06/09/2014

Discurso sobre a origem da desigualdade, de Jean-Jacques Rousseau

 Discurso sobre a origem da desigualdade, de Jean-Jacques Rousseau pdf gratis
Para baixar este livro gratuitamente em formato PDF, acessar o site  do “Projeto Livro Livre”: http://www.projetolivrolivre.com/
(
Download)
Os livros estão em ordem alfabética: AUTOR/TÍTULO (coluna à esquerda) e TÍTULO/AUTOR (coluna à direita).

---

A interpretação Republicana dos Direitos Humanos: A crítica filosófico-moral de Rousseau

“Embora compreendido como um dos mais importantes pensadores Iluministas, certamente Rousseau se diferencia em muitos aspectos dos mesmos. A sua teoria não só criticava a ordem social feudo-absolutista como iniciava, ainda que filosófica e moralmente, a crítica a sociedade capitalista que emergia dos estertores da primeira. Nesse sentido, Rousseau inaugura uma tradição teórico-filosófica que seria conhecida como Republicanismo, lançando, por sua vez, as bases para a crítica radical da propriedade privada e do individualismo Liberal, esta última claramente identificada com a visão de mundo da burguesia ascendente.

Assim como Locke, Rousseau utilizou uma construção hipotética do surgimento das sociedades humanas. Fundamentou a sua teoria pressupondo a existência de um estágio pré-civilizatório da humanidade, que também denominava “Estado de Natureza”. No entanto, diferenciando-se dos outros filósofos contratualistas Rousseau admitia que em tal estágio os seres humanos viviam em harmonia com a natureza e com os seus semelhantes. Saciavam as suas necessidades através da natureza, fato que lhes colocava em uma situação de auto-suficiência, numa vida caracterizada pelo hedonismo e pela ausência de paradigmas civilizatórios.

Como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, como conseqüentemente não conheciam nem a vaidade, nem a consideração, a estima ou o desprezo ; como não possuíam a menor noção do teu e do meu, nem qualquer idéia verdadeira de justiça; como consideravam as violências, que podiam tolerar, como uma injúria que deve ser punida; e como não pensavam na vingança senão maquinalmente e no momento, à maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram – suas disputas raramente teriam conseqüências sangrentas, se não conhecessem assunto mais excitante do que alimento. (ROUSSEAU, 1991,p.255)

O homem primitivo, segundo Rousseau, seria um ser que vivia de acordo com os seus instintos e não conhecia qualquer senso de propriedade. Conseqüentemente, não se registraria nesse período da evolução humana a existência de desigualdades entre os homens. Nestes, existiria uma moral natural que se caracterizaria fundamentalmente pela piedade para com os seus semelhantes. Rousseau, portanto, ao descrever o homem em seu estado primitivo inspirava-se nitidamente no mito do “bom selvagem”, certamente influenciado pelos relatos feitos pelos colonizadores europeus a respeito dos povos indígenas encontrados na América.

Porém, a vida humana no Estado de Natureza freqüentemente seria ameaçada pelo convívio com animais ferozes e pelas intempéries. Assim sendo, os primeiros progressos intelecto-morais dos seres humanos estariam diretamente associados à busca da superação de tais dificuldades. Ao desenvolver as primeiras armas naturais os homens iniciavam a construção das condições necessárias para dominar a natureza e transformar a realidade à sua volta de forma que esta facilitasse a sua sobrevivência. Acompanhando o progresso intelectual, o homem inicia o seu processo de socialização estimulando o desenvolvimento da linguagem e estabelecendo os primeiros compromissos mútuos. Nesse sentido, construíam- se as primeiras formas de sociabilidade que, por sua vez, encontrariam na família a sua expressão inicial.

Este longo processo de evolução humana marcado pela superação da sua condição primitiva e pelo desenvolvimento das primeiras formas de convívio coletivo encontrariam a sua mediação principal a partir do momento em que se criou a propriedade privada. Este fato marcaria a passagem do Estado Natural para a Sociedade Civil que se caracterizaria pela divisão entre proprietários e não proprietários, pondo fim à igualdade que até então existia entre os homens. 

