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Reflexões sobre a
estética camiliana: o efeito de distanciamento e a sátira menipéia
Segundo Anatol Rosenfeld,
os termos “épico”, “lírico” e “dramático” podem ser compreendidos a partir de duas
perspectivas: a de cunho substantivo e a de cunho adjetivo. O teórico explica que a acepção de cunho adjetivo “refere-se a
traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o
seu gênero (no sentido substantivo)” (2006, p. 18, grifo do autor). Dessa
forma, podemos estabelecer paralelos – em certa medida – entre obras de gêneros
distintos, comparando, por exemplo, os recursos literários utilizados na peça de
teatro e no romance, deixando de abordar diferenças óbvias como o processo de encenação teatral, por exemplo.
José Ramos
Tinhorão aponta a influência do melodrama na técnica do folhetim, que levou “a então recente criação do romance romântico a
descer ao povo, para transformar-se na primeira expressão ficcional realmente de massa da era
moderna” (1994, p. 9). Entre as características transpostas ao folhetim, destacamos
a apresentação “não [de] situações que levassem a pensar ou exigissem algum nível
de informação paralela, mas [de] ações mirabolantes e situações patéticas”
(1994, p. 8). Assim, o romance romântico incorporou esse procedimento estético,
“em conseqüência do tipo especial de exercício literário que era o de escrever
(às vezes por encomenda) para um público cujos interesses e expectativas deviam
ser respeitados” (1994, p. 11).
Rosenfeld explica
que o fim último do drama – gênero do qual se derivou o melodrama – é a “descarga
das emoções pelas próprias emoções suscitadas” (2006, p. 33), ou seja, a
catarse, motivada a partir de uma ação “rigorosamente encadeada,
precipitando-se com terrível tensão para o desfecho, a ponto de sugar o espectador
para o vórtice do seu movimento inexorável, sem lhe dar folga para observar,
criticar, estudar” (2006, p. 156). Algo que, no
romance, se aproximaria da catarse teatral seria o clímax conduzido pela tensão
dramática, que produziria no ato
de leitura um efeito semelhante ao das lágrimas incitadas pela encenação.
A imagem
comumente tida do romance camiliano aproxima-se dessa definição de folhetim
romântico, de traços melodramáticos, resumida nos elementos que o autor apontou
no prefácio da segunda edição de Amor de Perdição como responsáveis pelo
sucesso de sua obra: “a rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo
para os pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza
da linguagem e desartifício das locuções” (AP, p. 378). Porém, como
Paulo Franchetti (2003, p. XIX) percebeu, na mesma passagem Camilo afirma que “não
aprov[a] a qualificação”, desprezando o uso dessas características: “O romance
que não se estribar em outras recomendações mais sólidas, deve ter uma voga mui
pouco duradoura” (AP, p. 378). A partir dessa afirmação, o autor parece querer
nos alertar que o seu romance é mais do que aparenta: apesar de fazer uso das
técnicas do folhetim melodramático, a sua obra
não é só isso. De acordo com António Cabral,
[...] um
dos conseguimentos deste escritor é ir iludindo o pobre mortal que o lê, metê-lo por inteiro na embrulhada das suas histórias,
adormecê-lo, saber que isso é
mesmo assim e depois pregar-lhe um beliscão, como quem diz: acorde, amigo, se quer
divertir-se com a leitura e, ao mesmo tempo, aprender alguma coisa com ela.
(1993, p. 53).
Como procuramos
mostrar ao longo deste trabalho, o cômico e o sério estão presentes nas três obras
analisadas: assim como o cômico não incita risos gratuitos, tendo quase sempre uma
intenção crítica por trás dele, o sério geralmente não provoca lágrimas, sendo na
maioria das vezes suplantado por comentários jocosos do narrador, que mostram uma
visão realista da vida, desvelando o comportamento das personagens. Segundo Rosenfeld,
o cômico “produz certa ‘anestesia do coração’ momentânea, exige no momento certa
insensibilidade emocional [...]. Para podermos rir [...], é impositivo que não
fiquemos muito identificados e nos mantenhamos
distanciados em face dos personagens e dos seus desastres” (2006, p. 157).
