04/07/2014

Obras Póstumas (Poesia), de Nicolau Tolentino de Almeida

 Obras Postumas -  Nicolau Tolentino de Almeida - Iba Mendes - pdf para baixar gratis
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O riso em Nicolau Tolentino

 CONTEXTO HISTÓRICO

No século XVIII, a ciência ganha força em detrimento da religião. Cientistas e filósofos disseminam as idéias iluministas e a razão passa a ser uma busca para o homem. A classe burguesa se desenvolve e quer crescer mais, vendo no Estado absolutista um empecilho. Um dos grandes filósofos iluministas, Voltaire, acreditava que a solução para esse empecilho não seria uma revolução social, mas sim uma mudança na concepção dos monarcas a partir de um Despotismo Esclarecido. Dessa forma, as leis seriam interpretadas pelo monarca para todos - sem a influência da Igreja e sem privilégios hereditários (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1982).

Essa forma de governar começa em Portugal com o rei D. José (1750-1777), tendo como executor o ministro plenipotenciário Marquês de Pombal. Houve reformas nas leis, que se tornaram mais gerais; na educação, com a retirada dos jesuítas; na economia, com a fundação das companhias de comércio.

Em 1777, morre D. José e Pombal sai de cena. A rainha D. Maria I fica com o trono e retorna à corte a velha aristocracia que havia sido banida por Pombal e os jesuítas voltam à educação. Desta vez, quem passa a ser perseguido são os simpatizantes das ideias iluministas. Entre eles está Bocage, que acaba sendo investigado e preso. Por sua vez, o poeta Nicolau Tolentino de Almeida (1741-1811) vê na situação uma oportunidade. Ele, que havia estudado Direito e que trabalhava como professor, registra a queda de Pombal, nunca se esquecendo de usar uma linguagem moderada:

A longa cabeleira branquejando,
encostado no braço de um tenente,
cercado de infeliz, chorosa gente,
ia passando o velho venerando.

Gerais respostas para o lado dando:
“Sim senhor”, “Bem me lembra”, “Brevemente”,
na praguejada mão omnipotente
nunca lidos papéis ia aceitando.

Mas eu, que já esperava altas mudanças,
melhor tempo aguardei, e na algibeira
meti a petição e as esperanças.

Chegou, Senhor Visconde, a viradeira:
soltai-me a mim também destas crianças,
onde tenho o meu Forte da Junqueira (TOLENTINO, 1969, p. 5).

O forte referido trata-se do local onde eram mantidos os prisioneiros políticos. O poeta pede ao visconde de Vila Nova de Cerveira, secretário dos Negócios do Reino, uma chance para mudar de profissão e libertar-se das crianças a quem dava aula de Retórica. ,

Enquanto na França ocorria a revolução que colocava a burguesia no poder, em
Portugal qualquer insurgência era sufocada. Por repressão, mantinha-se a monarquia no poder apesar da decadência que apresentava o sistema com os gastos para manter o sistema e a pobreza da população. De acordo com Pires (1995), a economia era frágil, o ouro do Brasil esvaía-se no luxo desenfreado da Corte, o erário público era delapidado pelas despesas abissais da marinha e do exército. As amplas e radicais reformas encetadas pelo Marquês de Pombal foram sistematicamente subvertidas. O povo indigente gemia a sua impotência.

Nesse cenário de estagnação, mas ao mesmo tempo invadido por idéias iluministas que privilegiavam a razão para atingir o conhecimento, desenvolve-se a escola denominada Arcadismo. Suas características são o retorno aos modelos clássicos (Homero, Horácio, Ovídio, p. ex.), a visão racional da vida e o reencontro do Homem com a Natureza. Nesse contexto, escreve Tolentino a sátira “A Guerra”, na qual o eu-lírico apresenta argumentos a favor da guerra e contra a musa que defende a paz. Vejamos alguns trechos:

A GUERRA

[...]
Que tens tu que ornada história
diga que peitos ferinos,
em sanguinosa vitória,
inumanos, assassinos,
são do mundo a honra e a glória?
[...]

Deixa que o roto taful,
a quem na pátria foi mal
vá cruzar de norte a sul;
cubram-lhe o corpo venal
três palmos de pano azul.

Deixa que em tarimba estreita
o desperte a aurora ingrata;
que o duro cabo que o espreita,
o faça, ao som da chibata,
virar à esquerda e à direita.

Deixa-lhe em sangue envolver
duro pão, que lhe dá Marte;
e, para poder viver,
deixa-lhe aprender esta arte
de matar e de morrer.

Vá junto à queimada zona
arvorar em rotos muros
o estendarte de Belona;
calejem-lhe os ombros duros
as correias da patrona.

Voe-lhe aos ares um pé;
sobre o outro, com valor,
a Plutão cem mortos dê;
arda de raiva e furor
sem nunca saber porquê.
[...]

