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Honoré de Balzac e Camilo Castelo Branco: convergências e divergências
[Camilo] narra, estuda, romanceia
a vida social nas suas
diferentes fases com desanuviado e despreocupado
espírito. Rebenta-lhe a
ironia espontânea e graciosa, no dissecar, – como Balzac, as aparências brilhantes, devassando-se-lhes a vacuidade ou sujidade do íntimo. Espraia-se-lhe
naturalmente a malícia da observação positiva, ao divagar pelos arcanos da sociedade
tão amiudamente convencional, mentirosa e soberba. Vai terra a terra gracejando
com as vaidades, desvarios e fraquezas humanas, desnudando a vida de exageros
subjetivos, de deslumbrantes ouropéis,
sem se importar com o que ela devia ou podia ser, mas tentando mostrá-la tal qual é nos pontos
em que a estuda, sem objurgatórias nem lamúrias.
Luciano
Cordeiro
Camilo:
Evocações e Juízos, Antologia de Ensaios.
O século XIX é um período de
profundas transformações socioculturais no âmbito europeu, em decorrência, principalmente, das Revoluções
Industrial e Francesa, em Inglaterra e França, respectivamente. Isto porque
estas revoluções, ambas ocorridas em meados do século XVIII, deflagram a decadência
do mundo antigo, com seus valores aristocráticos e sua arte cortesã, e determinam
o surgimento do mundo moderno, capitalista e
burguês.
No que concerne
às mudanças na forma de concepção da arte literária desse período, tema que aqui
nos interessa focar, segundo Arnold Hauser, em sua História Social da Literatura
e da Arte, a classe média alcança o poder econômico, social e político na
Europa e faz com que “a arte cerimonial das cortes” (1973, p. 646) perca seu prestígio
e ceda o poder artístico ao gosto desta classe, de modo que, já no final do século
XVIII e início do século XIX, “a única arte digna de consideração na Europa
[...] é a burguesa” (1973, p. 646).
Nesse sentido,
a arte cortesã, marcadamente decorativa, cerimonial e ostentativa, é suplantada, paulatinamente, pela arte de gosto
burguês, focada no indivíduo
e em suas experiências cotidianas vividas em um mundo no qual os valores tradicionais,
como a imobilidade social, a honra e a família, dissolvem-se, e o dinheiro se
torna o elemento sine qua non para a vida em sociedade. Entretanto, vale
notar que, para além da alteração na mundividência literária do período, a transformação
do concerto social oitocentista acarretou outra fundamental mudança no que
tange àquele que antecede a obra literária, o
escritor.
Se no mundo
tradicional o mecenato era o responsável pela sobrevivência e prestígio do
escritor, no mundo capitalista o autor se depara com a inaudita empreitada de comercializar
suas obras, que se tornam bens de consumo, mercadorias das quais passa a advir o
sustento dos homens de letras. Sob este prisma, como decorrência incontornável desta nova ordem mundial, os escritores oitocentistas
encontram-se, inexoravelmente,
atrelados às regras do mercado editorial e às expectativas de leitura do público oitocentista que surgem com a ascensão da
burguesia.
No que diz
respeito às expectativas de leitura desse novo público, de acordo com a crítica
Sandra Vasconcelos, os leitores buscavam em obras literárias “um meio expressivo
mais simples, direto e, portanto, mais próximo da linguagem cotidiana do homem
comum” (2002, p. 15). E o gênero literário que surge de modo a atender estes anseios
é o romance, forma que intenciona ser um “relato autêntico das experiências reais
dos indivíduos” (2002, p. 14) e que “levanta de forma aguda o problema da correspondência entre a obra literária e a realidade que
ela imita.” (2002, p. 13).
Em
síntese, encontramos na Europa do século XIX um público leitor ávido por romances
e um mercado editorial sedento por autores que os escrevessem de forma a agradar
e suprir essa demanda gerando proveitos financeiros: um movimento capitalista próprio
do mundo moderno que indica claramente que a literatura passa a ser bem agregado de valor comercial.
