18/10/2014

Entre a missa e o almoço (Teatro), de Artur Azevedo

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Os gêneros cômicos no Brasil da passagem do século

Ao longo da história do teatro brasileiro, a comédia foi sempre o gênero pelo qual “desfilaram com maior felicidade os tipos característicos desta sociedade brasileira”. Permanecendo distanciados das expectativas e por extensão dos limites estreitos definidos pela crítica especializada, os nossos comediógrafos, cada um a seu tempo, fizeram o povo rir através da crítica de costumes, vocação primeira da comédia. Neste sentido, a pesquisadora Claudia Braga explica que o teatro brasileiro, na virada do século, já tinha uma tradição voltada para a produção de peças pertencentes aos gêneros cômicos, o que teria sido um motivo para o conhecimento técnico teatral que possuíam os comediógrafos desse período.

Fundamentalmente, dentre os subgêneros possíveis da comédia, aqueles que se tornaram mais populares no Brasil da passagem do século foram os relacionados ao teatro musicado. Artur Azevedo, que percorreu os gêneros cômicos “de alto a baixo”, soube encantar o público em espetáculos baseados na alegria e na música ligeira. A comédia de costumes, que se iniciou nos primeiros anos do século XIX e já contava com uma tradição de autores desde as bem sucedidas apresentações de Martins Pena, continuou a chamar a atenção do público e aos poucos, foram surgindo inovações estéticas que possibilitaram uma proximidade ainda maior do público com as representações de caráter cômico. Essas inovações, no entanto, tornaram-se ainda mais mal vistas pela crítica, pois ocupavam um lugar na hierarquia de gêneros inferior ao da própria comédia de costumes.

No final da década de 1850, fora representada na França a peça Orphée aux Enfers, um tipo de peça teatral em que a música ganhava especial destaque, por vezes se sobressaindo ao texto. Era a criação da opereta, gênero em que o enredo cênico se misturava à música e à dança alegre, em que muitas vezes estava presente o famoso cancã. No Brasil, abriu-se espaço para traduções, em que se mantinha a música e algumas coreografias, mas a ação era transferida para o Brasil. O gênero tornou-se extremamente popular e ao mesmo tempo em que as operetas francesas eram encenadas em sua língua original no Alcazar, as versões brasileiras se multiplicavam.

Em 1876, Artur Azevedo teria produzido a sua primeira paródia de opereta, A Filha de Maria Angu, que teve mais de cem representações naquele ano. Após ter alcançado familiaridade com o gênero através das traduções, o autor escreveu operetas originais, com texto e música brasileiros. É o caso de Os Noivos e a Princesa dos Cajueiros, encenada em 1880.

Outro gênero de grande sucesso no período foi a mágica, no qual o texto teatral serve como pretexto para uma encenação recheada de surpresas e truques. O enredo em geral era cômico, mas também poderia ser alegórico ou de fundo moralista e as personagens em sua maioria eram fadas, gnomos e outros seres sobrenaturais. Era um tipo de representação em que o texto adquiria um caráter bastante secundário diante do trabalho do maquinista e do cenógrafo, que ganhavam destaque nos anúncios de jornais. Assim compreendem-se as declarações de pesar por parte da crítica ao observarem o crescimento de gêneros em que o texto (e a literatura) cada vez mais era colocado em segundo plano.
  
A verdade é que o teatro se afastava das ditas pretensões literárias na mesma medida em que se aproximava de um novo público, completamente voltado para o teatro de diversão. Esse tipo de teatro tornou-se um empreendimento comercial muito lucrativo, a ponto de Larissa de Oliveira Neves afirmar que se tratava de uma primeira indústria cultural brasileira, ainda que repleta de altos e baixos para artistas e empresários. A arte teatral tornava-se então, e pela primeira vez, comercializável, o que trouxe como conseqüência a não aceitação dos gêneros ligeiros – a opereta, a mágica, as revistas de ano e as burletas – diante da alegação de que atender ao gosto do público significava “rebaixar a arte dramática a uma simples atividade de compra e venda”.

De forma geral, as companhias teatrais de então escolhiam seu repertório de acordo com o tipo de espectador que freqüentavam os teatros e deste modo, também os escritores dividiam-se entre aqueles que escolhiam escrever textos capazes de agradar o “público” e aqueles que se preocupavam em produzir obras consideradas de caráter elevado e que, portanto, atingissem as expectativas da crítica teatral e da elite intelectualizada. Artur Azevedo foi um dos poucos escritores que escreveu para os dois tipos de platéia, como afirma Neves: “Ao escrever uma peça, ele sabia antecipadamente a quem o texto seria destinado; por conta disso, encontramos em sua obra exemplos dos diferentes gêneros teatrais”.

Com a proximidade do final do século XIX, foi ocorrendo uma mudança com relação às classes sociais daqueles que freqüentavam o teatro, pois a arte se tornava cada vez mais popular. Segundo dados levantados por Neves, o valor dos ingressos para as “gerais” na década de 1890 era comparável ao preço da passagem de ida e volta de um bonde entre os pontos mais distantes da cidade do Rio de Janeiro. O público, portanto, desses teatros populares provavelmente era formado por trabalhadores especializados, funcionários públicos ou ambulantes, pessoas de baixo poder aquisitivo, mas que poderiam pagar uma entrada no teatro vez ou outra.

Se levarmos em consideração que nesse período um grande sucesso teatral atingia cerca de cem representações com casa cheia e que a elite intelectualizada desprezava esse tipo de espetáculo, podemos concluir que a grande maioria das pessoas que tinham condições financeiras mínimas para tanto freqüentava o teatro. Segundo dados levantados por Sylvia Damázio, nessa época, apenas 14% da população sabia ler e escrever, o que significa que a maioria dos espectadores de teatro do período não tinha qualquer instrução formal.

