13/09/2014

Luiz de Camões (Ensaio), de Amadeu Amaral

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Camões: O homem da Renascença

Camões, tanto moral como literariamente, foi bem um homem do seu tempo. Algumas das características gerais e particulares do século XVI reúnem-se e fundem-se na personalidade do nosso poeta, desde as suas raízes, como que lhe imprimindo auguralmente um cunho épico.

"Desde as suas raízes", porque é na verdade difícil distinguir nela, de todo, o que é expressão do temperamento do que é reflexo das imponderáveis influências do ambiente. Esse próprio humor cambiante e vivaz, essa inquietação, essa vida aventurosa e acidentada, essa multiplicidade de aptidões, essa ânsia de desdobramento, parecendo coisas tão propriamente suas, se encontram em muitas outras figuras notáveis da época, um Buonarrotti, um Leonardo, um Erasmo, um Cervantes, um Tasso, e, sem sair de Portugal, um Antônio de Gouveia, um Fernão Mendes ou um Damião de Góes.

Como filho da Renascença, Camões teve a paixão da literatura, que então reviçava ao contacto das artes no culto fervente das belas formas, e ao mesmo tempo a paixão do humanismo, bem visível na abundância de conhecimentos que se reflete nas suas obras, denotando de morado e guloso comércio com os livros.

No tempo em que ele estudava em Coimbra, o uso do latim era obrigatório na universidade. Em Portugal, como nos outros países da Europa, toda a gente que soubesse alguma coisa devia saber, antes de tudo, latim. Os próprios principiantes, no verdor da primeira juventude, principiavam a desasnar-se com o mestre de língua latina. Camões, porém, não se limitou a estudar o latim pelo latim, como toda a gente: seu espírito visava a mais alto objetivo e tinha necessidades desconhecidas da maioria. Dessa cultura latina estreita e mecânica, que produziu tantos pedantes, ele aproveitou-se para enriquecer e polir sua linguagem e estilo, conservando-lhe Contudo um genuíno e perfeito sabor de naturalidade portuguesa. Demais, não se limitou à língua: estudou com desusado afã a literatura latina, a história e à mitologia clássicas.

O seu sábio tradutor e biógrafo alemão, o Dr. Stprck, mostra-se assombrado da soma de conhecimentos que, ele revela nessas matérias — "conhecimentos até de pormenores mínimos, que ele explica, como propriedade intrínseca sua, mesmo nas regiões onde não podia ter à mão livros de consulta" Essa paixão da antiguidade greco-romana foi até ao exagero: não há um heroi, um homem ilustre, dentre os muitos aos quais se refere, não há quase um acontecimento, um aspecto de natureza que não lhe acorde imediatamente, por espontânea associação, uma analogia tirada da antiguidade.

Da mitologia fez o larguíssimo em prego que se sabe, — emprego sem dúvida excessivo, e por vezes extravagante, que havia de despertar a censura de Voltaire, mas, como quer que seja, espantoso pela propriedade e certeza com que as evocações pagãs lhe afluíam sob a pena, e de resto explicável pelo gosto do tempo em toda a Europa.

Assim como conhecia as literaturas antigas, também mostrava ter-se enfronhado largamente nas modernas, especialmente a italiana e a espanhola, não só na poesia culta, como ainda na popular. Reunia, no mesmo culto entusiástico, aos grandes poetas clássicos os modernos Dante e Petrarca, e também os Sannazaro, os Ariosto, os Garcilaso e os Boscan; entusiasmo tão forte que o levou a imitá-los em numerosos passos de suas obras, — conformando-se nisso, aliás, às doutrinas literárias do tempo, que não só autorizavam, como recomendavam a imitação dos mestres consagrados.

Mas ainda não bastava tão vasta seara literária a saciar-lhe a insaciável curiosidade do espírito. "Saber muito, diz Storck, era o característico daquela época; a instrução enciclopédica, sonho dourado dos humanistas" Camões alimentou esse sonho dourado.

"Os seus conhecimentos filosóficos, escreve o mesmo autor, derivam quanto a pormenores, na aparência, da leitura de Diógenes de Laerte, Plutarco, Cícero, Valério Máximo, Aulo Gélio, Plínio Sênior, e das Antologias. As suas poesias dão testemunho claro de como conhecia ditos e feitos de uma longa série de escritores ilustres: Homero, Aeliano, Xenofonte, Virgílio, Lucano, Ovídio, Horacio, Plauto, Lívio, Eutrópio, Justino, Ptolomeu e outros" A história universal, a geografia e a astronomia eram-lhe familiares.

Quanto à última, é verdade que andou um pouco atrasado: atinha-se ainda ao sistema de Ptolomeu, largamente exposto no canto X, quando o seu contemporâneo Copérnico já havia desde 1543 desmantelado as concepções do astrônomo alexandrino. Contudo, não admira esse atraso, talvez propositado, numa época em que, afinando com Lutero, que indignadamente bradava contra a "invenção" do astrônomo polaco, o clero católico igualmente reagia, pela doutrina, pelo ensino e pela repressão inquisitorial, contra os "erros" da nova astronomia.

