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O Portugal camiliano: um
mundo imerso nas relações de trabalho e dinheiro
─Vamos à fábrica [...]. Tenho
lá dois
teares
de pano, que só tu podes governar. De
hoje em diante ficas sendo
meu contra-
mestre,
ganhando oito tostões por dia.[...].
Amanhã,
se quiseres casar com a filha do
Manuel da
Severa ou com a Felizarda do
Cabeço de
Cima, não te dizem que não.
Podes-te
estabelecer, quando quiseres, que
eu dou-te
abono, e dinheiro para meia dúzia
de teares. Anda daí,
Francisco...
Camilo Castelo Branco
Onde está a Felicidade?
A partir das reflexões feitas até o momento, é possível
perceber que a sociedade portuguesa oitocentista
é um foco marcante dos comentários do narrador camiliano. Resumindo o que ficou
posto nas páginas precedentes, trata-se de um espaço social movido por dois eixos
centrais: o desejo e o dinheiro. Isto porque, tanto o interesse financeiro quanto
a motivação mimética do desejo ditam o rumo das narrativas camilianas Onde está a Felicidade? e Um Homem de Brios, bem como a trajetória das personagens
nelas inseridas. Duas dinâmicas que findam por compor os traços de um Portugal que
não dá margem a idealizadas histórias de amor: os caracteres camilianos, como vimos, são entes sociais que, muito antes de viverem
de juras de amor, comem, bebem, dissimulam, desejam, praticam o orgulho e a avareza,
trabalham etc.
No que concerne aos dois vetores mencionados,
vejamos o que já foi apreciado. Quanto à questão do desejo, no terceiro capítulo
desta análise procuramos detectar a dinâmica mimética que o rege, uma propriedade
que denota seu caráter nada espontâneo. No que tange ao interesse argentário,
no segundo capítulo, ao apreciarmos a utilização de alguns recursos literários
pelo narrador camiliano, a ironia e o jogo com as expectativas de leitura, acabamos
por tecer comentários a propósito do dinheiro enquanto fator que sobreleva nas relações
interpessoais.
No presente capítulo, para além da
questão do interesse pecuniário já abordado, complementaremos nossas considerações
acerca do que é veiculado sobre a constituição da sociedade portuguesa oitocentista
por meio do levantamento de mais alguns aspectos relacionados à imagem do
Portugal concatenado por Camilo Castelo Branco nas obras selecionadas.
De fato, vale notar que este é um
tema ainda praticamente inédito, visto que a crítica que versa acerca da ficção
camiliana somente resvala na temática da imagem da nação portuguesa,
como em breves observações tecidas em alguns escritos
acerca dos núcleos sociais que figuram em uma trama, mas sem aprofundamentos,
uma análise que conduza a uma percepção mais completa do Portugal
oitocentista que perpassa o legado camiliano.
Nesse sentido, o objetivo deste
capítulo é o de promover um exame, de cunho sociológico, dos traços que compõem
esta imagem da nação portuguesa do século XIX, tal como a concebeu
literariamente Camilo em Onde está a
Felicidade? e Um Homem de Brios.
Ainda, intencionamos analisar qual é o diálogo que
esta concepção camiliana de Portugal estabelece com seu período literário, mais
especificamente, com a geração de 70, tida como expoente máximo da Literatura Portuguesa
oitocentista, e com a produção ficcional de Honoré de Balzac, literatura
paradigmática no século XIX. Deste modo, procuraremos vislumbrar quais são as semelhanças
e/ou as dessemelhanças que este país nascido da pena de Camilo possui frente à representação
de Portugal propalada por esta geração e confrontá-la, também com a imagem da França oitocentista existente em alguns romances balzaquianos.
Para tanto, comecemos pela imagem de Portugal elaborada pela geração
de 70.
Como sabemos, essa geração foi uma das
que mais marcaram a história da Literatura Portuguesa. Segundo Óscar Lopes e
Saraiva, no clássico História da Literatura
Portuguesa,
O sulco deixado pela ‘Geração de 70’ na cultura portuguesa foi profundo
e duradouro. O estudo dos epígonos e continuadores deste grupo levar-nos-ia de
fato à atualidade. (1985, p. 876) Com efeito, ao buscarmos informações sobre esta geração literária tão
cara a Portugal, em manuais de historiografia literária, podemos perceber uma
constante: a maioria dos críticos, para conseguirem definir e conceituar as suas
principais contribuições, primeiramente fazem um panorama histórico do período,
não só português, mas europeu. Como exemplo, tomemos a já mencionada obra de
Saraiva e Lopes. No capítulo que trata da geração de 70, encontramos
o seguinte início:
Os homens da chamada ‘Geração de 70’ , cujas primeiras manifestações
literárias datam, aliás, de meados do decênio anterior, acabaram de se formar
já depois de institucionalizado e consolidado o liberalismo em Portugal.