Assim, quando a tensão dramática começa a ser criada, deparamo-nos com um
momento anticlímax, que impede que as nossas lágrimas sejam derramadas.
O uso desse
procedimento camiliano pode ser notado em algumas passagens de Amor de
Perdição, já analisadas por nós. No momento em que Simão é condenado à
forca, o narrador dá voz aos anônimos populares, quebrando a tensão dramática para
inserir uma cômica crítica social, diminuindo o processo de identificação com o
herói. Sobre a descrição do convento das freiras devassas, Esther de Lemos
afirma que “[...] Teresa sofre menos ali: é que a pintura jocosa do ambiente
distrai o narrador, o leitor e a própria personagem, do drama passional em que
todos estavam empenhados” (1992, p. 25). António Cabral define a cena do “padre
capelão galanteador” como “um balde de água fria no significado da clausura de Teresa”
(1993, p. 59). O crítico também aponta as “intervenções galhofeiras de João da
Cruz e todo o capítulo XVI”, sobre o caso amoroso de Manuel Botelho, como “exemplos
de interrupção lúcida e lúdica do clima patológico crescente” (1993, p. 59). Para
ele, “a pausa não tem apenas uma função relaxante: proporciona também as
condições necessárias a uma observação objetiva, desafetada. É o criador a abandonar
de certa maneira a sua criatura” (1993, p.
59-60).
O único episódio de Coração,
Cabeça e Estômago que poderia efetivamente derramar lágrimas do leitor é o de Marcolina, “a mulher que
o mundo despreza”, citado em nossos capítulos anteriores. No entanto, mesmo no
relato sério e trágico da moça, o narrador camiliano insere intrusões cômicas de
Silvestre, como no trecho em que ela conta sobre o desespero do barão para
impedi-la de ir embora, tirando do seu dedo “um grande brilhante, que ele chamou
anel de casamento”, querendo que ela “o pusesse entre outros, posto que podia abranger
três dos [seus] dedos”. O protagonista, assim, interrompe Marcolina com o seguinte comentário: “Era uma pulseira! – interrompi eu com
ambições de graça. – O barão, exceto os dedos, parece-me um bom sujeito!” (CCE,
p. 100).
Já em O Que Fazem Mulheres,
as intrusões cômicas do narrador camiliano aparecem a todo o momento, como Cleonice Berardinelli explicou: “o
livro tem páginas repassadas de emoção, situações dramáticas, reflexões enternecidas,
diálogos tensos, mas a tensão do leitor se afrouxa, a lágrima seca, ao som da
voz do narrador” (1994, p. 235). Como exemplos – já trabalhados por nós –,
podemos citar as cenas de fúria ciumenta de João José Dias, nas quais o
narrador insere descrições grotescas do personagem, que quebram a tensão através
do cômico. Após uma dessas cenas, temos o início do capítulo que apresenta o comentário
irônico do narrador sobre a “castidade da lua” e “os poetas que amam em verso”.
Em outra
cena, depois de fazer o leitor se condoer com o sofrimento de Ludovina, temos o
trecho iniciado pelas carreiras de reticências, colocadas como forma de zombar da
ingenuidade de Melchior Pimenta, que não desconfiava de que sua esposa estivera
com um amante em seu quarto.
Dois
outros momentos de tensão são quebrados com a ridicularização de Melchior Pimenta.
