação direta na vida pública, quanto pelo acompanhamento feito, pelo próprio autor, das várias edições dos seus textos. Nesse período, é lançado o romance de estréia    A Mocidade de Trajano, sob o pseudônimo de Sílvio Dinarte, pela Tipografia Nacional do Rio de Janeiro, e a primeira versão integral de   A Retirada da Laguna,  pela mesma gráfica, cujas anotações ainda passariam por um processo de reelaboração. Esta fase constará das produções decorrentes das anotações de viagens e da sua participação na vida pública, tendo publicado, de 1872 a 1874, os romances Inocência (1872), sua obra mais conhecida, mais editada e mais traduzida em outros idiomas, e Lágrimas do Coração (1873) – primeiro romance urbano, editado por F. Thompson, no Rio de Janeiro.

A terceira fase vai da proclamação da República até 1899, ano do seu falecimento, quando sai publicada a obra No declínio. Nesse período estará escrevendo Questões de imigração (1889); Trechos de minha vida(1890), posteriormente designada apenas como Memórias; A cidade de Mato Grosso (1891); Império e República (1891); o romance  O Encilhamento (1894); a  Biografia do Visconde de Beaurepaire Rohan (1894);  Dias de Guerra e de sertão (1894);  Como me tornei kneippista (1896); A minha escolha senatorial, Reminiscências e Homens e cousas do Império (1897); reedição de  Ouro sobre Azul (1897);  Estrangeiros ilustres no Brasil (1897). Desta última, salienta-se o importante trabalho biográfico sobre uma das figuras mais ilustres da vida pública de Mato Grosso, Augusto Leverger, o Barão de Melgaço, um almirante francês que muitos estudos desenvolveu durante suas viagens pelo Brasil, especificamente sobre a região do Estado. Cita-se, ainda,  Apontamentos biográficos sobre o capitão de artilharia João Batista Marques da Cruz (1897) e a segunda edição de Dias de guerra e de sertão (1898).

Nessa proliferação de escritos, Taunay parece posicionar-se como um escritor em exercício. Recria suas impressões e lembranças, relê seu contexto e revisita a memória. Neles, privilegia a constituição de uma imagem de Brasil. Imagem, muitas vezes, repetitiva, mas que recompõe quadros de um tempo, de um lugar e de um ideário de época, com pouca renovação do tema. Um trabalho de depuramento da memória e da reelaboração constante dos dados coletados. Tais elaborações estarão presentes nas obras Ierecê a guaná, Histórias Brazileiras, de 1784, e, ainda, as anotações de Narrativas Militares (1878). Aparece, também, a primeira tradução de A Retirada da Laguna (1874), por Salvador de Mendonça, pela Tipografia Americana, do Rio de Janeiro. Em francês, redige “com destino a uma revista européia” (WIMMER, 1992, p. 49), O Visconde do Rio Branco: esboço biográfico, publicada, no Rio de Janeiro, pela Leuzinger. Em 1875, publica o romance   Ouro sobre Azul, que surgiu com o título Razão e Coração, (como em Jane Austen (1775-1817)), sob o pseudônimo de Heitor Malheiros, em folhetim, na  Gazeta de Noticias, reeditado em volume, em 1894, pela Livraria Magalhães. Faz também a tradução da obra Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas, de Hercules Florence, cujos manuscritos tinham estado em poder da família Taunay, doados pelo próprio Florence. É uma obra relevante para os estudos da Expedição Langsdorff (1825 – 1829), pelas Províncias de São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará, após alguns malogrados acontecimentos.

Em 1876, Taunay é nomeado Presidente da Província de Santa Catarina, ficando até 1877, ano em que viaja para a Europa. Nessa viagem será incumbido, por D. Pedro II, de procurar amigos seus em diversas cidades européias. De Paris, escreverá ao Imperador: “Devo, num destes próximos dias, ir visitar Victor Hugo” (TAUNAY [1878] 1933, p. 188). A relação com o mundo literário e com a viagem é uma constante na vida do escritor.

