31/08/2014

Poesias líricas, de Luiz Delfino dos Santos

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Gritos de um louco
L´aura soave e l´alba rugiadosa,
L´acqua la terra ao suo favor s´inclina
Ariosto - Orlando furioso

Lembra-te, ó anjo, que eu te amei um dia,
Lembra-te, ó anjo, que eu por ti chorei.
Eu, que nos teus pés ajoelhei-me escravo,
Com o mesmo orgulho com que se ergue um rei!

Adeus!... Vai pois além, no azul dos mares,
Curvar as vagas aos sorrisos teus!
Adeus!... Tu podes tudo em toda parte:
Fez-te rainha a formosura: — Adeus.

Que diz o mar à praia em que brincavas,
No proceloso, túrbido escarcéu?
Que diz a praia ao vale? O vale ao campo?
Que diz o campo ao monte? e o monte ao céu?

Que dizeis, larga fila de colinas,
Deitadas lá ao longe em leito azul,
Em cujo seio as asas perfumara
Macia brisa a sussurrar do sul?

As pudibundas, tímidas estrelas
Hoje em teu colo poisarão também:
O que dirão os langorentos olhos,
Quando estenderem na planície além?

O mar, a praia, o vale, o campo, o monte,
Céus, estrelas, colinas, — sei, — dirão:
— Ela vai: vamos nós: — e o mar, e a praia,
Campo, montes e céus... contigo irão.

E eu ficarei na vida como um homem,
A quem roubaram de repente a luz,
Que enterrado em seu túmulo de trevas,
Deixam sozinho, — que ninguém conduz.

E o amor há de falar aos meus ouvidos,
Como o som dos grilhões fala ao galé,
Com as sombras do cárcere além-torno,
Com as lembranças do passado ao pé!

Nas pedras soltas do palácio de oiro,
Que ao céu rojei e desabou no chão,
Nas pedras soltas, — nestas pedras mesmo —
Deixem-me agora perpassar a mão.

Não quero muito: destas folhas rotas,
Destas colunas que aí estão em mó,
Deste poema que caiu, eu quero
Salvar os restos de uma pedra só.

Vamos... palpemos... Tudo é pó! Mais longe
Eis uma enfim!... Oh! como sou feliz!...
É uma pedra do palácio de oiro!
Vamos ver o que esta pedra diz.

— Da virgindade a pérola alvejava
E a coroa de oiro, não, não de rubis...
Na fronte dela a coroa era a beleza...
Vamos ver mais... Oh! como sou feliz!

Tu me sorriste; mas teu riso frio,
Hirto, sem vida então me fez gelar:
Boiava à tona do teu lábio calmo,
Como um cadáver sobre quieto mar.

Maldita pedra!... Em tão confuso acervo
Só tu ficaste sem fazer-te pó!
Vai-te, maldita: és como o cão do cego,
Que o não conduz e que lhe late só.

Gritos de um louco!... sinto-o bem: doudejo!
Esforço-me amarrado aos dias meus,
Cuja corrente em vão quebrar procuro,
E aos pés rojar-te, como extremo adeus.

Adeus! — As vagas já o colo inclinam:
As moles brisas farfalhando estão;
E nas asas azuis que se desdobram,
Vejo erguer-se o teu pé, bela visão!

Adeus!... O gênio informe das tormentas
Desruga a fronte pálida e senil,
E, sentado nas fragas das montanhas,
‘Stá o céu a enfeitar de oiro e de anil.

Vai!... Mas ouve: talvez não vás ainda,
Suavíssima visão dos sonhos meus:
Adeus!... o lábio te repete sempre:
Mas ai! o coração não diz: — adeus.

Ondas uma após outra a pedra batem:
Dentre as vagas a lua olha através:
Lá ergue a rocha sobre a praia o colo,
Dizendo a todos: — Eu não sei quem és.

Tu te ergues, anjo, sobre minha praia,
Toda de branco, criação de luz:
E eu, como a lua, te enamoro, e vaga,
Sou todo flores dos teus pés a flux.

Ah! tu passavas como um lindo cisne,
Que as níveas asas pelo céu abriu,
E na torrente dos meus brancos dias,
Delas a sombra... a sombra só caiu.

Ó cisne, uma lanugem do teu colo;
Um só perfume do teu seio, ó flor;
Um beijo... um só dos beijos teus, ó virgem...
Como pagaras tu tão louco amor...