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assasínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!. (ROUSSEAU, 1991,p259)

A origem da propriedade privada estaria no desenvolvimento econômico que acompanhou o processo de evolução dos seres humanos cuja principal expressão seria a agricultura e a metalurgia. Segundo Rousseau, o aumento da população e a complexificação das atividades produtivas demandaram o aumento da produção agrícola. A necessidade de se intensificar o cultivo das terras levou a sua divisão, uma vez que a posse contínua das terras trabalhadas por um indivíduo daria ao mesmo o direito à propriedade.

Da propriedade privada nasceria a tensa relação entre proprietários e não proprietários. Assim sendo, Rousseau afirma que a propriedade privada colocou os seres humanos em estado de guerra uns contra os outros.

Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorções dos pobres as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. (...) A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra ; o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha, abusando das faculdades que o dignificam. (ROUSSEAU, 1991, p. 268)

Os esforços necessários à proteção das propriedades se mostraram dispendiosos, impossibilitando os proprietários de continuarem investindo na defesa militar das suas posses. Além do dispêndio, a impossibilidade de efetivarem uma aliança entre si devido ao individualismo que caracterizava as suas ações, colocava a necessidade de se estabelecer outras formas de preservação dos seus bens. A estratégia adotada foi o estabelecimento de uma série de normas e instituições de validade universal que, por sua vez, sacralizavam o direito à propriedade, tornando-o legítimo perante a comunidade. Tal estratégia de legitimação fixaria “para sempre a lei da propriedade e da desigualdade” (ROUSSEAU;1991) através da conquista do consentimento dos não-proprietários. Através deste processo surgia a divisão dos seres humanos em diferentes sociedades. Tal divisão ao se propagar daria origem às guerras.

Seguindo a sua crítica, Rosseau se debruça sobre as concepções teórico-ideológicas que buscavam legitimar a desigualdade entre os homens. Reivindicando a liberdade e a razão como elementos fundantes da condição humana, o autor irá rejeitar, categoricamente, toda e qualquer teoria que visasse naturalizar a divisão humana entre senhores e servos.

Não é, pois, pelo aviltamento dos povos dominados que se devem julgar das disposições naturais do homem a favor ou contra a servidão, mas sim pelo prodígio realizado pelos povos livres para se defenderem da opressão. Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o sossego de que gozam sob seus grilhões e que miserrimam servitutem pacem apel ant, mas quando vejo os outros sacrificarem os prazeres e o repouso, a riqueza, o poder e a própria vida pela conservação desse único bem tão desprezado por aqueles que o perderam, detestando o cativeiro, esmagarem a cabeça contra as grades da prisão, quando vejo multidões de selvagens nus desprezarem as volúpias européias e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e a morte para conservar somente sua independência, concluo não poderem ser os escravos os mais indicados para raciocinar sobre a liberdade. (Rousseau, 1991 p.272,)

Nesse sentido, o autor desenvolve uma ácida crítica aos pilares político-ideológicos que fundamentavam o Antigo Regime. Assim como Locke, Rousseau refuta integralmente, por exemplo, as teorias de Robert Filmer contidas na obra “O Patriarca” que se baseava na defesa do fundamento paternal da monarquia. Seguindo a mesma lógica ressaltaria o papel de instrumento de legitimação da ordem feudo-absolutista exercido pela religião, uma vez que, a razão levaria naturalmente a um processo de contestação desta ordem por parte dos súditos, sendo, portanto, um elemento frágil no que diz respeito à sustentação da ordem. O Antigo Regime seria a expressão máxima do processo de desenvolvimento das desigualdades entre os homens, processo esse que se iniciou com o estabelecimento da propriedade privada.

Rousseau, assim como todos os Iluministas, criticava abertamente o Antigo Regime desenvolvendo uma crítica radical ao mesmo. Assim como Locke compreendia como legítimo a derrubada violenta do poder monárquico-absolutista.

Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam, assim, segundo a ordem natural e, seja qual for o resultado dessas revoluções breves e freqüentes, ninguém pode lamentar-se da injustiça de outrem, mas unicamente de sua própria imprudência ou de sua infelicidade. (ROUSSEAU,1991, p.280)

Entretanto, a sua crítica se torna incompatível com a crítica liberal devido ao seu caráter crítico no que diz respeito à propriedade privada. Enquanto a primeira vê na defesa desta a legitimação das críticas ao Antigo Regime, Rousseau compreenderá que a propriedade privada é seu produto. Nesse sentido, a desigualdade criticada por Rousseau não se restringe às dimensões jurídico-políticas, mas compreende também as desigualdades sócio-econômicas.