Nessa matéria, como em outras, o literato, o estudioso, o homem do saber livresco e das ideias aprendidas andava em luta com o pensador independente, com o espírito original e indagador Essa luta constante, em que ora triunfava o humanista, ora o investigador e pensador livre, em que as mais das vezes se compenetravam numa íntima e curiosa fusão, é toda a história do espírito de Camões, que assim resumia em si, admiravelmente, as duas grandes feições intelectuais do seu século, tão notável pela curiosidade do antigo como pela curiosidade do novo, pela paixão da literatura, da arte e do saber clássico e pelo
surto maravilhoso de inéditas visadas filosóficas, artísticas, literárias, críticas e cientificas.

A flora dos "Lusíadas", como tão claramente demonstrou o conde de Ficalho, contém, ao lado de uma multidão de reminiscências clássicas, grande cópia de indicações precisas acerca das plantas tropicais, atestando um raro escrúpulo tanto na caracterização como na localização de cada espécie. A mesma aliança de cultura antiga e de curiosidade experimental se manifesta de maneira flagrante na ode que fez o nosso poeta ao conde de Redondo, em Goa, impetrando o favor do vice-rei para o "Colóquio dos simples", do seu amigo Garcia de Orta, um dos primeiros naturalistas modernos, fundador de um jardim de plantas em Bombaim.

Passam pelas poucas estrofes dessa composição o "templo da Fama", o "grão filho de Tétis", os troianos, Febo, Heitor, Télefo, Aquiles. É invocando o exemplo deste heroi, amigo da medicina, que o poeta pede a proteção do conde para o novo livro, o qual, "impresso à luz saindo — Dará da Medicina um vivo lume, — E descobrir-nos-á segredos certos, — A todos os antigos encobertos" A obra de Orta foi um marco deposto no caminho novo da ciência positiva, fundada na observação direta da natureza. Mereceu a atenção dos sábios, sendo traduzida para diversas línguas. Vê-se que Camões não se interessara por pequena coisa.

Em outra ordem de assuntos, mas sempre mostrando a universalidade do seu espírito, vemos o poeta interessar-se também, mais tarde, pela publicação da obra de Gandavo, "História da Província de Santa Cruz".

Nas apreciações e comentários do poeta, através de todos os seus escritos, ainda melhor se desvenda essa fusão do respeito à autoridade antiga com o espírito de indagação e iniciativa. Tem a erudição em grande conta, mesmo em conta exagerada, como um Ronsard ou um Tasso, mas reconhece a necessidade! da experiência, e não se cansa de a indicar aos contemporâneos, ainda demasia do submissos ao prestigio do saber medieval, indiferente à natureza. Aponta-a mais de uma vez ao rei:

Tomai conselho só de exprimentados,
Que viram largos anos, largos meses;
Que, posto que em cientes muito cabe,
Mais em particular o experto sabe.

De Formião, filósofo elegante,
Vereis como Aníbal escarnecia,
Quando das artes bélicas diante
Dele com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, senhor, na fantasia.
Sonhando, imaginado, ou estudando,
Senão rendo, tratando e pelejando.
(Lus., X, 152-153.)

Lembrais-vos da vigorosa descrição da tromba marítima, feita no canto V dos "Lusíadas" Começando-a, nota o poeta existirem na natureza coisas que os ignorantes só conhecem por experiência e são entretanto verdadeiras, apesar de julgarem o contrário aqueles "Que só por puro engenho e por ciência — Vêem do mundo os segredos escondidos" Terminando a, exclama Camões ironicamente, como a espicaçar de leve a imensa pretensão dos que julgam só por "puro engenho e por ciência", isto é, agarrados à razão lógica e livresca: "Vejam agora os sábios na escritura — Que segredos são estes da natura": — consultem os seus cartapácios, e vejam se lá encontram a explicação destas coisas "incríveis", mas "verificadas".

Por essa feliz aliança das duas tendências é que o homem não foi aniquila do pelo erudito; que, imitando, soube ser original; que, reunindo laboriosamente mil respigas literárias e enciclopédicas, soube lançar tudo isso na fornalha do seu temperamento ardente, imaginoso e idealista, de envolta com mil impressões e mil estímulos de uma vida intensamente vivida.