Num deles, João José Dias ouve a conversa de Ludovina e Angélica, e descobre
que a adúltera era sua sogra, enquanto o marido traído encontra-se dormindo e
roncando. Já o tom excessivamente “lagrimoso” do capítulo em que Ludovina visita
o amante de sua mãe, moribundo após ter sido baleado pelo brasileiro, e descobre
que este é seu pai – e não Pimenta –, é interrompido pelo tom cômico do
capítulo seguinte. Denominado “Cinco páginas que é melhor não lerem”, ele
consiste numa paródia do linguajar jurídico, a fim de contradizer a lei do Digesto de que “O pai é aquele que se diz
pai no assento do batismo” (QFM, p. 1324) e defender a obviedade da
afirmação “Pai é aquele que é pai” (QFM, p. 1325). Esse trecho termina com o paródico “Corolário”: “Melchior
Pimenta era um dois pais presumidos na intenção
do Digesto, na lei citada, do L. 5º. de in jus voc., e C. da
Rocha no cap. Paternidade e filiação legítima” (QFM, p. 1327,
grifo do autor).
Como
afirma João Bigotte Chorão, “Camilo tem esse segredo de, nos lances mais dramáticos,
introduzir uma situação ou observação caricatural, uma digressão inesperada no contexto,
que servem a atenuar a tensão, a dar ânimo ao leitor, quando menos espera ser sacudido
por frouxos de riso” (1990, p. 44). Dessa forma, parece-nos que esses romances,
antes de suscitarem emoções gratuitas, através de peripécias melodramáticas, conduzem
à reflexão, como procuramos mostrar ao longo deste trabalho. Segundo António
Cabral, temos em Camilo “divertimento e
ensinamento27,
como no teatro épico de Bertolt Brecht” (1993, p. 54). A analogia feita entre
Brecht e Camilo não nos parece absurda28, se desconsiderarmos as diferenças entre os gêneros – romance e teatro – e
atentarmos apenas aos recursos literários utilizados
por ambos em suas obras.
Anatol
Rosenfeld explica, a partir das palavras de Brecht, que “o teatro épico não combate
as emoções [...]. Examina-as, e não se satisfaz com a sua mera produção” (2006,
p. 148). Segundo o teórico, o teatro épico pretendia combater a alienação
provocada pela catarse dramática, elevando a emoção ao raciocínio através do efeito
de distanciamento, que torna estranho ao espectador aquilo que lhe é habitual, “[...]
para que nós mesmos e a nossa situação se tornem objetos do nosso juízo crítico”
(2006, p. 151). Ele aponta alguns recursos literários utilizados por Brecht para
a construção desse efeito de distanciamento: “ao lado da atitude narrativa geral
associada à própria estrutura da peça, Brecht emprega, para obter o efeito desejado,
particularmente a ironia. ‘Ironia é distância’, disse Thomas Mann. [...] Outro recurso é a paródia” (2006, p. 156).
Como vimos
através das análises de Amor de Perdição, Coração, Cabeça e Estômago e O Que Fazem
Mulheres, as características que mais se sobressaem nesses romances são a onipresença do narrador, que
insere seus comentários irônicos a todo o momento da ação, e a utilização sistemática
da paródia, como forma de rebaixar, ou pelo menos relativizar pela ambigüidade,
os personagens – principalmente os heróis românticos – e desconstruir os discursos
literários vigentes. Com isso, temos o impedimento da completa fruição da tensão
dramática, promovendo, assim, a reflexão, tanto dos modelos em voga, como dos
comportamentos sociais. Dessa forma, tal como Brecht, Camilo chama o seu leitor
a ter uma atitude distanciada perante a matéria narrada: ele não deve se deixar
arrebatar pelo “movimento inexorável” da tensão dramática, mas sim “observar,
criticar, estudar” a situação apresentada.
Sendo assim,
podemos concluir que Camilo pressupunha dois tipos de leitores, como podemos relembrar no trecho do prefácio “A todos os que
lerem”, de O Que Fazem Mulheres, analisado por nós no capítulo 3.3: “O leitor,
esse precisa mais alguma coisa: inteligência; – e, se não bastar esta, valha-se da resignação” (QFM,
p. 1233). Para esse leitor menos inteligente – o que se valeria da resignação –,
o autor apresentava as “ações mirabolantes e situações patéticas” do melodrama.