Entretanto,
essa nova conjuntura mundial não se dá ao mesmo tempo em todos os países. Em Portugal,
por exemplo, esse processo de mercantilização do meio artístico ocorre com
aproximadamente trinta anos de defasagem em relação aos grandes centros
europeus – no espaço português, o século XIX somente tem seu início efetivo com
a Revolução Liberal de 1820. Uma diferença temporal que influencia diretamente na
produção literária comercial no país, pois, enquanto na França autores
profissionais como Honoré de Balzac já estavam praticamente encerrando sua carreira
– Balzac morre em 1850 –, em Portugal este ofício está em vias de se iniciar. Camilo
Castelo Branco, o primeiro profissional das letras em seu país, publica seu
primeiro romance de atualidade em 1854, o
volume A filha do arcediago.
Com efeito, esses dois autores
europeus são considerados grandes expoentes, em suas respectivas literaturas nacionais, desse novo modelo
artístico que inaugura a profissão das letras: Balzac
e Camilo experimentam, em França e Portugal, respectivamente, as mazelas e as benesses
da carreira literária, deparando-se com a árdua empreitada de suprir os anseios
romanescos do público burguês e do mercado editorial oitocentista. Por si só, esta
coincidência histórico-social já nos encaminha a uma comparação entre eles, uma
equiparação muito recorrente na crítica portuguesa. Por exemplo, Silva Pereira,
em seu Universo Ilustrado, de 1877, afirma: “Hoje temos o festejado romancista
Camilo Castelo Branco, dito o nosso Balzac.” (PEREIRA apud CASTRO, 1960, p. 121).
Contudo, ao
adentrarmos aos meandros de seus cânones romanescos, torna-se ainda mais inevitável
essa comparação. A seguir, faremos um breve panorama das principais linhas de
força que regem os legados de ambos os autores, a fim de podermos evidenciar algumas
convergências existentes
entre eles. Para tanto, um estudo muito relevante feito acerca desta temática será
constantemente utilizado como referência: trata-se da análise de Aníbal Pinto de
Castro, renomado crítico literário português, sobre a influência de Balzac na
Literatura Portuguesa, intitulada Balzac em Portugal, de 1960. Ainda, é necessário
notar que, dada a magnitude das obras balzaquiana e camiliana – a Comédie Humaine
possui 88 exemplares e os
romances camilianos somam 54 volumes– o recorte que
aqui se fará tem como intuito salientar, essencialmente, os aspectos que nos conduzirão ao nosso estudo, a ser
expresso e justificado no momento oportuno.
Ao falarmos
em Honoré de Balzac e em sua Comédie Humaine, conjunto de romances cujo
objetivo fundamental é o de observar e analisar a sociedade francesa do século XIX,
o primeiro aspecto inerente a sua ficção que vem à tona é a finalidade realista
de retratar e de estudar, sistematicamente, o “homem em função de seu meio social”
(CASTRO, 1960, p. 21), ou seja, o homem integrado à sociedade francesa de sua contemporaneidade:
“Le grand réalisme authentique ne répresente donc pas l’homme et la société d’un
point de vue uniquement abstrait et subjectif, mais les met en scène dans leur totalité mouvante, objective.” (LUKÁCS, 1999, p. 09).
Segundo George Lukács, em seu Balzac et le
réalisme français, este aspecto é precisamente o que caracteriza os
romances balzaquianos, nos quais o homem nunca é visto de forma estanque da sociedade, mas sim “[...]
indissolublement lié à la vie de la societé,
à ses luttes, à sa politique; c’est
de là qu’ils [les hommes] naissent objectivement,
c’est là qu’ils débouchent objectivement.” (1999, p. 12). De fato, o romancista francês prima por transpor literariamente
os movimentos sociais que o circundam, com especial atenção àqueles relacionados ao sistema capitalista
tão característico de seu tempo.