Dizes que se compra quina,
porque altas febres desterra,
e que em colégios se ensina
em uma aula a arte da guerra,
em outra a da medicina;
[...]

Se a paz , em dias felizes,
à cara pátria os conduz,
dizes que estes infelizes
mostram, rindo, os peitos nus,
cortados de cicatrizes;

Que este reconta aos parentes
como em perigoso passo,
zunindo balas ardentes,
uma lhe quebrou um braço,
outra lhe levou os dentes;
[...]

Dizes que entre os animais
proíbe guerras o instinto;
e que, surdo a tristes ais,
vês com horror o homem tinto
no sangue dos seus iguais.

Musa, não discorres bem;
pois se uns com os outros cabem
e juntos a um pasto vem,
é só porque inda não sabem
a virtude que o oiro tem.

Por preciosos metais
não põem peito a bravos mares?
traze exemplos mais iguais;
sábios homens não compares
com os brutos animais.

Trazem focinho no chão,
e nós sempre ao alto olhamos;
temos em dote a razão;
e por isso levantamos
uns contra os outros a mão.
[...] (TOLENTINO, 1969, p. 33-36).


Nota-se que os exemplos das agruras das batalhas apenas desabonam as intenções do eu-lírico, revelando uma fina ironia de que o poeta tão bem se valia para dizer algo e remeter para outro diferente. Esse efeito algumas vezes não é percebido, demonstrando a sutileza e a intimidade de Tolentino com as palavras. Ao contrariar as palavras da musa, o poeta dá voz a ela, repetindo suas palavras e fazendo uma crítica à guerra. O que Tolentino escreve vai ao encontro do pensamento iluminista da época sobre o privilégio da razão.

A produção de Tolentino traz algumas dessas características do Arcadismo ou Neoclassicismo, e é nessa escola que muitos estudiosos o inserem embora não tenha pertencido a nenhuma delas oficialmente. A principal característica da influência dos autores clássicos em sua obra é o fato de se parecer muito com Horácio ao satirizar os tipos e pessoas da sociedade utilizando uma linguagem moderada. Por isso, Tolentino é considerado por alguns como uma espécie de cronista, documentando o risível na sociedade com sua perspicácia. Um pouco desse risível é o que veremos a seguir.


A SOCIEDADE DE TOLENTINO

Vladímir Propp (1992) diz que há diversos tipos de riso, tais como o maldoso (ligado a defeitos falsos), o cínico (em que há prazer na desgraça alheia), o fisiológico (surge com as cócegas), etc. Porém, o tipo de riso ligado à sátira, mais encontrado na vida e também na arte, é o riso de zombaria. Podem tornar-se objeto desse riso tanto a vida física, quanto a vida moral e intelectual do homem. Ri-se quando é revelado um defeito pela própria pessoa ou por quem zomba e este defeito não nos causa pena ou aversão. Pequenos defeitos na parte visível podem esconder um defeito de ordem moral escondido que nos causa o riso. Aquele que ri associa o que vê com uma falta da ordem interna, espiritual do homem, ou seja, ações e defeitos físicos encobrem um defeito espiritual que repentinamente se revela e provoca o riso. Para trabalhar com o cômico precisamos ter em mente aquilo que o mesmo autor (PROPP, 1992, p. 19-20) definiu como postulado metodológico: “em cada caso isolado é preciso estabelecer a especificidade do cômico”. Portanto, para cada poema selecionado veremos algumas características que definem ou não os traços de comicidade. Quanto ao fato do inesperado na comicidade, cabe lembrar que alguns estudiosos como Lapa registram esse uso, como no poema que segue, que tão bem retrata a sociedade portuguesa:

Chaves na mão, melena desgrenhada,
batendo o pé na casa, a mãe ordena
que o furtado colchão, fofo e de pena,
a filha o ponha ali, ou a criada.

A filha, moça esbelta e aparatalda
lhe diz co’a doce voz que o ar serena:
– Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
Olhe não fique a casa arruinada...

– Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
já a mãe não tem mãos? E dizendo isto,

Arremete-lhe à cara e ao penteado;
Eis senão quando – caso nunca visto! –
sai-lhe o colchão de dentro do toucado (TOLOENTINO, 1969, p. 5-6).

Neste poema podemos destacar o que Propp define por comicidade das diferenças, enquadrado no riso de zombaria. O que causa o riso é a particularidade ou estranheza que diferencia a pessoa do seu meio. Propp (1992, p. 62) diz que os costumes e normas de condutas próprios de cada tempo e sociedade acabam mudando e que “de início, as mudanças devem ser consideradas como transgressões de um comportamento comum e provocam o riso.

