03/08/2014

Doze Casamentos Felizes, de Camilo Castelo Branco

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Reflexões sobre a estética camiliana: o efeito de distanciamento e a sátira menipéia
  
Segundo Anatol Rosenfeld, os termos “épico”, “lírico” e “dramático” podem ser compreendidos a partir de duas perspectivas: a de cunho substantivo e a de cunho adjetivo. O teórico explica que a acepção de cunho adjetivo “refere-se a traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero (no sentido substantivo)” (2006, p. 18, grifo do autor). Dessa forma, podemos estabelecer paralelos – em certa medida – entre obras de gêneros distintos, comparando, por exemplo, os recursos literários utilizados na peça de teatro e no romance, deixando de abordar diferenças óbvias como o processo de encenação teatral, por exemplo.

José Ramos Tinhorão aponta a influência do melodrama na técnica do folhetim, que levou “a então recente criação do romance romântico a descer ao povo, para transformar-se na primeira expressão ficcional realmente de massa da era moderna” (1994, p. 9). Entre as características transpostas ao folhetim, destacamos a apresentação “não [de] situações que levassem a pensar ou exigissem algum nível de informação paralela, mas [de] ações mirabolantes e situações patéticas” (1994, p. 8). Assim, o romance romântico incorporou esse procedimento estético, “em conseqüência do tipo especial de exercício literário que era o de escrever (às vezes por encomenda) para um público cujos interesses e expectativas deviam ser respeitados” (1994, p. 11).

Rosenfeld explica que o fim último do drama – gênero do qual se derivou o melodrama – é a “descarga das emoções pelas próprias emoções suscitadas” (2006, p. 33), ou seja, a catarse, motivada a partir de uma ação “rigorosamente encadeada, precipitando-se com terrível tensão para o desfecho, a ponto de sugar o espectador para o vórtice do seu movimento inexorável, sem lhe dar folga para observar, criticar, estudar” (2006, p. 156). Algo que, no romance, se aproximaria da catarse teatral seria o clímax conduzido pela tensão dramática, que produziria no ato de leitura um efeito semelhante ao das lágrimas incitadas pela encenação.

A imagem comumente tida do romance camiliano aproxima-se dessa definição de folhetim romântico, de traços melodramáticos, resumida nos elementos que o autor apontou no prefácio da segunda edição de Amor de Perdição como responsáveis pelo sucesso de sua obra: “a rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das locuções” (AP, p. 378). Porém, como Paulo Franchetti (2003, p. XIX) percebeu, na mesma passagem Camilo afirma que “não aprov[a] a qualificação”, desprezando o uso dessas características: “O romance que não se estribar em outras recomendações mais sólidas, deve ter uma voga mui pouco duradoura” (AP, p. 378). A partir dessa afirmação, o autor parece querer nos alertar que o seu romance é mais do que aparenta: apesar de fazer uso das técnicas do folhetim melodramático, a sua obra não é só isso. De acordo com António Cabral,

[...] um dos conseguimentos deste escritor é ir iludindo o pobre mortal que o lê, metê-lo por inteiro na embrulhada das suas histórias, adormecê-lo, saber que isso é mesmo assim e depois pregar-lhe um beliscão, como quem diz: acorde, amigo, se quer divertir-se com a leitura e, ao mesmo tempo, aprender alguma coisa com ela. (1993, p. 53).

Como procuramos mostrar ao longo deste trabalho, o cômico e o sério estão presentes nas três obras analisadas: assim como o cômico não incita risos gratuitos, tendo quase sempre uma intenção crítica por trás dele, o sério geralmente não provoca lágrimas, sendo na maioria das vezes suplantado por comentários jocosos do narrador, que mostram uma visão realista da vida, desvelando o comportamento das personagens. Segundo Rosenfeld, o cômico “produz certa ‘anestesia do coração’ momentânea, exige no momento certa insensibilidade emocional [...]. Para podermos rir [...], é impositivo que não fiquemos muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e dos seus desastres” (2006, p. 157). Assim, quando a tensão dramática começa a ser criada, deparamo-nos com um momento anticlímax, que impede que as nossas lágrimas sejam derramadas.