 Em 1879, é publicada em Paris A Retirada da Laguna, com prefácio e revisão do escritor francês Xavier Raymond. Desde 1868, esta obra sofrerá várias edições: a de 1871 (versão integral, lida e impressa por ordem do Visconde do Rio Branco, à época, Ministro da Guerra); em 1874, a primeira tradução do francês, por Salvador de Mendonça; a de 1879, em Paris. A cargo do filho Afonso Taunay, há a edição de 1901, traduzida pelo Barão Ramiz Galvão, pela Editora Melhoramentos. Por último, a versão de Sérgio Medeiros, de 1997, pela Companhia das Letras. Em Mato Gosso do Sul, existem estudos e adaptações das obras, tais como: Alma do Brasil (primeiro filme feito no Estado, em 1932, com realização de A. Wulfes e L. Luxador – um enredo original, atraente, desenvolvido no lendário palco da retirada de Laguna); Retirada da Laguna revivida, de 1979; Tempo de Taunay, de 1986; Mato Grosso do Sul na obra de Taunay, de Octávio Gonçalves Gomes (1991); 600 léguas a pé, de Acyr Vaz Guimarães (1998), dados que nos foram fornecidos por Paulo Correa de Oliveira, um dos adaptadores da obra de Taunay para o teatro.

 O ano de 1880 vai encontrá-lo escrevendo dramaturgia e colaborando nos Jornais Gazeta de Notícias e Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro. Em seguida é eleito deputado por Santa Catarina. Nesse ano, perde o pai Felix Emílio Taunay. Em 1882, publica os relatos de viagem em Ceos e Terras do Brazil, obra reeditada em 1929, pela Editora Melhoramentos, de São Paulo. Em 1883 publica Estudos Críticos de Literatura e Filologia, livro reimpresso em 1931, pela mesma Editora. Em seguida (1884), publicou Esboço Biográfico do Visconde do Rio Branco, pela Leuzinger, também do Rio.

Em 1885, pede demissão do serviço do Exército, iniciando sua carreira política e distanciando-se da literatura. Com a volta do Partido Conservador ao poder, é nomeado Presidente da Província do Paraná. No ano seguinte, é reeleito deputado por Santa Catarina e meses depois é escolhido Senador pela mesma, numa lista tríplice. Nesse entremeio das atividades públicas publica o drama em quatro atos Amélia Smith e dedica-se aos escritos políticos (Casamento CivilA Nacionalização;  Naturalização Tácita).

Com o advento da Abolição da Escravatura e, no ano seguinte, da Proclamação da República, Taunay perde as regalias de homem público e intensifica as lides literárias, mantendo-se, contudo, fiel ao deposto Imperador. Em setembro de 1889, fora agraciado com o título de Visconde de Taunay pelas mãos de D. Pedro II. A crise financeira do país deixa-o menos abastado, já combalido pelo diabetes, que se manifestava desde 1894, quando faz o tratamento do Monsenhor Sebastião Kneipp, de quem se tornará adepto, registrando, em obra específica (1895), os processos e aplicação do novo método terapêutico de exposição do corpo à água e à superfície frias.

O ano de 1890 é importante na sua cronologia, porque dá início à redação de Memórias, apontamentos auto-biográficos da maior importância para a compreensão do conjunto de sua obra.

Em seguida (1891), sai publicada A cidade de Matto-Grosso (antiga Villa Bela: o Rio Guaporé e sua mais ilustre victima, na Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 54, parte I, pela Companhia Typographica do Brazil, no Rio de Janeiro. Esta memória, reunida a outros escritos deixados pelo autor, foi reeditada pelo seu filho, o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay, em 1923, com o título A cidade do ouro e das ruínas, pela Editora Melhoramentos, de São Paulo. Essa obra é centralizada na figura de Adrien Aimé Taunay, tio do Visconde de Taunay, que teve morte trágica no rio Guaporé, em Vila Bela, Mato Grosso. Adrien participou, como desenhista, da Expedição Langsdorff87, elaborando estudos iconográficos sobre os índios, o sertanejo e alguns traços da paisagem de Mato Grosso.