Encontraram instituições parlamentares funcionando com regularidade, uma ideologia
oficial que acentuava a noção de ‘progresso’ (identificado
com os melhoramentos materiais) e, uma comunicação com o exterior cada vez mais intensa, quer técnica, quer econômica,
quer cultural.[...]
Mas, outros problemas também se punham. [...] As novas instituições inseriam-se numa sociedade que sob o ponto de vista tecnológico,
econômico e mesmo social estagnava, comparativamente [ao resto da Europa].
[...] A intensificação da comunicação com o exterior tornava cada vez mais
patente, por contraste, esta situação. [...]
Importa com isso atentar um pouco nos
acontecimentos europeus e nas leituras estrangeiras
que parecem ter dado a esta geração o sentimento de se chocar frontalmente com a
sociedade dentro da qual vivia.” (1985, p. 863-865)
Dessa forma, a partir deste excerto,
podemos notar que não é possível falar desta geração sem enquadrá-la em seu momento
histórico: ambos se tornaram indissociáveis, visto
que uma das maiores e mais recorrentes preocupações destes autores ao tomarem a
pena nas mãos era a sociedade portuguesa do período, ou ainda, a imagem de Portugal
do século XIX, um Portugal que ao ser defrontado com o resto da Europa lhes
parecia um país absolutamente decadente, à esquina do progresso que impulsionava
o mundo moderno.
Dentre os mais reconhecidos escritores desta geração,
como Eça de Queirós e Oliveira Martins, Antero de
Quental “aparece-nos como o principal mentor da Geração de 70” (1985, p. 885), justamente
no que concerne a este topus literário,
o decadente Portugal oitocentista. Nas Conferências Democráticas, que tiveram lugar no Casino
Lisbonense, em 1871, Antero publicou sua mais famosa conferência, Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, um
projeto que pertencia a um “largo e ambicioso,
embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa” (1985, p. 870). A fim de
observarmos como se constituiu a imagem do Portugal oitocentista para esta geração,
deter-nos-emos brevemente sobre este discurso de Antero, um exemplo conciso e
objetivo do quadro português assim como essa geração o concebia.
Logo no começo de seu discurso, ainda no “Programa das Conferências
Democráticas”, Antero de Quental, enumera quais são os intuitos últimos de sua
fala:
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o
nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada: Procurar
adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam, na Europa; Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da
Ciência Moderna; Estudar as condições de transformação
política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa. Tal é o fim das Conferências democráticas.” (1987, p. 08)
Nesse sentido, podemos perceber que
Antero começa seu discurso construindo a imagem de um Portugal que, mesmo
estando, geograficamente, na Europa, está completamente estanque dos movimentos
da modernidade que impulsionam outras nações européias. Desse modo, o autor passa,
já durante o seu discurso propriamente dito, a elencar os motivos pelos quais Portugal
se tornou, nos últimos três séculos (XVI, XVII e XVIII), um país, incontestavelmente,
decadente, ou seja, um país que não conseguiu “nutrir-se” (1987,
p. 08) de modernidade.
Em resumo, segundo o escritor,
foram três os “fenômenos capitais” (1987, p. 30) da decadência portuguesa: “um moral,
outro político, outro econômico” (1987, p. 30). O primeiro concerne à
transformação do catolicismo pelo Concílio de Trento, que levou o povo
português a uma total opressão do “exame e [d]a consciência individual” (1987,
p. 31), visto que, para o Concílio, “a razão e o pensamento livre são um crime contra
Deus” (1987, p. 31). O segundo deles é a monarquia absolutista que refreou “a elevação
da classe média, instrumento do progresso nas
sociedades modernas” (1987, p. 31, grifo do autor).
Por fim, o último e determinante fator da estagnação portuguesa foi o colonialismo
e a conseqüente falta de investimento nas “indústrias, [...] verdadeiro
fundamento do mundo atual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito,
substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista”
(1987, p. 31, grifo do autor).
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Fonte:
Fonte:
Ana Luísa Patrício
Campos de Oliveira: “A ficção camiliana para além de histórias de amor”.
(Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa
do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da
Motta de Oliveira). São Paulo, 2008.
Notas:
A imagem inserida no
texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de
que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto
postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma
compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua
totalidade. Disponível em: www.teses.usp.br
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