O uso desse procedimento camiliano pode ser notado em algumas passagens de Amor de Perdição, já analisadas por nós. No momento em que Simão é condenado à forca, o narrador dá voz aos anônimos populares, quebrando a tensão dramática para inserir uma cômica crítica social, diminuindo o processo de identificação com o herói. Sobre a descrição do convento das freiras devassas, Esther de Lemos afirma que “[...] Teresa sofre menos ali: é que a pintura jocosa do ambiente distrai o narrador, o leitor e a própria personagem, do drama passional em que todos estavam empenhados” (1992, p. 25). António Cabral define a cena do “padre capelão galanteador” como “um balde de água fria no significado da clausura de Teresa” (1993, p. 59). O crítico também aponta as “intervenções galhofeiras de João da Cruz e todo o capítulo XVI”, sobre o caso amoroso de Manuel Botelho, como “exemplos de interrupção lúcida e lúdica do clima patológico crescente” (1993, p. 59). Para ele, “a pausa não tem apenas uma função relaxante: proporciona também as condições necessárias a uma observação objetiva, desafetada. É o criador a abandonar de certa maneira a sua criatura” (1993, p. 59-60).

O único episódio de Coração, Cabeça e Estômago que poderia efetivamente derramar lágrimas do leitor é o de Marcolina, “a mulher que o mundo despreza”, citado em nossos capítulos anteriores. No entanto, mesmo no relato sério e trágico da moça, o narrador camiliano insere intrusões cômicas de Silvestre, como no trecho em que ela conta sobre o desespero do barão para impedi-la de ir embora, tirando do seu dedo “um grande brilhante, que ele chamou anel de casamento”, querendo que ela “o pusesse entre outros, posto que podia abranger três dos [seus] dedos”. O protagonista, assim, interrompe Marcolina com o seguinte comentário: “Era uma pulseira! – interrompi eu com ambições de graça. – O barão, exceto os dedos, parece-me um bom sujeito!” (CCE, p. 100).

Já em O Que Fazem Mulheres, as intrusões cômicas do narrador camiliano aparecem a todo o momento, como Cleonice Berardinelli explicou: “o livro tem páginas repassadas de emoção, situações dramáticas, reflexões enternecidas, diálogos tensos, mas a tensão do leitor se afrouxa, a lágrima seca, ao som da voz do narrador” (1994, p. 235). Como exemplos – já trabalhados por nós –, podemos citar as cenas de fúria ciumenta de João José Dias, nas quais o narrador insere descrições grotescas do personagem, que quebram a tensão através do cômico. Após uma dessas cenas, temos o início do capítulo que apresenta o comentário irônico do narrador sobre a “castidade da lua” e “os poetas que amam em verso”.

Em outra cena, depois de fazer o leitor se condoer com o sofrimento de Ludovina, temos o trecho iniciado pelas carreiras de reticências, colocadas como forma de zombar da ingenuidade de Melchior Pimenta, que não desconfiava de que sua esposa estivera com um amante em seu quarto.

Dois outros momentos de tensão são quebrados com a ridicularização de Melchior Pimenta. Num deles, João José Dias ouve a conversa de Ludovina e Angélica, e descobre que a adúltera era sua sogra, enquanto o marido traído encontra-se dormindo e roncando. Já o tom excessivamente “lagrimoso” do capítulo em que Ludovina visita o amante de sua mãe, moribundo após ter sido baleado pelo brasileiro, e descobre que este é seu pai – e não Pimenta –, é interrompido pelo tom cômico do capítulo seguinte. Denominado “Cinco páginas que é melhor não lerem”, ele consiste numa paródia do linguajar jurídico, a fim de contradizer a lei do Digesto de que “O pai é aquele que se diz pai no assento do batismo” (QFM, p. 1324) e defender a obviedade da afirmação “Pai é aquele que é pai” (QFM, p. 1325). Esse trecho termina com o paródico “Corolário”: “Melchior Pimenta era um dois pais presumidos na intenção do Digesto, na lei citada, do L. 5º. de in jus voc., e C. da Rocha no cap. Paternidade e filiação legítima” (QFM, p. 1327, grifo do autor).

Como afirma João Bigotte Chorão, “Camilo tem esse segredo de, nos lances mais dramáticos, introduzir uma situação ou observação caricatural, uma digressão inesperada no contexto, que servem a atenuar a tensão, a dar ânimo ao leitor, quando menos espera ser sacudido por frouxos de riso” (1990, p. 44). Dessa forma, parece-nos que esses romances, antes de suscitarem emoções gratuitas, através de peripécias melodramáticas, conduzem à reflexão, como procuramos mostrar ao longo deste trabalho. Segundo António Cabral, temos em Camilo “divertimento e ensinamento27, como no teatro épico de Bertolt Brecht” (1993, p. 54). A analogia feita entre Brecht e Camilo não nos parece absurda28, se desconsiderarmos as diferenças entre os gêneros – romance e teatro – e atentarmos apenas aos recursos literários utilizados por ambos em suas obras.