Apesar de ser, até certo ponto, saudoso do estado de natureza devido às vantagens que os homens nesta fase gozavam, Rousseau admite que o Estado Civil potencializou as capacidades físicas e intelecto-cognitivas da humanidade. Porém, mesmo com todas as suas vantagens, a sociedade civil estimulava o avanço da desigualdade entre os homens, uma vez que a sua gênese estaria na propriedade privada.

A preocupação com esta tendência da sociedade civil deu origem à obra “Do Contrato Social”, na qual Rousseau discorre sobre a formação de um pacto social a ser estabelecido com o objetivo de garantir a igualdade e a liberdade entre os homens. Objetivava-se com isto a neutralização da tendência de reprodução da desigualdade. O Contrato Social visava à construção de uma associação em que cada homem

(...) dando-se a todos não se dá a ninguém e não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem. (ROUSSEAU, 1991, p.33)

Desse modo, ao estabelecerem o contrato social os homens deixariam de usufruir a liberdade individual irrestrita. Ao invés de existirem diversos interesses particulares expressos por cada indivíduo, seria formado um corpo coletivo do qual fariam parte todos os membros da associação, dando origem à “vontade geral” ou interesse público. Esta seria formada não pela soma dos interesses individuais, mas pelo que havia de comum entre eles. Entretanto, o autor admite a real possibilidade de existir dissensos entre os cidadãos e a partir desses formarem-se facções no interior da assembléia. Apesar das reticências à existência destas, a estratégia para que as suas influências fossem amenizadas seria a existência de inúmeras facções com igualdade de condições para disputar os rumos da “vontade geral”.

A partir dessa referência, Rousseau passaria a diferenciar os indivíduos de acordo com a relação existente entre os mesmos e o poder político. O indivíduo que participaria da vida política da sua comunidade seria compreendido como um citoyen, ao passo que aqueles submetidos às leis legitimadas pelos cidadãos de forma passiva seriam chamados de súditos. Os primeiros seriam sujeitos do “Soberano” que, por sua vez, seria o resultado do interesse público construído em assembléia.

Rousseau admite que os poderes do soberano devem ser limitados em relação à esfera privada. Porém, tal esfera existiria em função da esfera pública que sempre decidiria racionalmente os limites da esfera privada de modo a preservar a igualdade entre os indivíduos. Caso contrário, o soberano atentaria contra a sua própria legitimidade se não estabelecesse critérios igualitários para todos os cidadãos onerando-os de forma diferenciada.

Conseqüentemente, não se admitiria critérios individuais, uma vez que, a sua existência atentaria contra a igualdade. A partir desta perspectiva se insere o debate acerca da propriedade privada. Considerando a propriedade como elemento de origem da desigualdade entre os homens, a partir do momento em que se estabelecesse o contrato social a mesma estaria sob controle do soberano. A sua efetivação seria, em última instância regulada pelo soberano sendo considerada legítima a partir do momento em que fosse utilizado para garantir a sobrevivência do cidadão.

Em geral, são necessárias as seguintes condições para autorizar o direito de primeiro ocupante de qualquer pedaço de chão: primeiro que esse terreno não esteja ainda habitado por ninguém; segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele se tome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura únicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos. (ROUSSEAU, 1991, p.38)

No que diz respeito às leis que regeriam as relações entre os indivíduos membros de uma nação, o contrato estabelece que estas deveriam ser legitimadas pelo povo, do qual emenaria todo o poder soberano. Ao atribuir tamanha importância ao povo, Rousseau abre o caminho para o desenvolvimento da democracia republicana. Porém o seu ideal de democracia seria incompatível com a realidade, pois ela seria constituída pela utopia do povo em assembléia constante definindo os seus destinos.

