06/09/2014

Uma Véspera de Reis (Teatro), de Artur Azevedo

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Artur Azevedo: entre o “público” e a “sociedade”: Os gêneros teatrais e os espectadores da época

Pensa-se em Artur Azevedo, geralmente, como o grande escritor de revistas de ano do século XIX. Seus contos bem escritos e bem humorados também fazem parte das antologias que incluem os melhores contos brasileiros, por serem considerados obras literárias de qualidade. No entanto, a reflexão intelectual do escritor, registrada em seus escritos jornalísticos, girou em torno da elaboração de comédias de costumes. Conhecido como o maior escritor de revistas de ano brasileiro, elaborava esses textos populares com a facilidade propiciada por seu talento espontâneo para o palco, a paródia e o humor direto. Sem renegar  o gênero, rigorosamente criticado pelos demais intelectuais, Artur Azevedo acreditava na hierarquia adotada por seus pares, que consideravam as comédias de costumes artisticamente superiores às comédias ligeiras. Analisando a recepção crítica da sua obra, no entanto, sentimos que as comédias “sérias”, valorizadas pelo autor e por seus colegas de letras, não receberam a atenção merecida dos pesquisadores e críticos posteriores.

Houve, no decorrer do século XX, uma inversão de posicionamentos: enquanto os escritores contemporâneos a Artur Azevedo – como Machado de Assis, Coelho Neto, Oscar Guanabarino, entre outros – valorizavam as comédias não musicadas, os críticos da atualidade preferem as peças em que ele utilizou os recursos cênicos agradáveis ao público, como a música e os cenários deslumbrantes. Tal mudança ocorreu devido à quebra dos preconceitos, que permitiu aos críticos atuais perceberem as qualidades da comédia leve e a capacidade de Artur Azevedo exercitar plenamente seu talento naquele gênero. No entanto, os estudiosos, ao mesmo tempo em que souberam visualizar os pontos positivos das peças musicadas, criticaram severamente as comédias “sérias”, sem perceber as várias qualidades também presentes nesses textos.

Dentre as peças estudadas aqui, encontramos obras de grande valor e outras que apresentam falhas estruturais, isto é, enredos pouco convincentes, com personagens de caracterização menos verossímil. Essas últimas, porém, em nada diminuem a relevância das melhores comédias de Artur Azevedo para a nossa literatura. O mérito dessas obras existe devido à presença de alguns elementos inéditos no teatro brasileiro, baseados na valorização da cultura popular nacional. Mesmo nos poucos estudos mais recentes sobre as comédias de Azevedo, nenhuma análise literária aprofundada, à exceção daquelas voltadas ao estudo das revistas de ano, foi até agora realizada. Por isso, nossa proposta de estudar as comédias rendeu descobertas capazes de incluir algumas delas dentre as mais ricas escritas no Brasil e sobre o Brasil.

Iniciemos nossa reflexão com um estudo sobre as características dos espectadores da época. A chave para a compreensão da obra dramática de Artur Azevedo centra-se na separação dos gêneros aos quais ele se dedicou: as peças musicadas e as não-musicadas. Estão intrinsecamente ligadas à questão dos gêneros as características sócio-econômicas da audiência para a qual o autor destinava cada um dos diferentes gêneros teatrais. Esta se dividia basicamente em dois grupos: o “público” comum, pobre, analfabeto; e a “sociedade” intelectual e/ou economicamente privilegiada.

A separação dos espectadores entre ricos e pobres, literatos e analfabetos, evidencia uma das particularidades da vida teatral da época. Artur Azevedo, em suas crônicas teatrais, dividia os espectadores em dois grupos distintos, denominados por ele de “público” e “sociedade”5. Por meio da leitura das crônicas, depreendemos que do “público” faziam parte os freqüentadores regulares do teatro musicado e popular, cujos gêneros principais eram as revistas, as mágicas e as operetas. Na “sociedade”, incluíam-se os espectadores da elite, presentes, principalmente, nas apresentações de companhias estrangeiras, nos festivais amadores e em raras encenações de peças “sérias” brasileiras por grupos profissionais. 

A reclamação maior de Artur Azevedo voltava-se ao afastamento da “sociedade” do teatro regular, inclusive quando se apresentavam peças de qualidade:

No Rio de Janeiro os espectadores que dão o cavaquinho por tramóias e peloticas são os mesmos que assistem às representações das mágicas, revistas, operetas e dramalhões com que os nossos teatros nos empanzinam, mas infelizmente só por acaso um ou outro dentre eles corre ao teatro para admirar e aplaudir um artista notável como Novelli6. A estes espetáculos excepcionais assiste um grupo de famílias e indivíduos, sempre os mesmos, cuja lista eu poderia publicar neste folhetim, sem lhe roubar grande espaço. Esses indivíduos e essas famílias raramente aparecem nos espetáculos das ruas do Espírito Santo e Lavradio. Eles não fazem parte do público, mas da sociedade, e a diferença é enorme entre a sociedade e o público.

