03/08/2014

A Filha do Arcediago, de Camilo Castelo Branco

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Do eu e suas máscaras

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
(...)
Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons

Chico Buarque

Da extensa obra de Camilo Castelo Branco, há muitos romances que apresentam, para críticos e biógrafos, traços da biografia do autor. Segundo os estudiosos, Camilo muitas vezes criou um universo ficcional que coincidia, declarada ou veladamente, com a sua realidade biográfica. Como já ressaltamos, nossa intenção não é apontar aproximações autobiográficas na obra do autor, mas problematizar o recurso do autobiográfico tão caro à modernidade na obra de um autor oitocentista. Infelizmente só pudemos escolher para este trabalho, devido ao tempo e ao seu objetivo, apenas um romance do escritor português. Dentre os inúmeros romances camilianos em que a problemática vida e obra pode ser estudada, chamou-nos atenção          Onde está a felicidade? pelas recorrentes aproximações tecidas por parte da crítica e de renomados biógrafos entre os personagens deste romance e a vida de Camilo Castelo Branco.

Apesar de consideradas figuras especulares de seu criador, tentaremos demonstrar que os personagens Guilherme do Amaral e o jornalista indiciam que o autobiográfico na narrativa camiliana é mais do que um reflexo da personalidade do        eu autoral.

Ressaltando também a figura do narrador, averiguaremos de que forma essa entidade ficcional, muito presente na narrativa camiliana, denuncia a presença de um autor consciente do ato criativo.

Contudo, é tentadora a vontade de considerar, mesmo que brevemente, outros títulos do autor em que o caráter autobiográfico inscrito nas narrativas possa ser problematizado. Por isso decidimos examinar rapidamente duas narrativas em que Camilo usa de sua biografia, de forma clara ou disfarçadamente, para a construção da sua ficção: Amor de Perdição(1862) e Duas horas de leitura (1857). A escolha por essas duas narrativas se deve à maneira distinta como ambas inscrevem o recurso do autobiográfico nos seus enredos.

Em Amor de perdição, Camilo inspira-se na sua biografia para construir sua ficção. Tentando dar veracidade à história de amor de Simão e Teresa, o autor se utiliza de figuras de sua família, transformando-os em seres ficcionais. No entanto, é curioso notar que se o narrador promete contar a paixão impossível de seu tio Simão por Teresa nessas “memórias de família”, a narrativa acaba por se aproximar do relacionamento amoroso vivido por Camilo e Ana Plácido na mesma época. Vale lembrar que Camilo escreveu Amor de perdição quando estava na cadeia, acusado por seu caso adúltero com Ana Plácido. Narrando o impedimento amoroso de Simão e Teresa, Camilo talvez tenha pretendido narrar a sua difícil situação naquele momento.

Segundo Annabela Rita, o sujeito camiliano é “um sujeito que vê e se faz ver, quer individualmente, quer na e à sua família, de determinado modo: marcado pela fatalidade de uma marginalidade devida à experiência-limite do amor” (1991, p.57).

Para Rita, portanto, Camilo também se considerava um marginalizado como os seus personagens românticos devido às suas controvertidas experiências amorosas.

Pretendendo se “fazer ver” para o leitor, o autor começa Amor de perdição com uma “Introdução” em que revela “onde está” e também “como esteve” Simão naquele mesmo lugar (RITA: 1991, p. 57), aproximando a situação pela qual passou o personagem de sua própria realidade. Ainda sugerindo certa aproximação com o protagonista do seu romance, Camilo afirma ainda na “Introdução” que o “leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história de [Simão], choraria” (CASTELO BRANCO: 1968, p.8), criticando uma sociedade que o condenou por seu relacionamento amoroso com Ana Plácido, mas que se sensibilizaria no espaço da ficção com a história de amor de Simão e Teresa.

No entanto, conforme considerou Annabela Rita, Camilo ao conectar a sua história a de Simão e assim inscrevê-la no espaço romanesco não só “reforça o estatuto de veracidade do narrado, como também contamina aquela de ficcionalidade” (1991, p.57). Mesmo afirmando fingidamente que estava a contar a história verídica de um tio seu, ou apesar de disfarçadamente narrar um episódio de sua vida, Camilo escreveu em Amor de Perdição uma história de amor só possível de fato no universo ficcional, pois impregnou a “verídica” história que pretendia contar com a imaginação de que nunca conseguiu desprender-se.