Tomando-se o termo no rigor da acepção, jamais existiu uma democracia verdadeira. É contra a ordem natural governar o grande número e ser o menor número governado. Não se pode imaginar que permaneça o povo continuamente em assembléia para ocupar-se dos negócios públicos e compreende-se facilmente que não se poderia para isso estabelecer comissões sem mudar a forma de administração. (ROUSSEAU, 1991, p.84)

Desse modo, admite-se a existência de uma democracia ampliada onde os deputados exprimiriam os interesses do povo, porém a lei seria consolidada mediante a aprovação popular. Os deputados estariam sujeitos ao controle popular, pois aqueles que os delegaram tal tarefa poderiam revogá-la.

Os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes ; não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. (ROUSSEAU, 1991, p.108)

A influência republicana se fez presente, durante a radicalização do processo revolucionário francês que se iniciou em 1789 derrubando a ordem feudo-absolutista decadente. As idéias de Rousseau orientaram as ações dos Jacobinos que a partir de 1792 se tornariam a corrente política mais influente do processo revolucionário francês. Os Jacobinos objetivavam dar um caráter democrático e popular à revolução, numa disputa aberta com os liberais que, por sua vez, representavam os interesses político-ideológicos da emergente burguesia francesa e com os defensores do absolutismo. Este período deu origem a uma releitura republicana da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada em 1789. Nela, o direito à propriedade não aparece como sagrado.

A mesma declaração ressalta ainda a igualdade como um direito fundamental, não a restringindo, como na primeira declaração, ao seu aspecto jurídico-formal. A concepção que pressupunha a igualdade substancial entre os homens como direito é reforçada pelo Artigo 21 que sacraliza o dever da sociedade em prestar assistência aos setores mais pauperizados da população.

Artigo 21 - A assistência pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes , seja providenciando-lhes trabalho seja garantido os meios de existir para aqueles que não estão em situação de trabalhar.(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO-1793:2001)

A Declaração de 1793, de clara inspiração republicana, estabelece ainda o estímulo à instrução como dever da sociedade (Artigo 22) estabelecendo-a como direito dos cidadãos. Este artigo se desdobrou na criação do ensino público durante o período jacobino. O sentido coletivo de liberdade aparece no Artigo 34 quando este afirma haver “opressão contra o corpo social quando se oprime um único dos seus membros” (Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão: 2001). A Declaração reafirma ainda a soberania popular como fonte de legitimação do poder político (Artigo 25) e o direito do povo de reelaborar as suas leis (Artigo 28). Estes dois artigos sugerem a elaboração de mecanismos de democracia direta na condução das questões de caráter público.

As teorias de Rousseau ainda influenciaram diretamente a organização das instituições modernas. Porém, as suas teses se revelaram frágeis do ponto de vista da crítica ao Capitalismo emergente. Embora precipite a crítica marxiana no que diz respeito à propriedade privada, as teses de Rousseau não pressupõem a ruptura com a mesma. Nosso autor admite a sua existência baseada nas necessidades de subsistência. Nesse sentido, as teses republicanas exerceriam enorme atração entre os pequenos proprietários e artesãos que viam as suas condições de vida sendo arruinadas pelo avanço das relações capitalistas de produção.

No entanto, o que Rousseau ignorava é que o estímulo à concentração de propriedade é algo inerente à dinâmica capitalista. Como analisa Coutinho

A base econômico-social de sua ordem democrática não implica a socialização da propriedade, mas sua repartição igualitária (condição, para ele, da possibilidade de emergência da vontade geral): ninguém deveria ter propriedade em excesso nem ser desprovido de propriedade, mas o fato é que a base econômico-social vislumbrada por Rousseau continua a se basear na propriedade individual e, desse modo, em última instância, numa economia mercantil, que, com Marx, poderíamos chamar de “economia mercantil simples”, ainda pré-capitalista.(COUTINHO,1996, p.128) 

Assim sendo, a crítica republicana do capitalismo se apresenta de forma moral não levando em conta as determinações econômico-materiais da ação egoística-instrumental que caracteriza a sociabilidade humana na ordem do capital.