O público – tenho me cansado de o repetir – só se afasta do teatro quando as peças não o atraem. A sociedade, sim, não há que contar com ela, mas o público vai e há de ir ao teatro, contanto que não seja para se enfastiar. 

Investidas no sentido de atrair a “sociedade” para o teatro regular aconteciam esporadicamente entre artistas amadores e profissionais. Elas, todavia, dificilmente alcançavam um retorno financeiro satisfatório e acabavam arrefecendo. A companhia portuguesa de Lucinda Simões, por exemplo, responsável por trazer ao Brasil dramas europeus inéditos, como   A Casa de Boneca, de Ibsen, realizou uma dessas tentativas ao promover, em 1900, espetáculos às quartas-feiras, reservados aos membros da elite econômica. A experiência não conseguiu o resultado almejado e durou poucas semanas.

Esses espetáculos podem ser freqüentados, necessariamente, por todo aquele ou aquela que comprar o seu bilhete e esteja trajado, ou trajada, com certa decência; mas a empresa destina-os especialmente “às mais distintas famílias da elite da nossa sociedade”, e conta que o seu teatro seja, às quartas-feiras, um ponto de reunião para as damas e os cavalheiros do monde, como dizem os franceses, ou do high life, como dizem os ingleses.

A tentativa é inteligente e simpática, mesmo porque talvez consiga fazer as pazes entre a boa sociedade e o teatro, que há muito se desavieram.

Como vemos por meio desse comentário, a diferenciação entre “público” e “sociedade” exercia enorme influência na produção teatral. As companhias escolhiam o repertório segundo o tipo de espectador que freqüentava seu teatro. Do ponto de vista artístico, os escritores também se dividiam entre aqueles voltados para a elaboração de peças capazes de agradar ao “público” e aqueles que se dedicavam a escrever textos teatrais considerados elevados e literários pela elite ilustrada. Artur Azevedo representa um dos raros exemplos de escritores cuja produção revezava-se entre os dois grupos de espectadores. Ao escrever uma peça, ele sabia antecipadamente a quem o texto seria destinado; por conta disso, encontramos em sua obra exemplos dos diferentes gêneros teatrais. Antes de analisarmos a difícil posição na qual o autor se encontrava devido a essa particularidade, procuramos definir, o mais acuradamente possível, quem fazia parte de cada grupo de espectadores e qual a sua relação com as companhias teatrais.

Não há dúvida de que, à medida que nos aproximamos do fim do século XIX, o teatro abre suas portas para a população menos favorecida socialmente; haja vista o seguinte comentário de Artur Azevedo em um de seus folhetins:

A vida é atualmente tão difícil, que a compra de um bilhete de teatro representa um verdadeiro sacrifício. Releva notar que no Rio de Janeiro, por via de regra, só vão ao teatro os pobres ou, quando muito, os remediados, isto é, os que vivem de um rendimento certo e têm que sujeitar a existência a um orçamento implacável. As classes abastadas só vão à ópera, e quando vão, pois não foi certamente o diletantismo dos endinheirados que armou o revólver do Mancinelli.

Quem, no entanto, fazia parte desse grupo de “pobres ou, quando muito, os remediados” que, a despeito de todas as dificuldades, guardava uma pequena soma para divertir-se nos teatros? Não há relatos com dados específicos sobre as condições de vida dos espectadores comuns. Através das crônicas de Artur Azevedo, sabemos que um ingresso nas “gerais” custava 1$500, em 1896.12 O preço não variou muito em dez anos, visto que, em 1907, a entrada mais barata para um espetáculo popular custava, em média, 2$000, um valor bastante irrisório para a época. Basta compararmos com o preço da passagem de bonde. Em 1890, do centro do Rio de Janeiro até Cascadura, somando o pagamento de todos os trechos, o passageiro gastaria 1$000, ou seja, 2$000, ida e volta.