Segundo Balzac, ele
intenciona ser aquele que traduz literariamente aquilo que a sociedade francesa
engendra em sua História, um “historiador de costumes”:
“[...] O acaso é o maior
romancista do mundo; para ser fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa ia ser o
historiador, eu nada mais seria do que seu
secretário. Ao fazer o inventário dos vícios e das virtudes, ao reunir os principais fatos das paixões, ao pintar
os caracteres, ao escolher os acontecimentos mais relevantes da sociedade, ao
compor os tipos pela reunião dos traços dos múltiplos caracteres homogêneos, poderia,
talvez, alcançar escrever a história esquecida por tantos historiadores, a dos costumes.
Com muita paciência e coragem, eu realizaria
para a França do século XIX esse livro que todos lamentamos não nos terem deixado Roma, Atenas, Tiro, Mênfis, a Pérsia, a Índia sobre a civilização e que, a exemplo
do padre Barthélemy, o corajoso e paciente Monteil
tentara para a Idade Média, mas
sob forma pouco atraente”. (DE BALZAC, 1993,
p. 670)
Dessa forma, como consequência
direta desse objetivo de análise social expresso por Balzac, encontramos na Comédie Humaine numerosas personagens
marcantemente verossímeis, homens e mulheres abordados enquanto “produto[s] da sociedade”
(CASTRO, 1960, p.22) francesa do século XIX. Lembremo-nos, por exemplo, de algumas
personagens de Le père Goriot (1834), um dos mais célebres romances balzaquianos,
como Eugène de Rastignac, o jovem arrivista, senhora Vauquer, a avarenta dona
da pensão homônima, Cristophe e Sylvie, ambos empregados da pensão, Vautrin, o ambicioso
pensionista que se revela um criminoso foragido da justiça, entre tantas outras
personagens que representam “tipos” (CASTRO, 1960, p. 31) muito característicos do argentário
século XIX francês que Balzac fez presente em sua
ficção.
Sendo que
todo esse estudo social realizado pelo escritor francês acompanha, na maior
parte de sua produção romanesca, uma estrutura narrativa peculiar: “localização
da ação – apresentação das personagens – desenvolvimento
da ação – desenlace” (CASTRO,
1960, p. 151). Eugénie Grandet (1833), romance que integra as “Scènes de
la vie de province”, é um exemplo muito claro deste esquema
narrativo: nas primeiras páginas, temos a descrição da cidade provinciana de Saumur,
local onde a ação romanesca se desenrola; logo em seguida nos são apresentadas as
personagens fundamentais da trama: Félix Grandet, um avarento típico, sua
ingênua filha, Eugénie Grandet, sua dedicada esposa, senhora Grandet, sua
devotada empregada, Nanon, seu sobrinho, o ambicioso Charles, e alguns moradores
de Saumur, como as famílias Cruchot e Grassins; posteriormente, dá-se o
desenvolvimento dos sucessos a partir da observação detalhada das personagens interagindo
entre si e com a sociedade – Félix Grandet em sua saga de acumulação de capital
e Eugénie Grandet esperando pelo primo Charles que partira para a Índia em
busca de fortuna; e, nas últimas páginas, ocorre o desfecho da ação – Charles volta
da Índia ambicioso e corrompido demais para lembrar-se do amor que jurara a
Eugénie, que herda a imensa fortuna do pai, pratica a caridade com este dinheiro, mas não faz uso dele em proveito
próprio e termina a intriga romanesca sem encontrar a felicidade.
Desse modo,
estamos diante de um esquema narrativo calcado na descrição detalhada do ambiente
e das personagens e na observação dos efeitos decorridos da interação destas
com aquele. Um modelo literário que caiu nas graças do público e do mercado editorial
oitocentista, justamente pelo motivo principal apontado por Vasconcelos, a
proximidade com o real, e que proporcionou a Honoré de Balzac, ainda em vida, ser
um autor abundantemente lido e apreciado não só na França, mas em muitos países que tinham acesso aos volumes da Comédie
Humaine.
