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[Qorpo-Santo]
“Ora sou um, ora sou outro”.
Ainda
não é tudo, senhor. Esse homem era durante esse tempo de jejum, estudo e oração-alimentado pelos Reis
do Universo, com exceção dos de palha! A sua cabeça era como um centro, donde saiam pensamentos, que voavam às dos Reis de que se
alimentava, e destes recebia outros. Era como o coração do mundo, espalhando sangue
por todas as suas veias, e assim alimentando-o e fortificando-o, e refluindo
quando necessário o seu centro! Assim como acontece a respeito do coração
humano, e do corpo em que se acha. Assim é que tem podido levar a todo mundo habitado sem auxílio de tipo-tudo quando há querido. (Qorpo-Santo- Hoje sou um; e amanhã outro)
O dramaturgo
José Joaquim de Campos Leão, conhecido por Qorpo-Santo, escritor ficcionalizado
por Assis Brasil, foi contemporâneo de Artur Azevedo, Aloísio Azevedo, Machado
de Assis, entre outros. A diferença é que, enquanto Qorpo-Santo se dividia entre
a tarefa de escrever e de defender-se das acusações por loucura, seus colegas podiam
se dedicar mais integralmente ao mais recente modelo literário que substituía os
antigos padrões românticos. Ou seja, Qorpo-Santo, àquela época era um ilustre desconhecido
por viver na periferia do império. Um professor radicado na província que
esteve no Rio de Janeiro, centro cultural do país, apenas para tratamento de saúde. O dramaturgo seria descoberto cem anos depois e
suas peças tinham pouco de românticas ou realistas.
Ao modo do
que propõe o argentino Jorge Luís Borges (1987) no conto-ensaio “Kafka y sus precursores”,
sugerindo que é a leitura de um determinado autor que determina as suas semelhanças
ou diferenças com outros, a crítica do XX, como por exemplo, Guilhermino César e
Maria Valquíria Marques, entre outros, tem afirmado que Qorpo-Santo premeditou a
ilusão dos palcos modernos. Ou seja, alguns de seus textos foram comparados aos
de Jarry e Ionesco, por apresentarem características pertinentes ao Teatro do
Absurdo, significando com isso que o provinciano dramaturgo, além de apostatar-se
do romantismo ainda em voga, demonstrou ser capaz de realizar uma outra leitura
do mundo. Qorpo-Santo escreveu, entre outras coisas, peças de teatro e todos os
textos foram impressos em sua própria tipografia. Suas farsas identificam a hipocrisia
das tradições provincianas e trazem consigo esta faceta misteriosa do autor inserido
em um contexto realista, qual se vê travestido de ator para representar as ilimitadas fronteiras do absurdo.
Segundo Maria
Valquíria Marques (1993), Qorpo-Santo está dentro de suas antipeças, que ele
confunde com romances. Explica ainda que, dentro da concepção de texto de
Qorpo-Santo, a não obediência a determinado gênero não se dá por recusa a um determinado
sistema de representação ou imitação do mundo: “É a eterna representação do seu
‘romance familiar’ que está por trás de seus escritos, em que ele encena a possível articulação de seu fantasma com seu desejo”
(MARQUES, 1993, p. 32).
Qorpo-Santo
sofreu um processo de interdição por ter sido considerado louco, vítima de uma
doença incurável, chamada monomania. Sobre este assunto, Guilhermino César
(1980) enfatiza que a doença mental manifestou-se muito cedo em Qorpo-Santo e que lhe cortou a carreira de professor, afastou-o da família,
isolou-o da própria sociedade.
Aponta também que os primeiros rebates do mal se acentuaram, de modo a justificar
a intervenção da Justiça, por volta de 1864, e assim, “transcorrido pouco mais de
um ano, o juiz de órfãos e ausentes de Porto Alegre resolveu mandar Qorpo-Santo
para o Rio de janeiro, a fim de que ali fosse examinado por médicos especialistas”
(CÉSAR, 1980).
Essa loucura,
no entanto, no século XX passa a ser lida de modo diferente, conforme se pode constatar
pela observação de Alfredo Bosi (1994): A “loucura” e o nonsense de
Qorpo-Santo devem, pois, ser historicizados à luz do contexto familiar do século XIX e, mais largamente, à luz dos conflitos
entre o capricho individual e a conduta instituída; conflito de que a farsa é expressão
e válvula de escape" (BOSI, 1994, p.
274).
No
entanto, provavelmente, Achylles Porto Alegre (1920) tenha sido o primeiro a mencionar Qorpo-Santo e, de maneira indireta,
relacioná-lo ao campo literário:
Morava nos últimos tempos,
na esquina da rua dos Andradas com a Ladeira onde está agora o Metrópole Restaurante. Foi uma espécie de
D. Quixote. Atacara primeiro os moinhos de
vento do jornalismo contando ahi encontrar um estupendo “El-Dourado”. Dom Quixote porém não desanimou:
voltou-se para a poesia. Aqui já não atacou moinhos, mas cataventos: foi como se
quisesse meter no bolso uma rajada de vento ou
tecer com raios de sol uma corrente para o relógio. Fracassou também. Só Napoleões
vencem o impossível. De ahi
em diante, Qorpo-Santo foi de desillusão em desillusão, de queda em queda e desapareceu envolto numa capa de ridículo,
porque foi um D. Quixote sem
Dulcinéa (PORTO ALEGRE, 1920, recortes).