Anatol Rosenfeld explica, a partir das palavras de Brecht, que “o teatro épico não combate as emoções [...]. Examina-as, e não se satisfaz com a sua mera produção” (2006, p. 148). Segundo o teórico, o teatro épico pretendia combater a alienação provocada pela catarse dramática, elevando a emoção ao raciocínio através do efeito de distanciamento, que torna estranho ao espectador aquilo que lhe é habitual, “[...] para que nós mesmos e a nossa situação se tornem objetos do nosso juízo crítico” (2006, p. 151). Ele aponta alguns recursos literários utilizados por Brecht para a construção desse efeito de distanciamento: “ao lado da atitude narrativa geral associada à própria estrutura da peça, Brecht emprega, para obter o efeito desejado, particularmente a ironia. ‘Ironia é distância’, disse Thomas Mann. [...] Outro recurso é a paródia” (2006, p. 156).

Como vimos através das análises de Amor de Perdição, Coração, Cabeça e Estômago e O Que Fazem Mulheres, as características que mais se sobressaem nesses romances são a onipresença do narrador, que insere seus comentários irônicos a todo o momento da ação, e a utilização sistemática da paródia, como forma de rebaixar, ou pelo menos relativizar pela ambigüidade, os personagens – principalmente os heróis românticos – e desconstruir os discursos literários vigentes. Com isso, temos o impedimento da completa fruição da tensão dramática, promovendo, assim, a reflexão, tanto dos modelos em voga, como dos comportamentos sociais. Dessa forma, tal como Brecht, Camilo chama o seu leitor a ter uma atitude distanciada perante a matéria narrada: ele não deve se deixar arrebatar pelo “movimento inexorável” da tensão dramática, mas sim “observar, criticar, estudar” a situação apresentada.

Sendo assim, podemos concluir que Camilo pressupunha dois tipos de leitores, como podemos relembrar no trecho do prefácio “A todos os que lerem”, de O Que Fazem Mulheres, analisado por nós no capítulo 3.3: “O leitor, esse precisa mais alguma coisa: inteligência; – e, se não bastar esta, valha-se da resignação” (QFM, p. 1233). Para esse leitor menos inteligente – o que se valeria da resignação –, o autor apresentava as “ações mirabolantes e situações patéticas” do melodrama. Para aquele provido de inteligência – “a ‘audiência’ que perceb[e] o jogo [...], sempre uma audiência de certo modo privilegiada” (FERRAZ, 1985, p. 26) –, Camilo escrevia as entrelinhas da narrativa, repletas de ironia e paródia a esses mesmos procedimentos folhetinescos. Com isso, agradava a todos e garantia, assim, o sucesso comercial de seus livros.

É importante, no entanto, ressaltarmos aqui uma das muitas diferenças entre Brecht e Camilo. O dramaturgo, pertencente a outro contexto histórico, político e social, pós-Revolução Russa, tinha um claro propósito de fazer de sua arte um instrumento engajado de luta política, em defesa dos princípios marxistas, e sua oposição ao teatro dramático é motivada por um intuito didático de “apresentar um ‘palco científico’ capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformá-la; capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele suscitar a ação transformadora” (ROSENFELD, 2006, p. 148). Camilo, por outro lado, não parece ter esse intuito didático, como deixa explícito nas palavras finais de A Queda dum Anjo – “Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao céu número de almas mais vantajoso que o do ano passado” (1986, p. 1005) – e de A Brasileira de Prazins: “o meu romance não pretende reorganizar coisa nenhuma. E o autor desta obra estéril assevera, em nome do patriarca Voltaire, que deixaremos este mundo tolo e mau, tal qual era quando cá entramos” (1988, p. 852, grifo do autor).

Como procuramos mostrar ao longo de nosso trabalho, ao mesmo tempo em que o narrador camiliano não espera punição humana nem divina às injustiças sociais, ele mostra que apenas os corruptos vencem nessa sociedade, não havendo a menor chance de sucesso para os que cultivam algum tipo de ideal – nem na vida, nem na ficção, uma vez que o próprio olhar realista do narrador ridiculariza esses ideais. Nas palavras de Eduardo Lourenço, “no final da sua novela Camilo dá-se conta de que toda a sua mitologia da paixão e da fatalidade se desmorona, de que os seus heróis pouco morais não são castigados pelo destino ou pela providência; em suma, de que pode haver (pelo menos em aparência) culpados-felizes” (1994, p. 223, grifo do autor). Assim, “a prosa de Camilo se compraz em ser o ácido que dissolve as certezas e a respeitabilidade dos comportamentos, sem nada apresentar como contrapartida ou ponto de afirmação” (FRANCHETTI, 2003, p. XLIX).