Sobre a obra, dirá Matos (2001), quando de sua publicação pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso: “Dos inúmeros livros do autor de Inocência versando sobre Mato Grosso, este é o único que se refere particularmente à parte setentrional e central do grande Estado, pois todos os outros, motivados que foram pela Guerra do Paraguai, referem-se ao atualmente denominado Mato Grosso do Sul” (p. 7).

Diz ainda o apresentador que, para a edição em livro, em 1923, Afonso de Taunay acrescenta numerosos capítulos encontrados no acervo do pai, embora muita coisa ainda ficasse originalmente correspondente ao que, no presente volume, é dado como primeira parte. Informa Afonso de Taunay que o autor interrompeu a redação “à espera de apontamentos que de Mato Grosso lhe enviavam amigos e informadores eruditos”. Mas, não chegou a escrever a segunda parte. Ao falecer, informa ainda o filho, “pouca coisa se encontrou em seu arquivo referente a esta monografia”. E nessa “pouca coisa” ainda bem desordenada, dela se aproveitou os cinco capítulos que, na edição de 1923, figuram como “segunda parte” e mais “uns fragmentos” para o total dos sete que passaram a integrar o livro” (p. 8).

Isso, de certa forma, já havia sido esclarecido por Affonso Taunay, no prefácio da edição de 1923, cuja anotação “ainda bem desordenada” talvez se desse à falta de tempo do escritor para concluir suas anotações ou faziam parte de anotações que já haviam sido utilizadas:
  
Cessado o trabalho sobre Matto Grosso não o retomou mais. Ao fallecer, pouca cousa se encontrou no seu archivo referente a esta monographia; infelizmente muitíssimo menos do que já preparara. Completos se depararam os capítulos numerados XVIII, XIX, XX e XXI. Do XXII apenas havia a primeira lauda. Dos anteriores a XVIII nada se achou, assim como quanto aos de numero XXIII a XXIX. O XXX estava completo, do XXXI existiam as primeiras paginas. Assim, pelo menos, estavam redigidos trinta e um capítulos da segunda parte do estudo matto grossense. Delle foi possível descobrir os cinco aqui transcriptos, e mais uns fragmentos (Affonso TAUNAY, 1923).

Parece que os manuscritos se perderam ou foram escritos à medida que as informações iam chegando. Os manuscritos de Taunay não foram encontrados na Biblioteca Nacional e nem no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. A informação que tivemos foi que havia um “Acervo Taunay”, mas que nada dele foi encontrado. É possível que essa denominação do acervo se deve às publicações feitas pela Biblioteca do Exército, que nomeou de “Coleção Taunay, Série Letras Militares”, as Edições comemorativas da Editora, a exemplo, dentre outros, dos dois volumes de  Viagem ao redor do Brasil, de João Severiano da Fonseca, de 1986. Daí, talvez, a “desorganização” de que fala Matos. Apesar de se constituir em fonte de estudo sobre Mato Grosso, esta obra de Taunay é a única, dentre as que aqui foram relacionadas, em que ele não viveu a experiência da viagem, como se nota nas citações acima, onde o mesmo historiador ressalta, ainda, que

 a ordenação da matéria nem sempre é muito correta e, curiosamente, nenhum dos títulos, nem o original, nem o que consta da reedição de 1923, corresponde exatamente ao que o livro contém. É estranho, por exemplo, que ao lembrar o final de Vila Bela, que nos seus últimos anos não apresentava nada do que havia no tempo em que era capital, passe, logo no capítulo seguinte, a tratar das tristes ocorrências de 1834, que ele chega a denominar ‘São Bartolomeu dos mato-grossenses’, lamentável episódio que se tornou conhecido por ‘Rusga’. E nada menos que seis capítulos são dedicados a essa ocorrência, a cujo estudo, segundo sua própria confissão, foi arrastado ‘com repugnância’ e por assim dizer mau grado seu, ‘impulsionado pelo desejo de conhecer e esmerilhar a verdade, por mais dolorosa que fosse, e de assentar para outrem base de mais profunda investigação’. Aliás a triste ocorrência tem despertado modernamente o interesse de alguns pesquisadores da história de Cuiabá e que nem sempre concordam com o que foi exposto pelo Visconde de Taunay. E quando o consideramos deslocado do livro, simplesmente lembramos que ele nada tem com a cidade do ouro e das ruínas [...] (MATOS, 2001, p. 9).