Se a intenção era atingir o público pobre e analfabeto, era preciso que o texto teatral fosse simples e que a representação chamasse a atenção pelos cenários, pela música e pelos figurinos, pois, nas palavras de Larissa de Oliveira Neves:

O ‘público’ compunha-se, em grande parte, de pessoas humildes, trabalhadores especializados, mas não formalmente educados, que buscavam diversão após um dia de labor exaustivo. Desse modo, peças prolixas, recheadas de diálogos espirituosos, com referências literárias ou artísticas eruditas, não obtinham seu agrado. O ‘público’ analfabeto e cansado, dificilmente entenderia as referências eruditas.

Essas são as características do público que se voltou para os gêneros cômicos e de entretenimento como a opereta e as mágicas. Na década de 1880, surgiria ainda uma outra novidade vinculada ao teatro ligeiro, eram as Revistas de Ano, que passavam em revista os principais acontecimentos do ano anterior. Tudo aquilo que fora importante ou que tivera repercussão popular era colocado em cena, ganhando um tratamento cômico. O gênero nasceu na França, ainda no século XVIII, no teatro que se fazia nas feiras, mas perdeu espaço para a opereta a partir de 1860. Ainda assim, foi em Paris, onde esteve em 1882 que Artur Azevedo encontrou o modelo a partir do qual escreveria sua primeira revista de ano O Mandarim, que foi um grande sucesso.

A exemplo dos demais gêneros cômicos existentes na época, as revistas de ano também incomodaram fortemente a crítica teatral de então. As revistas encontraram forte apelo junto às platéias populares em função da sua “inegável brasileirice” e foram o carro chefe da produção de Artur Azevedo entre os anos de 1884 e 1906, convertendo-se no gênero teatral mais popular do período. Neste sentido, afirma João Roberto Faria:

Com a comicidade da farsa, da caricatura e da linguagem maliciosa; com música brincalhona e alegre, apoiada em versos simples e comunicativos; com cenários vistosos e arranjos cênicos extraordinários que culminavam na apoteose final – um quadro de exaltação de uma personalidade, um sentimento, uma idéia, um evento etc, - a revista de ano tornou-se o gênero mais popular do teatro brasileiro dos últimos decênios do século XIX.

Para Flora Süssekind, que estudou em detalhes as revistas de ano escritas por Artur Azevedo, a importância e o sucesso desse gênero na passagem do século decorreu da sua capacidade de sintetizar e ordenar o meio urbano, que num momento de modernização, modificava-se muito rapidamente, causando espanto e desconforto para os habitantes da cidade do Rio de Janeiro. Para a autora, as pessoas viviam uma sensação de perda do controle sobre o ambiente pelo qual circulavam diariamente e as revistas eram modos de se retomar esse controle:

A impressão que se tinha ao [...] assistir uma revista de ano era [...] de súbito controle sobre a história e o espaço urbano, condensados nessas miragens tranqüilizadoras da Capital, as revistas [...]. Nelas, é a cidade que, dotada de movimento próprio, revive teatralmente diante do olhar espantado do espectador. E acelerado o tempo, num único espetáculo é um ano inteiro que passa. Assim como, condensada a representação da cidade, é num simples palco italiano que cabem toda a Capital e sua História.

Os anos em que Artur Azevedo se dedicou às revistas, paródias de operetas e operetas serviram para que no final do século fossem criadas as burletas, gênero que, como explica Décio de Almeida Prado, é bastante indefinido e que por isso mesmo poderia designar essas peças que consistiam numa mistura da comédia de costumes, da opereta, da revista e da mágica. Para a pesquisadora Larissa de Oliveira Neves, foi nesse gênero que Artur Azevedo demonstrou maior maturidade intelectual e cênica, pois:

Nelas, os elementos do teatro musicado integram-se harmoniosamente: os versos fáceis musicados, as fábulas engraçadas e satíricas, as personagens cômicas das operetas, o ritmo acelerado, as mudanças de cenário a cada quadro, as apoteoses, a alusão cômica aos assuntos nacionais das revistas e os cenários deslumbrantes das mágicas.


Uma vez que nesse tipo de produção, vinculada ao teatro de entretenimento, Artur Azevedo sentia-se livre para explorar os elementos da cultura popular brasileira, diferentemente do que seria possível através de outros gêneros ou mesmo das comédias “sérias”, foi nele que o autor melhor retratou o homem brasileiro. Além disso, nas burletas o uso da linguagem é feito de uma forma inovadora para os padrões de então. A fala das personagens é o português brasileiro, pois os próprios homens e mulheres brasileiros que o autor desejava retratar, falavam um português muito distante daquele lusitano, de grande prestígio literário. No próximo capítulo, analisaremos as suas três peças pertencentes a esse gênero: O Cordão (1908), peça em que é colocada a questão da repressão aos populares cordões carnavalescos que ocorriam no Rio de Janeiro; A Capital Federal (1897), cujo texto se desenvolve em torno da vinda de uma família do interior de Minas para o Rio de Janeiro, trazendo uma reflexão a respeito das diferenças entre a vida da cidade e a vida no campo; e O Mambembe (1904), na qual o autor discute a situação do próprio teatro de sua época através da história de um grupo de teatro itinerante que apresenta espetáculos no interior do Brasil.

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Fonte:
Fernanda Cássia dos Santos: “Artur Azevedo e a identidade nacional brasileira na passagem do século xix para o XX”. (Monografia apresentada à disciplina Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como pré-requisito para a conclusão do curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª Drª Andréa Doré). Curitiba, 2008.

Nota:
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