De acordo com Bigotte Chorão, “Camilo não tem ilusões sobre o homem e a sociedade, e não cura pois de reformar nem um nem outra” (1993, p. 14). Com isso, segundo Maria Helena Nery Garcez, “[...] a ficção camiliana demonstra-se cética, não pretendendo desempenhar qualquer função moralizante ou educativa na vida social” (1992, p. 23).

Concordamos com Carlos Reis e Maria da Natividade Pires, que afirmam que

[...] é ainda a ironia que está presente quando o narrador demonstra preocupação com a função moralizante da literatura e verifica que não consegue que ela cumpra essa função porque a vida, afinal, não o permite [...]. Ele assume [...] uma posição ambígua, construindo muitos dos seus romances ou novelas segundo esse esquema “moralizador”, mas tecendo com freqüência nas margens do texto, comentários sobre a ineficácia da intervenção do romance na sociedade e sobre os exemplos falhos de “sã moralidade” que a própria vida dá. (1999, p. 220).

É devido a esse caráter realista da obra de Camilo, que parece não cultivar nenhum ideal, nem esperar nenhuma mudança na sociedade, que evitamos denominar a ironia utilizada pelo seu narrador de “ironia romântica”. O termo “ironia romântica”, segundo Maria de Lourdes Ferraz, possui uma acepção que centra na questão do diálogo entre narrador e narratário, que “envolve a reformulação do fazer literário e o questionar desse fazer” (1985, p. 39), sendo “um meio que o eu usa para se auto-representar artisticamente, movimento dialético entre realidade e ficção” (1985, p. 43, grifo da autora), características que, como vimos ao longo deste trabalho, podem ser encontradas na ficção camiliana. Por outro lado, a “ironia romântica” também envolve uma visão crítica de mundo baseada na defesa de um ideal, como explicam Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg:

[...] na medida em que procuram desfazer as aparências do mundo filisteu, os românticos exaltam o infinito de uma esfera mais essencial, o verdadeiro universo poético. Neste sentido, sua ironia se reveste de um caráter quase religioso, tanto mais quanto não se limitam a condenar os padrões da sociedade como tais, aqueles que radicam o homem burguês num certo modo de vida, mas também a sua grosseira natureza terrena, material, propondo-se a substituí-los por outros, que se lhe afiguram sublimes e ideais. (2002, p. 286, grifo nosso).

Pelo mesmo motivo que o termo “ironia romântica” – ao pressupor um idealismo que não podemos encontrar nos romances analisados – nos parece inadequado, o termo “sátira de costumes” também pode ser discutido. O Dicionário do Romantismo Literário Português define a sátira de costumes romântica como “[...] uma atitude que pretende castigar ou, pelo menos abalar, pessoas ou instituições, sempre através de um efeito de riso [...]; enfim, uma atitude pedagógica” (1997, p. 527). Na enciclopédia Biblos, por sua vez, temos a explicação de que, “criticando o funcionamento das coisas [...], o satirista revela-se assim, não apenas um inconformado, mas também alguém que conhece o caminho da reintegração e do reordenamento” (1999, p. 1161). Segundo Linda Hutcheon, a sátira “é simultaneamente moral e social no seu alcance e aperfeiçoadora na sua intenção” (1985, p. 28), ridicularizando “os vícios ou loucuras da Humanidade, tendo em vista a sua correção” (1985, p. 74). Como vimos, em Camilo a “atitude pedagógica” é discutível, e não nos parece que ele tenha em vista a “correção” da sociedade através da literatura, nem que conheça “o caminho da reintegração e do reordenamento”.