Outro elemento que evidencia a fragilidade da crítica de Rousseau ao capitalismo emergente é a sua análise a respeito da formação da “vontade geral”. O nosso autor possui grande reticência a formação de grupos particulares no interior da “assembléia” compreendendo-os como um obstáculo à formação da “vontade geral”. Apesar de recomendar a criação de inúmeros grupos para que se evite a sobreposição dos interesses de um grupo particular, Rousseau não deixa claro como tais grupos se articulariam para formar a vontade geral. Nesse sentido, podemos afirmar que Rousseau não dá a merecida atenção à formação de identidades e agrupamentos políticos baseados em diversos elementos da realidade sócio-cultural. As identidades religiosas, nacionais, de gêneros, territoriais, por exemplo, não são compreendidas como um elemento legítimo e positivo de qualquer processo político que se proponha democrático. 

Contudo, ao apontar as contradições sociais que se desdobrariam da efetivação do direito à propriedade privada, Rousseau antecipa também Marx no que diz respeito aos fundamentos políticos e econômico-materiais da luta de classes. Embora não lançando mão de um maior rigor teórico-metodológico, no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” é atribuído à propriedade a divisão dos seres humanos entre “ricos” e “pobres”.

Apesar das limitações espaço-temporais com que se defrontou, a formulação de Rousseau é, sem dúvida, uma das mais importantes obras do pensamento moderno ocidental. Ressaltamos o debate Republicano acerca da democracia, este que certamente é a sua principal contribuição teórico-ideológica. O seu grande mérito reside na universalização da proposta democrática, onde todos os membros de uma determinada comunidade são compreendidos como sujeitos históricos, portanto com real poder de decisão sobre o seu destino.

Durante a primeira metade do século XIX, quando as teorias socialistas ainda caminhavam a passos lentos, as teorias republicanas tiveram uma grande influência no embrionário movimento operário. A sua discussão a respeito da democracia repercutiu diretamente nas lutas operárias do século XIX, fornecendo subsídios teórico-ideológicos para a defesa do sufrágio universal. Outro momento em que as influências das teses de Rousseau se fizeram presentes foi durante a Comuna de Paris, em 1871. Embora sendo realizada em um contexto onde as teses socialistas se consolidavam como a principal referência teórico-ideológica do movimento operário, a tese da democracia direta defendida claramente por Rousseau foi aplicada na prática. Durante o período em que a Comuna resistiu à repressão político-militar, os interesses da coletividade operária e pequeno-burguesa de Paris se sobrepuseram aos interesses de classe da burguesia.

O pensamento republicano fundamentou uma nova concepção de Direitos Humanos. Enquanto para os liberais a esfera privada e individual é o locus da realização dos Direitos Humanos, o Republicanismo estabelecerá a esfera pública e coletiva como o verdadeiro espaço da sua efetivação. Para esta perspectiva, o homem não pode ser concebido isoladamente do seu semelhante, pois ele atinge o seu estágio civilizatório quando estabelece através do contrato social a ação individual-comunitarista como mediação da relação entre indivíduo e coletividade. Esta se caracterizaria por ter como fim o bem-estar coletivo, pois sem este seria impossível atingir tal estado no plano individual. Dessa forma, Rousseau concebe o homem civilizado como um indivíduo social, portanto, que constrói a sua singularidade a partir das relações sociais estabelecidas com outros homens. Conseqüentemente, a teoria republicana antecipa a crítica ao ethos individualista-liberal que caracterizaria a sociedade capitalista emergente. 

Portanto, ao contrário do que uma leitura superficial poderia sugerir, não há nenhuma perspectiva totalitária em Rousseau. O que existe, sem dúvida, é uma preponderância dos interesses coletivos sobre os interesses particulares. Porém, tais interesses não anulam a vida privada individual, mas estabelecem limites para ela em função da preservação da igualdade. Esta perspectiva se evidencia quando o autor aborda a questão da propriedade privada.

Assim sendo, ao compreender a vida em sociedade como o espaço de fundamentação da condição humana, Rousseau inaugurou a crítica a universalidade abstrata dos Direitos Humanos buscando a sua efetiva realização universal.”

---
Fonte:
BRUNO JOSÉ DA CRUZ OLIVEIRA: “DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: LOCKE, ROUSSEAU E MARX”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro com vistas a obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Orientador: Prof. Doutor Marildo Menegat). Rio de Janeiro, 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. 
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível digitalmente no site: 
Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário