15/06/2014

Um credor da Fazenda Nacional (Teatro), de Qorpo Santo

 Um credor da Fazenda Nacional, de Qorpo Santo
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O nascimento do autor

A encenação de algumas comédias de Qorpo-Santo, primeiramente em Porto Alegre, em 1966, e, dois anos mais tarde, no Rio de Janeiro, fez com que o autor passasse a ser reconhecido como um precursor das vanguardas do teatro do século XX, como o surrealismo e o teatro do absurdo. Porém, até a sua descoberta pelo público brasileiro, na década de 1960, Qorpo-Santo já possuía, no Rio Grande do Sul, uma fama peculiar, sendo freqüentemente lembrado pelas perturbações mentais de que fora acusado. Além disso, seus escritos, entre fins do século XIX e início do século XX, já haviam se tornado objeto de comparação ao que de pior se produzia na literatura brasileira, conforme o gosto da época.

Devido à ausência de outras fontes sobre a biografia do autor, os dados que se podem obter estão presentes na obra Ensiqlopèdia ou seis mezes de huma enfermidade, compilação dos escritos realizada pelo autor, em 1877, e que são reproduzidos por pesquisadores como Guilhermino Cesar e Flávio Aguiar. Entretanto, a inclusão que o autor faz de si mesmo, como personagem, em suas peças, e os elogios que nelas tece ao próprio gênio, como em “Hoje sou um; e amanhã outro”, leva a desconfiar da veracidade das informações. Em Os homens precários, Aguiar afirma que, “graças à escassez de outras fontes, a vida de Qorpo-Santo mesclou-se de modo inextricável com sua obra literária. Portanto, é possível que as informações biográficas obtidas da Ensiqlopèdia sejam, em parte, fictícias, criadas pelo autor em favor de uma biografia que julgou ideal. Mesmo assim, deve-se atentar para esses dados, que revelam aspectos interessantes da personalidade de Qorpo-Santo.

Os principais fatos da vida do escritor são enumerados por Guilhermino Cesar, em seu livro intitulado Qorpo-Santo. Segundo ele, José Joaquim de Campos Leão nasceu no dia 19 de abril de 1829, na Vila do Triunfo, Rio Grande do Sul. Um ano depois da morte do pai, ocorrida em 1839, passa a morar em Porto Alegre, onde trabalha no comércio. Em 1851, habilita-se a exercer o magistério público, e efetivamente o exerce até 1855, mesmo ano em que se casa com Inácia Maria de Campos Leão, com quem viria a ter quatro filhos. No ano de 1857, muda-se para a cidade de Alegrete, onde se elege vereador em 1860. Entre 1867 e 1868, passa por vários exames de sanidade mental devido à suspeita de monomania, transtorno que se manifestaria como uma compulsão por escrever. Em 1877, edita suas obras em uma tipografia fundada por ele mesmo (com exceção do primeiro volume da Ensiqlopèdia, publicado na Imprensa Literária de Porto Alegre, no mesmo ano), porém sem obter grande repercussão. Em 1º de maio de 1883, morre de complicações pulmonares.

Como se vê, Qorpo-Santo antes de tornar-se escritor, foi uma figura reconhecida em sua época, exercendo importantes funções públicas, como professor de primeiras letras, vereador e comerciante. Além disso, Leda Maria Martins menciona que foi também jornalista e delegado de polícia e Flávio Aguiar lembra que, na Vila de Santo Antônio da Patrulha, “possivelmente fundou, com personalidades de prestígio, uma Loja Maçônica e um ‘Grupo Dramático’” e que, em Porto Alegre e em Alegrete, “adquiriu certo destaque como professor, chegando a dirigir estabelecimentos de ensino”.

Contudo, esse respeito público era condicionado pela sua sanidade mental. A monomania, perturbação mental de que Qorpo-Santo foi acusado, e de que era sintoma a compulsão por escrever, trouxe-lhe o desdém e o escárnio da sociedade sul-riograndense. É possível que ela tenha ocorrido devido a uma noite em que o então professor foi espancado na cabeça por dois assaltantes. Começou a manifestar-se por volta de 1861 e, depois de vários exames em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, a doença levou-o a uma interdição judicial em 1868, o que lhe impediu o convívio com a família e a gerência dos próprios bens. No entanto, o autor nunca admitiu que sofresse de tal transtorno e lutou contra a interdição até o fim de seus dias, inclusive atribuindo ao juiz Antônio Correia de Oliveira – que o acusava – o mesmo transtorno de que era acusado. Flávio Aguiar assinala que, em alguns textos, Qorpo-Santo sugere que sua mulher houvesse planejado sua interdição, junto com o referido juiz, devido a existir entre os dois um caso de adultério, embora alguns dos artigos do autor sugiram que ele realmente sofria de uma cisão de personalidade característica da esquizofrenia.

A doença e o processo por que passou parecem ter contribuído para a produção de sua literatura. Embora, antes de passar por tais vicissitudes, Qorpo-Santo já exercesse alguma atividade literária, a partir delas sua escrita se intensificou, de modo que escrevia em diversos gêneros e sobre todos os assuntos. Basta verificar as datas das suas dezessete comédias, escritas todas no mesmo ano de 1866, para se ter idéia do ritmo frenético em que suas obras eram concebidas. Além disso, o mau tratamento que seus textos vinham recebendo nos jornais em que eram publicados levou o escritor a fundar, em 1868, em Porto Alegre, o periódico A justiça, no qual expunha suas idéias e defendia-se das acusações sofridas. Já em 1871, embora impedido de gerir seus bens, reeditava A justiça em Alegrete e, em 1877, de volta a Porto Alegre, editava sua Ensiqlopèdia em nove volumes, o primeiro pela Imprensa Literária de Porto Alegre, e os outros pela Tipografia Qorpo-Santo, por ele fundada.

Nessa obra, da qual a pesquisadora Denise Espírito Santo afirma serem somente seis os volumes conhecidos8, são reunidos os mais diversos gêneros textuais. Conforme assinala Aguiar, naturalmente com a imprecisão devida ao desconhecimento da totalidade de seus nove volumes, Qorpo-Santoprocurou reunir, como pôde e como lhe ajudou a mente perturbada, tudo o que escrevera até então: comédias, poemas, artigos, reflexões políticas, observações sobre economia, recados, bilhetes, anúncios pedindo empregadas domésticas, páginas sobre suas dúvidas e hesitações sexuais, fantasias íntimas, conselhos homeopáticos, receitas culinárias, pensamentos e interpretações religiosos, observações incompreensíveis, uma autobiografia rápida escrita em 1876, pelo menos um romance, talvez dramas e/ou tragédias (diz a lenda que Qorpo-Santo escreveu uma tragédia em 74 atos...)

Não há uma ordem na apresentação dos assuntos: a Ensiqlopèdia é caótica na sua composição. Isso revela uma idéia de dessacralização da literatura, a partir da qual são postos, lado a lado, gêneros prestigiados, como a poesia e a dramaturgia, e simples anúncios pedindo empregadas. Para Martins, “já na montagem de seus textos Qorpo-Santo revela uma visão renovadora e moderna do que seja o objeto de arte. Sua Ensiqlopèdia compõe-se de um aglomerado dos mais diferentes assuntos e gêneros, dispostos no mesmo nível literário, numa bricolage fantástica.”10 Além disso, não há uma unidade narrativa no decorrer da obra: ela não possui uma sucessão organizada na forma de princípio, meio e fim. Segundo Aguiar, “a realidade que Qorpo-Santo retratou se apresenta ao leitor filtrada através de uma infinidade de instantâneos autônomos que, superpondo-se mais do que se encadeando, formam uma imagem ampla do mundo e da época do escritor”, o que quer dizer que Qorpo-Santo inaugura uma forma de ver a sociedade sob uma perspectiva, ao mesmo tempo, ampla e fragmentada, de maneira que, sobre seu texto, pode-se pesquisar um grande leque de assuntos acerca do grupo social ali representado: desde a linguagem e a literatura de fins do século XIX, até a ordem social estabelecida, a política, a religião, ou mesmo a gastronomia.

No quarto volume da obra, estão presentes as dezessete comédias escritas pelo autor, sendo dezesseis completas e uma incompleta (“Uma pitada de rapé”, da qual só se conhece a primeira página). Nelas, observam-se temas como sexo, prostituição, concubinato, relações familiares e sociais, guerras, burocracia, reformas sociais, homossexualismo e reencarnação de almas. Além disso, as peças são escritas em linguagem despojada de lirismos, afrontando o bom gosto romântico, e não foram revisadas pelo autor, que, por sua vez, autorizou em nota às comédias que qualquer pessoa que quisesse levá-las à cena poderia fazer as alterações que julgasse necessárias. Porém, a dramaturgia de Qorpo-Santo só conheceria o palco cem anos depois de sua escritura. Até então, o escritor permaneceria sem o reconhecimento público e seria lembrado mais por seus desvios de personalidade, que pelo valor de sua obra literária.


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Fonte:
Douglas Ceccagno: “Ovelhas merinas: malditas feras: O imaginário social no teatro de Qorpo-Santo”. ( “Dissertação  apresentada  como  requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras e Cultura Regional, com concentração na área de Literatura e Cultura Regional, pela Universidade de Caxias do Sul. Orientador: Prof. Dr. João Claudio Arendt). Caxias do Sul – RS, 2006.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: www.laab.com.br

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