Nas verdes margens, sim! talvez parasses,
A desfolhar os trêmulos rosais,
Lançando rosas à torrente branca
Dos dias meus, puríssimos cristais,

Talvez deitando ao longe as alvas roupas,
Metesses nela a ponta dos teus pés:
Depois o corpo... Oh! podes vir: as margens
Desta torrente escondem-se em vergéis...

Oh! podes vir!... As pérolas dos seios
Nítidas mãos e trêmulas contêm.
Como conchas que estão quase entreabrindo...
Mostrando apenas que tesouro têm.

Oh! vem!... Já vejo que te rola a trança
— Rio em ondas de treva — ao dorso nu:
O teu pé escorrega... aí vem: ó anjo,
As brancas asas por que estendes tu?...

No mar de esperanças, que referve e canta,
Há grandes ilhas e jardins também:
Ricas cidades, que as marmóreas frontes
Erguem soberbas pelo céu além:

Altas torres que o manto azul retalham
Do céu, e delas saem profundos sons,
Que voam, como pássaros de bronze,
Que as asas mexem como vagalhões.

Não abras tanto os teus rasgados olhos...
No fundo desses dois lagos azuis
Vejo tua alma estremecer de medo,
Como o oceano ferido pelos suis.

Não tremas, virgem, se nas altas torres
Inquietos sons nos brônzeos ninhos seus
Voam, revoam, bramam, fremem, fogem
Buscando o seio do porvir... e Deus.

Por que não vens às minhas ilhas de oiro?
Vem ver impérios; vem somente ver,
Olha que as margens se abrirão, ao ter-te,
Como à luz a romã, no alvorecer.

Oh! que tesouros neste mar de esperanças...
Dos reis da terra tenho pena e dó!...
Vem, ó meu anjo, de tão vastos mundos
Ser tu rainha... ser rainha só...

Sim! eu bem vejo, aéreo cisne, voas:
Queres ser minha, desces até mim:
Mas que tristeza vem toldar-me a fronte
Quando o prazer aí vem, sorrindo enfim?

E eu sei que Deus nas frontes langorentas
Luz às mãos cheias lá do céu lançou;
Como na fronte de ébano da noite
O diadema de estrelas colocou.

Minha tristeza é filha do infinito,
Que palpo e quero e foge-me no ar;
Respiro-a em tua fronte de donzela,
No céu azul, no verdejante mar.

Sabes? — Meu lábio agita muitas vezes
Esta sombra que Deus em mim deitou,
Como de noite na floresta imensa
Hinos espalha o vento que passou.

— Meu lábio vai cantar agora!...
Leio em mim, leio em ti: vou ser feliz!
A terra, o mar, o céu, teus olhos, tudo
Até a folha do arvoredo o diz.

Ai! tudo é belo!... As brisas que respiro
Cheirosas vêm dos matagais do sul:
O horizonte é diáfano e profundo:
A terra é de oiro; o céu é de oiro e azul!

Oh! como acorda a natureza! — é noiva
No tálamo inda puro a estremecer:
E na espuma de renda, em que mergulha,
Ora o pejo a convulsa, ora o prazer.

Tudo mexe e palpita, e freme e vive:
Tudo cintila, tudo é luz e vez!...
Oh! que prodígio vai passar-se agora?
O que vai ser de mim, de ti, de nós?

Eia, meu anjo, fala, acorda... é tempo:
Meu lábio agora sepultar-se vai
No fragor de epinício cintilante,
Ou no sussurro trêmulo de um ai.

Porém que vejo? — As asas te arrebatam?
Oh! por que vais a me fugir assim?
— Escuta, cisne, leva-me nas asas:
Anjo, não busques novo céu sem mim.

Adeus! escuta: rápida me foges!...
Quem pudera seguir os voos teus!
Adeus! eu quero ouvir-te a voz ainda!
Adeus! ao menos vem dizer-me adeus!

É tarde! É tarde! Eu doudejo agora.
Volta: ofendi-te! Tens no rosto a dor:
Ai! volta: escuta: — Adoração, meu anjo:
Não me entendias, porque eu disse: Amor.

Mas foi tão tarde! Não me ouviste: foste!
Lembra-me agora que por ti chorei!
Lembra-me agora que por ti fui louco!
Lembra-me... ai! lembra-me... Eu te amei! amei!

Agora, como um cego, a mão estendo
Entre as ruínas do passado só:
Nem uma pedra do palácio de ouro!

Desse poema só me resta o pó.

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