Para aquele provido de inteligência – “a ‘audiência’ que perceb[e] o jogo [...],
sempre uma audiência de certo modo privilegiada” (FERRAZ, 1985, p. 26) –, Camilo
escrevia as entrelinhas da narrativa, repletas de ironia e paródia a esses
mesmos procedimentos folhetinescos. Com isso, agradava a todos e garantia, assim, o sucesso comercial de seus livros.
É importante,
no entanto, ressaltarmos aqui uma das muitas diferenças entre Brecht e Camilo. O dramaturgo, pertencente a outro contexto
histórico, político e social, pós-Revolução Russa, tinha um claro propósito de fazer de sua arte um
instrumento engajado de luta política, em defesa dos princípios marxistas, e sua
oposição ao teatro dramático é motivada por um
intuito didático de “apresentar um ‘palco científico’ capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade
de transformá-la; capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele suscitar a
ação transformadora” (ROSENFELD, 2006, p. 148). Camilo, por outro lado, não
parece ter esse intuito didático, como deixa explícito nas palavras finais de A
Queda dum Anjo – “Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não
há-de levar ao céu número de almas mais vantajoso que o do ano passado” (1986,
p. 1005) – e de A Brasileira de Prazins: “o
meu romance não pretende reorganizar coisa nenhuma. E o autor desta obra
estéril assevera, em nome do patriarca Voltaire, que deixaremos este mundo
tolo e mau, tal qual era quando cá
entramos” (1988, p. 852, grifo do autor).
Como
procuramos mostrar ao longo de nosso trabalho, ao mesmo tempo em que o narrador
camiliano não espera punição humana nem divina às injustiças sociais, ele mostra
que apenas os corruptos vencem nessa sociedade, não havendo a menor chance de sucesso
para os que cultivam algum tipo de ideal – nem na vida, nem na ficção, uma vez
que o próprio olhar realista do narrador ridiculariza esses ideais. Nas palavras
de Eduardo Lourenço, “no final da sua novela Camilo dá-se conta de que toda a
sua mitologia da paixão e da fatalidade se desmorona, de que os seus heróis pouco
morais não são castigados pelo destino ou pela providência; em suma, de que
pode haver (pelo menos em aparência) culpados-felizes” (1994, p. 223,
grifo do autor). Assim, “a prosa de Camilo se compraz em ser o ácido que
dissolve as certezas e a respeitabilidade dos comportamentos, sem nada
apresentar como contrapartida ou ponto de
afirmação” (FRANCHETTI, 2003, p. XLIX).
De acordo com
Bigotte Chorão, “Camilo não tem ilusões sobre o homem e a sociedade, e não cura
pois de reformar nem um nem outra” (1993, p. 14). Com isso, segundo Maria Helena
Nery Garcez, “[...] a ficção camiliana demonstra-se cética, não pretendendo desempenhar
qualquer função moralizante ou educativa na vida social” (1992, p. 23).
Concordamos com Carlos Reis
e Maria da Natividade Pires, que afirmam que
[...] é ainda
a ironia que está presente quando o narrador demonstra preocupação com a função
moralizante da literatura e verifica que não consegue que ela cumpra essa função porque a vida, afinal, não
o permite [...]. Ele assume [...] uma posição ambígua, construindo muitos dos seus
romances ou novelas segundo esse esquema “moralizador”, mas tecendo com freqüência
nas margens do texto, comentários sobre a ineficácia da intervenção do romance na
sociedade e sobre os exemplos falhos de “sã moralidade” que a própria vida dá. (1999, p. 220).
É devido a esse caráter realista
da obra de Camilo, que parece não cultivar nenhum ideal, nem esperar nenhuma mudança na sociedade, que
evitamos denominar a ironia utilizada pelo seu narrador de “ironia romântica”.