Estudando a sátira Antiga, encontramos algumas respostas que podem nos ajudar em nossa reflexão sobre a estética camiliana. Segundo Enylton de Sá Rego, existem duas tradições de sátira, que persistem até as produções atuais: a da sátira romana (também chamada de moral), que “deve ter uma função moralizadora indubitável, e o riso deve servir apenas como um meio para as denúncias dos vícios da humanidade” (1989, p. 34) – tradição à qual se filia o conceito convencional de “sátira”, como vimos acima –, e a da sátira grega (também chamada de menipéia), que “não deve ser julgada pelos critérios moralistas impostos pela tradição da sátira romana” (1989, p. 36). A partir da obra de Luciano de Samosata, Sá Rego destacou as principais características da sátira menipéia, das quais apresentamos algumas: a “utilização da paródia aos textos literários clássicos e contemporâneos, como meio de renovação artística”; o “estatuto ambíguo e caráter não-moralizante”, “na qual nem o elemento sério nem o elemento cômico têm preponderância, mas apenas coexistem”; e o “aproveitamento sistemático do ponto de vista do kataskopos ou observador distanciado, que, como um espectador desapaixonado, analisa não só o mundo a que se refere como também a sua própria obra literária, a sua própria visão de mundo” (1989, p. 45-46, grifo do autor). Segundo o crítico,

É através da utilização do ponto de vista distanciado que Luciano consegue ao mesmo tempo afastar-se das convenções dos gêneros literários vigentes em sua época e, paradoxalmente, renová-las, isto é, dar-lhes nova vida através de sua hibridização; é ainda o distanciamento que lhe permite o uso da paródia para aquele fim; é ele ainda que possibilita a relativização do conceito de veracidade [...]; e, finalmente, é esse mesmo distanciamento que o mantém avesso a uma posição ética, moralizante, posto que relativiza não só as outras como a sua própria verdade [...]. (1989, p. 66-67).

Como procuramos mostrar ao longo deste trabalho, tais características podem ser claramente encontradas em Amor de Perdição, Coração, Cabeça e Estômago e O Que Fazem Mulheres, o que nos possibilitaria concluir que, se quisermos definir o romance camiliano a partir de algum termo específico, talvez o mais apropriado seja relacioná-lo à tradição da sátira menipéia29. Sá Rego relaciona a essa tradição de sátira, entre outros, dois autores: Laurence Sterne e Machado de Assis. Curiosamente, alguns críticos costumam aproximar a obra de Camilo das obras de Sterne e de Machado. Segundo Paulo Franchetti, Camilo e Sterne “viam o texto romanesco não como sendo basicamente o desenvolvimento de uma intriga, nos moldes mais propriamente românticos, mas como uma prática narrativa em que o comentário filosófico ou simplesmente digressivo e espirituoso aparecia como o ponto distintivo do gosto” (2003, p. XXXI-XXXII). Jacinto do Prado Coelho apontou a importância da temática da “interferência do literário no dia-a-dia”, que, “com os respectivos efeitos de contraste, é processo que virá a caracterizar Machado de Assis” (1996, p. 138). Já Cleonice Berardinelli defende que

[...] em língua portuguesa, só Machado se equipara a Camilo na riqueza e diversidade do paratexto: seus prefácios originais, ulteriores ou ficcionais, dedicatórias, epígrafes, subtítulos, intertítulos, intertítulos-sumários, notas e notas ficcionais dariam exemplos sobejos e expressivos a Gérard Genette se – suposição absurda! – ele lesse autores portugueses ou brasileiros. (1994, p. 235).

O que parece aproximar Camilo de Sterne e Machado é a onipresença do narrador, com seu olhar distanciado, sempre pronto a demolir os alicerces dos discursos literários e dos comportamentos sociais em voga, característico da sátira menipéia, tradição à qual, segundo Sá Rego, o escritor inglês e o escritor brasileiro pertencem. A nosso ver, Camilo pode ser inserido nessa tradição, influenciado por Sterne e provável influenciador de Machado, como deixara a entender Prado Coelho: “tal atitude e tais processos situam Camilo na linha que vai de Sterne até Machado de Assis, donde certas reminiscências camilianas que nos acodem ao espírito quando lemos o genial autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas” (2001, p. 430).

Assim sendo, procuramos apresentar aqui apenas algumas reflexões sobre a estética de Camilo presente nos romances Amor de Perdição, Coração, Cabeça e Estômago e O Que Fazem Mulheres, como forma de discutir a complexidade de sua obra. Mistura do sério e do cômico, ela mostra não ser apenas um resultado da “indeterminação de gêneros tornada possível pela revolução romântica” (COELHO, 2001, p. 399), mas um resgate de uma tradição que contribui para a renovação da literatura, através do seu riso questionador.

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Fonte:
Luciene Marie Pavanelo
: “Entre o coração e o estômago: o olhar distanciado de Camilo Castelo Branco”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira). São Paulo, 2008.

Notas
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em:  www.teses.usp.br

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