Apesar de baratos, os ingressos (assim como o bonde) não eram acessíveis à grande massa da população, composta principalmente de ex-escravos e imigrantes. Um trabalhador braçal recebia, quando muito, 2$000 por dia15; com essa quantia, precisava muitas vezes sustentar toda a família, o que, obviamente, inviabilizava as idas ao teatro. Já os trabalhadores especializados, isto é, ferreiros, marceneiros, pintores, pedreiros, cocheiros, etc., ganhavam um pouco mais, de 7$000 a 9$000 por jornada. Um funcionário público com baixa categoria funcional, amanuense ou contínuo, recebia, por mês, de 175$000 a 300$000. Havia também os ambulantes, com ocupações diversas (desde vendedores de livros até tatuadores), que conseguiam obter diariamente até 10 ou 12$000. Por meio desses números, podemos concluir que dos “pobres ou, quando muito, os remediados”, isto é, do “público”, faziam parte os trabalhadores especializados, funcionários públicos ou ambulantes. Os espectadores seriam, portanto, pessoas de baixo poder aquisitivo, mas com salário suficiente para sobreviver e ainda pagar uma entrada no teatro, ainda que de vez em quando. Entretanto, apesar desses dados, nada indica que as pessoas de poder aquisitivo mais alto, como comerciantes ou, inclusive, membros da elite econômica e política, também freqüentassem o teatro popular, em busca da mesma diversão direcionada ao grande público. Basta considerarmos o grande sucesso de bilheteria obtido pelas peças de maior aceitação.

A idéia de sucesso teatral concebida nas décadas de 50 e 60 alterou-se consideravelmente mediante o aumento populacional e a popularização do teatro na virada do século. Durante o vigor da estética realista no teatro Ginásio, quando houve a representação de diversos textos nacionais, “um grande sucesso de público configurava-se após dez ou doze representações seguidas e algumas outras mais, espaçadas, nas semanas ou meses posteriores”.

Naqueles anos, o número de habitantes do Rio de Janeiro chegava a cerca de duzentos mil habitantes. A diferenciação das camadas sociais urbanas apenas começava a se matizar: havia os ricos, os escravos e pouquíssimos trabalhadores livres com condições para freqüentar os teatros. Os temas das peças realistas discutem predominantemente assuntos de interesse para o público burguês; esses mesmos temas, conforme veremos, aparecem nas peças de Artur Azevedo direcionadas à “sociedade”.

Na década de 90, a população total da cidade chegava a mais de quinhentos mil habitantes e, em 1906, superou a marca dos oitocentos mil. Como vemos, o crescimento demográfico atingia níveis elevadíssimos. A imigração e a abolição, responsáveis pelo aumento do aglomerado urbano, diversificaram as camadas sociais; os novos trabalhadores ansiavam por diversão. Desse modo, não espanta o aumento considerável no número de teatros: de dois, funcionando regularmente na década de 60, para seis a dez, na de 90.

Na virada do século, atingir dez ou doze representações, um grande sucesso em 1960, consistia num verdadeiro fracasso de bilheteria e em prejuízo para a empresa teatral, que gastava altas somas nas produções mais elaboradas das revistas de ano, operetas e burletas. A Fonte Castália, por exemplo, de Artur Azevedo, que permaneceu em cartaz no teatro Recreio Dramático por quinze noites seguidas, foi um dos maiores fracassos de público dentre as peças musicadas do autor.

Os grandes sucessos atingiam a incrível marca de cem representações, a exemplo da revista de ano Rio Nu, de Moreira Sampaio. A peça estreou no começo de abril de 1896, no teatro Recreio Dramático, e a produção custou à empresa Fernandes Pinto & C. a surpreendente quantia de 40 contos de réis. O retorno financeiro não se fez esperar: Rio Nu manteve-se em cena até meados de agosto, com mais de cem representações com a casa cheia, sendo retirada de cartaz ainda em pleno sucesso, de acordo com Artur Azevedo:

Não atino com os motivos que levaram a empresa do Recreio a retirar da cena o Rio Nu, que, não obstante as suas cento e tantas representações, estava em pleno sucesso e parecia disposto a subir folgadamente até as alturas do segundo centenário.

O Recreio Dramático, um dos teatros mais populares, localizava-se na rua do Espírito Santo e comportava quase mil espectadores, divididos entre 16 camarotes, 310 cadeiras, e lugares na entrada geral (a mais barata) para mais de 500 pessoas. Isso significa que cerca de cem mil pessoas compareceram ao teatro para divertir-se com a revista Rio Nu. Os demais teatros populares, como o Apolo, localizado na rua do Lavradio, também possuíam capacidade para cerca de mil espectadores. Portanto, o número de freqüentadores das casas de espetáculos era razoavelmente alto, já que existiam vários teatros funcionando ao mesmo tempo. Assim, podemos concluir que praticamente todas as pessoas com condições financeiras mínimas assistiam a peças teatrais, principalmente se considerarmos que os literatos não tinham interesse em ajudar as revistas de ano a atingirem o “centenário”.