O termo “ironia romântica”, segundo Maria de Lourdes Ferraz, possui uma acepção
que centra na questão do diálogo entre narrador e narratário, que “envolve a
reformulação do fazer literário e o questionar desse fazer” (1985, p. 39), sendo “um meio que o eu usa para se auto-representar
artisticamente, movimento dialético
entre realidade e ficção” (1985, p. 43, grifo da autora), características que, como
vimos ao longo deste trabalho, podem ser encontradas na ficção camiliana. Por
outro lado, a “ironia romântica” também envolve uma visão crítica de mundo baseada
na defesa de um ideal, como explicam Anatol
Rosenfeld e J. Guinsburg:
[...] na medida em que
procuram desfazer as aparências do mundo filisteu, os românticos exaltam o infinito de uma
esfera mais essencial, o verdadeiro universo
poético. Neste sentido, sua ironia se reveste de um caráter quase religioso, tanto mais quanto não se limitam
a condenar os padrões da sociedade como tais, aqueles que radicam o homem burguês
num certo modo de vida, mas também a sua grosseira
natureza terrena, material, propondo-se
a substituí-los por outros, que se lhe afiguram sublimes e ideais.
(2002, p. 286, grifo nosso).
Pelo mesmo
motivo que o termo “ironia romântica” – ao pressupor um idealismo que não podemos
encontrar nos romances analisados – nos parece inadequado, o termo “sátira de costumes” também pode ser discutido. O Dicionário do
Romantismo Literário Português define a sátira de costumes romântica como “[...] uma atitude que
pretende castigar ou, pelo menos abalar,
pessoas ou instituições, sempre através de um efeito de riso [...]; enfim, uma atitude
pedagógica” (1997, p. 527). Na enciclopédia Biblos, por sua vez, temos a
explicação de que, “criticando
o funcionamento das coisas [...], o satirista revela-se assim, não apenas um inconformado,
mas também alguém que conhece o caminho da reintegração e do reordenamento”
(1999, p. 1161). Segundo Linda Hutcheon, a sátira “é simultaneamente moral e
social no seu alcance e aperfeiçoadora na sua intenção” (1985, p. 28),
ridicularizando “os vícios ou loucuras da Humanidade, tendo em vista a sua correção”
(1985, p. 74). Como vimos, em Camilo a “atitude pedagógica” é discutível, e não
nos parece que ele tenha em vista a “correção” da sociedade através da literatura,
nem que conheça “o caminho da reintegração e
do reordenamento”.
Estudando
a sátira Antiga, encontramos algumas respostas que podem nos ajudar em nossa reflexão
sobre a estética camiliana. Segundo Enylton de Sá Rego, existem duas tradições de
sátira, que persistem até as produções atuais: a da sátira romana (também chamada
de moral), que “deve ter uma função moralizadora indubitável, e o riso deve
servir apenas como um meio para as denúncias dos vícios da humanidade” (1989,
p. 34) – tradição à qual se filia o conceito convencional de “sátira”, como vimos
acima –, e a da sátira grega (também chamada de menipéia), que “não deve ser
julgada pelos critérios moralistas impostos pela tradição da sátira romana”
(1989, p. 36). A partir da obra de Luciano de Samosata, Sá Rego destacou as principais
características da sátira menipéia, das quais apresentamos algumas: a “utilização
da paródia aos textos literários clássicos e contemporâneos, como meio de renovação
artística”; o “estatuto ambíguo e caráter não-moralizante”, “na qual nem o elemento
sério nem o elemento cômico têm preponderância, mas apenas coexistem”; e o “aproveitamento sistemático do ponto de vista do kataskopos
ou observador distanciado, que, como um espectador desapaixonado, analisa não só o mundo a que se
refere como também a sua própria obra literária,
a sua própria visão de mundo” (1989, p. 45-46, grifo do autor). Segundo o
crítico,
É através
da utilização do ponto de vista distanciado que Luciano consegue ao mesmo tempo afastar-se das convenções dos
gêneros literários vigentes em
sua época e, paradoxalmente, renová-las, isto é, dar-lhes nova vida através de
sua hibridização; é ainda o distanciamento que lhe permite o uso da paródia para aquele fim; é ele ainda que
possibilita a relativização do conceito de veracidade [...]; e, finalmente, é
esse mesmo distanciamento que o
mantém avesso a uma posição ética, moralizante, posto que relativiza não só as
outras como a sua própria verdade [...]. (1989, p. 66-67).