Esta é a razão pela qual suscitam o riso às modas vistosas e insólitas”. Ou seja, o exagero do penteado da moda da época, tão grande a ponto de caber um colchão dentro, é um provocador de riso. Aliás, nota-se que Tolentino soube captar o ridículo das modas exageradas, pois em outros poemas também se refere aos penteados grandes, fivelas de sapato enormes, leques diminutos, etc. No entanto, este exagero só será cômico se desnudar um defeito e, nesse caso, o aspecto cômico se apresenta na revelação repentina do colchão dentro do penteado que desnuda o caráter mesquinho e as pretensões da moça. Propp demonstra três formas básicas de exagero: a caricatura (exagero de uma particularidade); a hipérbole (exagero negativo do todo); o grotesco (exagero que ultrapassa o limite da realidade). O autor coloca que o limite entre a hipérbole e o grotesco é apenas uma convenção, sendo que uma descrição pode apresentar as duas formas (referente a elas, Propp traz um exemplo do epos russo, no qual um anti-herói gigantesco tem um ronco tão forte que faz a terra tremer e que ao comer coloca um cisne inteiro na boca). Voltando ao poema de Tolentino, vemos que há um exagero do penteado, ou seja, de um pormenor, portanto podemos dizer que se trata de uma caricatura.

Noutro poema, Tolentino nos mostra mais tipos da sociedade portuguesa:

PINTANDO UMA BULHA DE DOIS BEBEDOS

De descalços miqletes rodeado,
Por escuro armazem da Boa-vista,
Vinha saindo um trémulo chupista,
Em rota capa ás canhas embuçado;

Outro que tal o traz desafiado,
Cachimbo no chapeo, calção de lista;
E fôra o caso, porque o tal copista
Pagou primeiro, sendo convidado;

Ambos errando uma infeliz punhada,
Comsigo em terra os vís athletas deram
Ao som de vergonhosa surriada;

Famosos sôcos entre os dois se esperam;
Mas a gente ao redor ficou lograda,
Porque em vez de brigar adormeceram (TOLENTINO, 1861, p. 30).


Dois bêbados se desentendem e saem do bar para começar a briga. As pessoas em volta esperam para assistir, mas os dois erram os socos e caem no chão e, para a decepção de todos, acabam pegando no sono. Neste poema o risível está na situação dos bêbados que querem brigar e não conseguem, ou seja, é um malogro da vontade. É um malogro não só dos bêbados, mas também dos espectadores que desejavam “famosos socos” e acabam por assistir a dois dorminhocos.

Há também a ridicularização das profissões, como nesse trecho de poema:


[...]
A ocupação de poeta
É nobre por natureza;
Mas todo o ofício tem ossos,
E os deste são a pobreza. 30

Os dentes do bom Camões
Sejam fiéis testemunhas:
Muitas vezes esfaimados,
Não acharam senão unhas.

Depois que seus frios olhos
Se fecharam no hospital,
Logo as filhas da Memória
Lhe ergueram busto imortal.

De que serve honra tardia?
Bem sei que o rifão vem torto,
Mas faz lembrar a cevada
Que se deu ao asno morto.

Só as Musas o choraram,
E o enterro devia ser
Como hoje nos pinta o Lobo
O de João Xavier.

Homero, o divino Homero,
Honra de antigas idades,
Por cujos inúteis ossos
Brigaram sete cidades,

Doces versos recitando,
Pela Grécia discorria;
Tinha os tesouros de Apolo,
E esmola aos homens pedia

Mas se de autores antigos
Tens tido pouco exercício,
Eu te aponto um bem moderno
E até do teu mesmo ofício.

Foi ele o famoso Quita,
A quem triste fado ordena
Que a fome lhe traga o pêntem
E da mão lhe tire a pena.
[...]

Nestas coisas é que eu creio;
Poesia é mal fadada.
Assenta, amigo Luís,
Que nunca serviu de nada.
[...]

Abre mão das poesias,
Que nenhum préstimo têm,
E cuida em sólidos meios
De ganhar algum vintém.

Se dizes que contra os versos
Em verso uma carta ordeno
E que aqui me contradigo,
Praticando o que condeno,

A teu forçoso argumento
Respondo com Frei Tomás:
Faze o que o pregador diz, 31

Não faças o que ele faz (TOLENTINO, 1969, p. 10-17).

Tolentino escreve a um senhor chamado Luís sobre a ingrata função de poeta, aludindo a Reis Quita, que era cabeleireiro e ficou famoso pelos seus versos. A comicidade reside aqui no fato de enfatizar os aspectos exteriores da atividade do poeta, em detrimento do seu conteúdo. No aspecto exterior, ser poeta significava passar dificuldades financeiras, apesar da aparente nobreza do ofício. Há uma aproximação com as palavras de Bocage sobre a difícil condição do poeta, que se ocupa de algo nobre mas passa fome. Talvez isso tão bem retrate a situação dos artistas da época que, se não tinham profissão, dependiam dos favores dos grandes.


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Fonte:
Gedison de Matos Fernandes “O riso carnavalesco na poesia de Nicolau Tolentino”. (Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Letras, pelo Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Prof. Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy). Porto Alegre, 2010.

Notas

A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: www.lume.ufrgs.br

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