Em um dos contos de Duas horas de leitura, título menos conhecido do autor português, o narrador-personagem conta sobre um estranho episódio de sua vida. A pequena narrativa intitulada “Impressão indelével” chama a atenção pela clara aproximação que se pode fazer entre o enredo e a biografia de Camilo. Nesse pequeno conto, o narrador comenta sobre a orfandade e a sua relação com a irmã. Ele se detém, porém, num namoro que teve aos quinze anos com uma bonita moça chamada Maria do Adro. Narrando essa sua paixão de infância, o narrador explica que se separou de Maria quando saiu de sua aldeia e foi para o Porto cursar Medicina. Ao voltar, durante as férias do curso, o narrador-personagem descobre que Maria do Adro adoecera e morrera. Pareceria apenas mais um trágico final de uma história de amor se não fosse o estranho fato de o narrador-personagem, mesmo com o “coração em lágrimas” (1858, p.67), aceitar o pedido do seu cunhado, que era médico, de desenterrar o cadáver de Maria. Ao aceitar a proposta do cunhado, que desejava o esqueleto da jovem para estudar anatomia, o narrador mostra-se mais preocupado com o mau cheiro do cadáver do que com o sentimento que teria ao ver sua amada já morta. No final da história – que é contada a um interlocutor que não participa em nenhum momento da narrativa –, o narrador-personagem revela o destino dado aos ossos da jovem: “Falta dizer-te, meu caro Barbosa, que o esqueleto de Maria está no quarto de meu cunhado” (1858, p.71).

Para Alberto Pimentel, essa história presente em Duas horas de leitura realmente aconteceu com Camilo. A única diferença entre a ficção e a realidade, segundo o biógrafo, é que “Camilo não guardou os ossos de Maria do Adro” (1922, p.65). Para Pimentel, “tão caro [Camilo] pagou o capricho romântico da exumação, que nunca mais os quis ver” (1922, p.65). Porém, é intrigante pensar por que o autor não manteve até o fim da narrativa a fidelidade ao vero ao contar esse episódio de sua vida.

Através das considerações de Pimentel, podemos pensar que Camilo quis dar um final ultra-romântico para aquela história, mesmo que não tivesse vivenciado aquela experiência amorosa com o romantismo pintado na ficção. Assim, o autor recria ficcionalmente o estranho episódio de sua biografia, indiciando que, mesmo numa narrativa sugestivamente autobiográfica, sempre há um cadinho da sua imaginação.

Amor de perdição aproxima-se de Onde está a felicidade? por apresentar o eu autoral como presença     insinuante na narrativa. Em ambos os textos, Camilo indiretamente inscreve um episódio de sua vida, sugerindo certa aproximação entre o criador e seus personagens. Em Duas horas de leitura, porém, defende-se uma clara aproximação entre a biografia do autor e a história narrada em “Impressão indelével”.

No entanto, apesar do evidente caráter autobiográfico, essa narrativa acaba com um final diferente da do plano real, obedecendo aos apelos da escrita ultra-romântica.

Tanto em Amor de perdição com em Duas horas de leitura a possível pretensão autobiográfica de Camilo cede lugar à ficção. Se Camilo Castelo Branco, de forma insinuante ou declarada, inscreveu-se na sua ficção, ele também parece ter sempre injetado na sua tumultuada biografia episódios marcados por arroubos ficcionais.

Acreditamos com isso que a proposta de Camilo foi sempre pela ficção tanto ao inscrever nas suas ardilosas narrativas a sua biografia, como em Amor de Perdição, quanto ao fazer da biografia uma forma de ficção, como em Duas horas de leitura.

Diante das possíveis aproximações entre vida e obra em Camilo Castelo Branco, muitos críticos têm tentado apenas distinguir o fato da ficção. No entanto, talvez seja mais válido descobrir nesse jogo entre vida e biografia a capacidade do autor de manipular com maestria o autobiográfico como instrumento do ficcional. Detendo-nos no romance Onde está a felicidade?, tentaremos entender a proposta autobiográfica de Camilo nessa narrativa. Para isso, dividiremos esse capítulo em três momentos.

Primeiro, tentaremos averiguar como o personagem Guilherme do Amaral reflete a personalidade do seu criador. Depois, problematizaremos por que o eu autoral parece ter querido inscrever-se na figura do jornalista. Finalmente, examinaremos como o narrador apresenta um discurso ambíguo que o aproxima do autor.

Pretendemos, ao final da nossa apresentação, descobrir as estratégias utilizadas por Camilo Castelo Branco ao construir um romance que indicia um caráter autobiográfico através de uma sedutora narrativa que nunca abriu mão de ser antes de tudo exemplo de expressão artística.



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Fonte:
Aldira Siqueira de Sant’Anna
: “Por entre máscaras e disfarces: a escrita do eu em Camilo Castelo Branco”. (Dissertação de Mestrado apresentada  ao Programa  de  Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africana). Orientadora: Professora Doutora Monica do Nascimento Figueiredo). Rio de Janeiro, 2010.


Notas
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade.

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