Além de pobres, ou remediados, a maioria dos espectadores tinham um nível de instrução formal praticamente nulo; afinal, em 1890, apenas 14,8% da população sabiam ler e escrever. Dessa reduzida porcentagem faziam parte os espectadores da “sociedade”, a elite, aqueles que, de acordo com Artur Azevedo, raramente freqüentavam os espetáculos comuns. Embora nos anos seguintes os índices de alfabetização tenham aumentado consideravelmente, devido a medidas públicas de educação, ainda assim, a grande maioria do povo brasileiro continuava iletrada.

Essas informações são altamente relevantes para a compreensão do tipo de teatro representado na época, especialmente para a análise da obra de Artur Azevedo. A fim de obter um grande sucesso e atrair a população pobre e analfabeta, o texto dramático precisava ser simples. Os belos cenários, a música saltitante, os ricos figurinos ajudavam a deslumbrar os espectadores. O “público” compunha-se, em grande parte, de pessoas humildes, trabalhadores especializados mas não formalmente educados, que buscavam diversão após um dia de labor exaustivo. Desse modo, peças prolixas, recheadas de diálogos espirituosos, com referências literárias ou artísticas eruditas, não obtinham seu agrado. O “público”, analfabeto e cansado, dificilmente entenderia as referências eruditas; poucos seriam os espectadores com uma cultura erudita em nível elevado o suficiente para estar disposto a prestar atenção a diálogos longos e temas da literatura, mitologia ou história clássica.

Através dos anos de experiência a escrever para esse “público”, Artur Azevedo aprendeu a elaborar peças focalizadas diretamente nas qualidades capazes de atraí-lo. Seu talento para o humor, para as piadas diretas, para a representação do cotidiano da população carioca, resultava em comédias de grande apelo popular. No entanto, a simplicidade de seu teatro era constantemente criticada pelos literatos nas linhas dos jornais, porque o comediógrafo, como intelectual respeitado, deveria, na opinião de seus pares, contribuir para a educação do “público” através da elaboração de peças “sérias”.

Os intelectuais ansiavam por uma literatura considerada elevada, escrita num português gramaticalmente castiço, e repudiavam a comicidade prazenteira das revistas de ano e dos demais gêneros ligeiros. Artur Azevedo, a despeito de seu imenso talento para a literatura dramática popular, sentia-se incomodado com as críticas dos colegas, e buscava conciliar os interesses das diferentes camadas sociais da população.

Devido à impossibilidade de determinarmos exatamente quem fazia parte do “público” e da “sociedade” descritos por Artur Azevedo em suas crônicas, optamos por considerar como parte da “sociedade” as pessoas com uma educação refinada, isto é, aqueles, especialmente os literatos, que esperavam ver nos palcos brasileiros dramas, tragédias, óperas e alta comédia e menosprezavam o teatro popular. Na categoria “público” incluímos os espectadores assíduos das casas de espetáculos, em grande parte, mas não exclusivamente, pessoas pobres e analfabetas. Afinal, não possuímos nenhuma prova concreta de que os membros da elite, seja os detentores do poder econômico e político, seja os intelectuais, não se misturassem aos espectadores iletrados em eventuais espetáculos direcionados ao “público”.  

Seguiremos, portanto, ao analisar as peças, a divisão estipulada por Artur Azevedo em suas crônicas, quando afirmava que as distintas famílias da “sociedade” raramente assistiam a uma peça nacional encenada no teatro regular. Quando mencionarmos o teatro que agradava a “sociedade”, estaremos nos referindo aos gêneros preferidos pelos literatos, cujas opiniões e críticas eram expressas nas crônicas teatrais referentes aos espetáculos. Realizada essa distinção, veremos, a seguir, como Artur Azevedo se desdobrava para conseguir agradar à “sociedade” e, ao mesmo tempo, continuar a escrever aquele teatro que lhe dava mais prazer e com o qual obtinha os seus melhores resultados, tanto literários quanto cênicos.
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Fonte:
Larissa de Oliveira Neves: “As Comédias de Artur Azevedo – Em Busca da História”. (Tese apresentada ao programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras na área de Literatura Brasileira. Orientadora: Profa. Dra. Orna Messer Levin. Instituto de Estudos da Linguagem. Unicamp / FAPESP). Campinas, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. 
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível digitalmente no site: 
www.bibliotecadigital.unicamp.br

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