De fato, Camilo
Castelo Branco é um desses apreciadores de Balzac. Como leitor assíduo, em seus
escritos sempre se refere ao antecessor francês, seja por meio de alusões vagas
e genéricas ou analogias muito precisas. Por exemplo, em um de seus romances, Onde
está a Felicidade? (1856), o ponto de vista da personagem balzaquiana Vautrin é recuperado e compartilhado pelo protagonista
camiliano Guilherme do Amaral. Em um diálogo logo no início da narrativa,
Guilherme alude ao pensamento de Vautrin a fim
de se caracterizar enquanto um homem indiferente às mulheres:
─Não: não quero [relacionar-me
com mulheres]. Há em mim a preexistência de todas as desilusões. [...] Dispenso as experiências ociosas.
─Deve parecer-lhe bem infame este mundo!
Como julga os homens?
─Como os julgou Vautrin, o homem estóico de Balzac.
─Vautrin é
má autoridade; se bem me recordo,
era um forçado das galés.
─Que importa!
A desgraça desvendara-o: tinha a ciência das lágrimas.
[...] (CASTELO BRANCO, 1983, p. 205)
Para além de referências como
essa, podemos notar a adoção por parte de Camilo de títulos em seu legado ficcional muito semelhantes àqueles
utilizados por Honoré de Balzac, como em uma miscelânea de oito breves ficções e
duas peças intitulada Cenas Contemporâneas (1855-1856), ou em outra miscelânea
nomeada de Cenas Inocentes da Comédia Humana (1863) ou também no romance Cenas da Foz (1857), todos os três em uma alusão à
nomenclatura das partes integrantes dos “Estudos dos Costumes” da Comédie
Humaine intituladas de “Cenas”, como as “Cenas da vida provinciana”, na qual
figura incluído, por exemplo, o mencionado romance Eugénie Grandet.
Ainda, podemos mencionar que Camilo se vale,
em seus escritos, de muitos dos procedimentos balzaquianos. No que se relaciona
à estrutura narrativa, podemos apontar
uma primeira convergência. Peguemos o já referido Onde está Felicidade?:
nele encontramos o mesmo esquema empregado por Balzac8. Nas primeiras páginas, temos um prólogo que localiza, de modo
conotativo, a ação romanesca – por meio da análise
da infausta trajetória do avarento João Antunes da Mota, o narrador camiliano descreve o ambiente sórdido e capitalista que
enquadra os sucessos da trama; em seguida, temos
a descrição das personagens que participam da ação: Guilherme do Amaral, um jovem rico e elegante de Beira Alta,
Augusta, uma jovem costureira portuense, Francisco, tecelão e primo de Augusta,
e o jornalista, personagem não nomeada e confidente do casal Guilherme e
Augusta; posteriormente, temos o decorrer dos acontecimentos – Guilherme seduz
Augusta e abandona-a grávida e desonrada; e, por fim, o desenlace: Augusta e
Francisco descobrem, ao enterrarem o filho natimorto de Guilherme, o tesouro
escondido de João Antunes da Mota, casam-se e tornam-se os ricos e, portanto, honrados barões de Amares, deixando Guilherme
do Amaral, um Homem de Brios, extremamente surpreso e enciumado, na última cena do romance, devido
ao fato de sua antiga amante não sofrer mais por ter sido preterida e ter ascendido socialmente sem a sua ajuda.
Em seguida,
podemos ressaltar a constituição verossímil das personagens também presente na
ficção camiliana. Se em França do século XIX, um Rastignac ou um M. Grandet são
tipos muito possíveis, até mesmo prováveis, um Guilherme do Amaral, o galante sedutor
que mencionamos acima, ou um João Antunes da Mota, o avarento que figura no mesmo
romance de Amaral, também o são no Portugal oitocentista.
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Fonte:
Fonte:
Ana Luísa Patrício Campos
de Oliveira: Honoré de Balzac e Camilo Castelo Branco: a crítica social oitocentista em perspectiva comparada (versão corrigida). (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da
Motta de Oliveira). São Paulo, 2013.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: www.teses.usp.br
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