Essa aparente confusão leva Rubens de Mendonça (2000) a dizer que o militar, com o qual o Visconde de Taunay se correspondia, já apresentava problemas mentais, quando prestou alguns depoimentos ao escritor. Apesar destas considerações e do exercício de cruzamento das informações que Taunay costumava fazer, tanto Mendonça, como Odilon de Matos não desmerecem a obra, muito pelo contrário, colocam-na como referencial de grande interesse para as pesquisas   sobre   Mato Grosso. Ressalta-se, neste ponto, o exercício de memória feito por Taunay, o que torna a obra, de certa forma, singular pela multiplicidade das investigações, numa tentativa de organizar a documentação, a ponto de transformá-la em referencial obrigatório para os estudiosos da região. O ano de 1892 será o da redação da “Introdução” das  Memórias (Petrópolis 26/06/1892). Taunay antecipa a data prefixada e confia os manuscritos (primeiros tomos da obra em andamento) à Arca de Sigilo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Estas recomendações serão publicadas no Jornal Gazeta de Notícias de 14/01/1898, registrando seu desejo de como deveria ser impressa a obra Memórias. No ano seguinte, continua a sua redação, levando a narrativa até meados de 1869, ano em que participa da Campanha da Cordilheira, no Paraguai, juntamente com o Conde d’Eu. Em 1894 aconteceram graves crises de saúde, vencidas temporariamente pelo tratamento do Monsenhor Sebastião Kneipp. Nessa fase, foram publicadas as obras O Encilhamento (1894); a biografia de Visconde de Beaurepaire Rohan, na Revista do IHGB (1895); A Minha escolha SenatorialReminiscênciasHomens e coisas do Império (1898) e em 1899,    O Declínio, sua última obra publicada originalmente em folhetim (1898), na Gazeta da Tarde e em volume, por Ribeiro Macedo e Cia., em 1899.

 Isso significa que, a partir de 1870, Taunay passa a entremear seus escritos sobre a guerra com a obra de ficção, numa clara demonstração da sua participação na vida social e literária brasileira. Dois anos após o seu falecimento, aparece a tradução para o português de A Retirada da Laguna pelo Barão de Ramiz Galvão (1901), tida por Sérgio Medeiros, na introdução que faz para a edição da Companhia da Letras (1997), como a melhor versão da obra de Taunay.

Encerra-se, assim, a vida do escritor, mas a sua obra continuou a ser publicada, por iniciativa do filho Affonso Taunay, conhecido historiador. A partir de 1920, surgem as várias reedições e a publicação de inéditos do escritor, em poder da família, na seguinte ordem: Dias de guerra e de sertão (coletânea das publicações em jornais, pelas Editoras Monteiro Lobato e Melhoramentos, em 1920, 1923 e 1927, respectivamente); Trechos da minha vidaFilologia Crítica (Melhoramentos, 1921); A cidade do ouro e das ruínas (Melhoramentos, 1923); reedição em dois volumes do Diário do Exército de 1870, com os subtítulos A Campanha da Cordilheira e De Campo Grande a Aquidaban (Melhoramentos, 1926); Cartas de Campanha, correspondências da viagem como relator do Conde d’Eu (1929 e 1942); Edição francesa de A Retirada da Laguna, com prefácio de Jean Soublin, pela Phébus, Paris (1995).

Ultimamente, a obra do Visconde de Taunay tem merecido especial atenção do antropólogo Sérgio Medeiros, que preparou as reedições de A Retirada da Laguna (Companhia das Letras, 1997), do conto Ierecê a guaná (2000) e das Memórias (2004), as duas últimas pela Editora Iluminuras. Empenho louvável que promete a organização do seu acervo, o que facilitará, sobremaneira, o manuseio e a compreensão mais acurada de toda a obra de Taunay.


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Fonte:
Olga Maria Castrillon-Mendes: Taunay viajante e a construção da   imagética de Mato Grosso”. (Tese apresentada ao Curso de Letras do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel. Unicamp - Instituto de Estudos da Linguagem). Campinas, 2007.

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