Como bom filho da Renascença, Camões cultivou a moral da ação e da glória, que então se erguia contra a moral da abstenção e do cilício, baseada nas promessas do céu. Mas aqui, como sob outros aspectos, é interessante notar como ele temperou instintivamente mais essa inclinação com outras diretrizes. Todo o seu poema é um férvido hino à ação heróica, estimulada pelo legítimo desejo de glória. Mas, em vez de querer a plena expansão da individualidade, solta de todas as peias, impunha-lhe o dever moral como uma couraça de ferro. O seu ideal do heroi é romano pela fidelidade absoluta ao dever patriótico, cavalheiresco pelo desprezo do dinheiro, dos gozos e das honrarias, pela audácia e gentileza:

Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores:
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscovia zebellinos;

Não co'os manjares novos e esquisitos,
Não co'os passeios moles e ociosos,
Não co'os vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não co'os nunca vencidos apetitos,
Que a fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum, que o passo mude
Para alguma obra heróica de virtude;

Mas com buscar co'o seu forçoso braço
As honras, que ele chame próprias suas,
Vigiando, e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado c'um árduo sofrimento;

E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Para o pelouro ardente, que assovia,
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Dest’arte o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras e dinheiro, que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.

Dest’arte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado;
E fica vendo, como de alto assento,
O baixo trato humano embaraçado:
Este, onde tiver força o regimento
Direito, e não de afetos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando.
(Lus., VI, 95-99.)

Também no que se refere à religião, o nosso poeta não esteve isento das influências encontradas que então percorriam o ambiente europeu. Teófilo Braga descobre nele traços das ideias de Erasmo, precursor da Reforma, que se espalharam por todos os países e chegaram a fazer numerosos prosélitos na península ibérica, mesmo entre teólogos e padres. A verdade é que o que se encontra em Camões não são ideias determina das e assentes sobre questões de crença, mas, como em muitos espíritos ilustres do seu tempo, uma certa inquietação, oriunda, por um lado, do enfraquecimento da antiga fé, por outro, das perplexidades da razão ainda vacilante nas suas investidas.

Há tal ou qual analogia entre alguns de seus pensamentos e a atitude, por exemplo, de Rabelais e de Montaigne, para os quais a fé vinha a ser como um recurso de comodidade, bom para se cortar cerce pelas preocupações metafísicas. Mas, como o autor dos "Essais" também desconfiava da razão; e é curioso aproximar esta frase do pensador francês: "O que c'est un doux e mol chevet et sain que l'ignorance et l'incuriosité à reposer une teste bien faite!" dos seguintes versos entressachados à nos "Desconcertos do mundo":

Quem tão baixa tivesse a fantasia,
Que nunca em mores cousas a metesse,
Que em só levar seu gado à fonte fria
E mungir-lhe do leite que bebesse!...
Em Deus creria simples e quieto,
Sem mais especular algum secreto.

A mesma situação de espírito se de senha num dos sonetos:

Efeitos mil revolve o pensamento
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que é mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.

E o soneto termina com a salvadora saída, o recurso extremo: "Mas o melhor de tudo é crer em Cristo."

Nos "Lusíadas", Camões comporta-se em matéria de religião como um perfeito crente. O mundo antigo fascina-o; tem constantemente o pensamento cheio dos seus herois, dos seus filósofos, dos seus poetas. Admira-lhe a liberdade, a beleza, a sabedoria, a plenitude. Os seus mitos encantam-no. A razão e a imaginação do poeta vivem numa atmosfera pagã. Ele ama a vida, a ação, os feitos luminosos, os gestos ardentes, o florescimento da individualidade à grande luz da natureza. Mas, enfim, com porta-se como um perfeito crente. O seu partido está tomado: é preciso crer. A religião forte e o Estado forte são necessários à sua compreensão da vida social e das conveniências morais. Como um romano antigo, ama a disciplina e a ordem, dentro das quais o indivíduo se nobilita e se afina, as instituições vicejam, as artes prosperam e a pátria se robustece e perdura.

Por isso, condena com energia a rebelião protestante, que rejeita o "jugo soberano" e divide a cristandade, quando turcos e mouros estão vexando a Europa; profliga com a mesma veemência as dissensões e os impulsos egoísticos dos príncipes católicos; incita os europeus a unirem-se, para debelar a arrogância otomana, e apresenta-lhes, cheio de patriótica ufania, o exemplo maravilhoso da audácia portuguesa:

Aquelas invenções feras e novas
De instrumentos mortais de artilharia,
Já devem de fazer as duras provas
Nos muros de Bizâncio e de Turquia.
Fazei que torne lá às silvestres covas
Dos Cáspios montes e da cítia fria
A Turca geração, que multiplica
Na policia da vossa Europa rica.

Gregos, Traces, Armênios e Georgianos
Bradando-vos estão que o povo bruto
Lhe obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos do Alcorão: duro tributo!
Em castigar os feitos inumanos
Vos gloriai de peito forte e astuto,
E não queirais louvores arrogantes
De serdes contra os vossos mui possantes.

Mas em tanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltarão cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana;
De África tem marítimos assentos;
He na Ásia mais que todas soberana:
Na quarta parte nova os campos ara,
E se mais mundo houvera, lá chegara.

(Lus., VII, 12-14.) 

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