Como
procuramos mostrar ao longo deste trabalho, tais características podem ser claramente encontradas em Amor de Perdição, Coração,
Cabeça e Estômago e O Que Fazem Mulheres, o que nos possibilitaria
concluir que, se quisermos definir o romance camiliano a partir de algum termo específico, talvez o
mais apropriado seja relacioná-lo à tradição da sátira
menipéia29. Sá Rego
relaciona a essa tradição de sátira, entre outros, dois autores: Laurence Sterne e Machado de Assis.
Curiosamente, alguns críticos costumam aproximar a obra de Camilo das obras de Sterne
e de Machado. Segundo Paulo Franchetti, Camilo e Sterne “viam o texto romanesco
não como sendo basicamente o desenvolvimento de uma intriga, nos moldes mais
propriamente românticos, mas como uma prática narrativa em que o comentário filosófico
ou simplesmente digressivo e espirituoso aparecia como o ponto distintivo do
gosto” (2003, p. XXXI-XXXII). Jacinto do Prado Coelho apontou a importância da temática
da “interferência do literário no dia-a-dia”, que, “com os respectivos efeitos de
contraste, é processo que virá a caracterizar Machado de Assis” (1996, p. 138).
Já Cleonice Berardinelli defende que
[...] em língua
portuguesa, só Machado se equipara a Camilo na riqueza e diversidade do paratexto:
seus prefácios originais, ulteriores ou ficcionais, dedicatórias, epígrafes,
subtítulos, intertítulos, intertítulos-sumários, notas e notas ficcionais
dariam exemplos sobejos e expressivos a Gérard Genette se – suposição absurda! –
ele lesse autores portugueses ou brasileiros. (1994, p. 235).
O que parece aproximar
Camilo de Sterne e Machado é a onipresença do narrador, com seu olhar distanciado, sempre pronto a
demolir os alicerces dos discursos literários e dos comportamentos sociais em
voga, característico da sátira menipéia, tradição à qual, segundo Sá Rego, o escritor
inglês e o escritor brasileiro pertencem. A nosso ver, Camilo pode ser inserido
nessa tradição, influenciado por Sterne e provável influenciador de Machado,
como deixara a entender Prado Coelho: “tal atitude e tais processos situam
Camilo na linha que vai de Sterne até Machado de Assis, donde certas
reminiscências camilianas que nos acodem ao espírito
quando lemos o genial autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas” (2001,
p. 430).
Assim sendo,
procuramos apresentar aqui apenas algumas reflexões sobre a estética de Camilo
presente nos romances Amor de Perdição, Coração, Cabeça e Estômago e
O Que Fazem Mulheres, como forma de discutir a complexidade de sua obra.
Mistura do sério e do cômico, ela mostra não ser apenas um resultado da “indeterminação
de gêneros tornada possível pela revolução romântica” (COELHO, 2001, p. 399), mas
um resgate de uma tradição que contribui para
a renovação da literatura, através do seu riso questionador.
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Fonte:
Luciene Marie Pavanelo: “Entre o coração e o estômago: o olhar distanciado de Camilo Castelo Branco”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira). São Paulo, 2008.
Fonte:
Luciene Marie Pavanelo: “Entre o coração e o estômago: o olhar distanciado de Camilo Castelo Branco”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira). São Paulo, 2008.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: www.teses.usp.br
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