Alguns anos antes, o
jornalista já evocava o escritor em suas crônicas:
[...] Levantam-se ahi dois velhos
prédios com frente para a praça da Alfândega e dois fronteiros à ladeira. Eram mesquinhos
sobrados, com duas sacadas verdes,
tendo ao meio em lettras grandes, os dois nomes. Corpo-Santo. Que significava
isso? Era o nome de um velho professor: José Joaquim Leão- Corpo Santo, actualmente de memória tão ridicularisada
pelos intelectuaes. Todavia
antes do desiquilibrio mental do que foi victima, Corpo-Santo foi homem de certo valor e representação. Exerceu o magistério
público de 1851 a 1854 e leccionou em
colegios particulares. Desempenhou cargos públicos, como o de Vereador em
Alegrete. Nessa localidade fundou uma escola primária e secundária,
transferindo para ahi a typographia de seu jornal "A Justiça", que em 1871 suspendeu a publicação iniciada
na capital em 1868. No anno de 1876, já visilmente transtornado do cerebro,
imprimiu, em typographia de sua
propriedade, um livro de mais de 200 páginas, composição em duas colunnas,
formato grande. Intitulava-se Encyclopédia. No pavimento térreo deste edifício esteve estabelecida a livraria do
Gaspar Guimarães-uma das mais importantes e selectas do seu tempo. Muitos anos depois,
sob o mesmo tecto do sobrado onde Corpo-Santo, com espírito crepuscular, escreveu
suas célebres insânias, funcionou a sede da Sociedade de Lettras Ensaio Literario, constituída de
rapazes do commercio e estudantes-alguns
dos quaes tem hoje nome de relevo na litteratura gaúcha. Muito depois estabeleceu-se neste prédio a
loja de fazendas "Eden Familiar". Mas que foi destruída por um incêndio. Assim o velho e feio prédio
que pertenceu a Corpo-Santo, e que ficava no sítio onde está presentemente o palacete
Chaves, está gloriosamente ligado à brilhante história da litteratura gaúcha (PORTO ALEGRE, 1920, p. 31- 33).
O autor teatral foi esquecido
dentro do panorama literário por quase um século e sobre ele, Guilhermino César
(1971) aponta alguns elementos importantes:
Não conhecemos,
em língua portuguesa ninguém que se lhe compare. Embora muitas vezes não chegue a ser congruente, a ação que
imagina, em termos de aliciante inventiva, deixa entrever uma concepção que será
atual em qualquer época. Escrevia de um jato, numa vertigem insopitável. Foi menos um escritor "bem pensante"
do que um criador extraordinário, desmedido e pessoal. Numa pausa lúcida, consentida pela doença mental
de que sofria, Qorpo-Santo nos
deixou algo que representa uma das contribuições mais originais que o Brasil pode oferecer ao teatro
do Ocidente (CÉSAR, 1971, p. 268).
Guilhermino César apresenta
17 peças como de autoria de Qorpo-Santo. O dramaturgo escreveu também poemas,
além dos nove volumes da Ensiclopédia ou seis mezes de uma enfermidade. Sobre o teatro de Qorpo-Santo,
Guilhermino César que foi o idealizador da
montagem das peças do dramaturgo, diz o seguinte:
Peças como
“Um Credor da Fazenda Nacional”, “Mateus e Mateusa”, “As Relações Naturais”, para citar apenas três, justificam a
fama em nossos dias alcançada
pelo insano mestre-escola de Porto Alegre, Santo Antonio da Patrulha e Alegrete. Para que mais? Se Qorpo-Santo
houvesse escrito tudo quando
nos deixou no mesmo estilo, com a mesma eficácia dramática, seria simplesmente
um gênio (CÉSAR, 1980).
O aspecto relacionado à
revolução cênica do dramaturgo gaúcho está realçado na História do Teatro
Brasileiro de Edwaldo Cafezeiro e Carmen Gadelha (1996), quando afirma que, na peça “Relações Naturais”, “além
do problema do tempo, observa-se o desdobramento do personagem: o morto e o vivo
simultaneamente apresentados” (CAFEZEIRO;
GADELHA 1996, p. 208).
A partir
de Guilhermino César (1980) costuma-se repetir as semelhanças entre o teatro do
gaúcho e aquele que surgiria na Europa em meados do século XX. Conforme Leda Martins (1991):
A escritura
de Qorpo-Santo posterioriza o próprio autor e nos antecipa em mais de 100 anos, forjando no espectador atual e no imaginário
da modernidade um perturbador
efeito de presente. Qorpo-Santo rompe os véus da mimese realista e nos introduz
uma cena ilusória que não mascara sua natureza de jogo, fantasia, representação
(MARTINS, 1991, p. 3l).
Apesar de
que, de acordo com Lothar Hessel e Georges Readers, os méritos de Qorpo-Santo não
se restringem apenas à pioneira utilização do absurdo, mas pelo fato de que
este foi um dos muitos recursos utilizados pelo dramaturgo e que "suas
comédias melhor se definiriam como sendo comédias satíricas, acusando-se assim
menor teor de comicidade pura e a presença de intuitos de sátira, com despeito,
mágoa e denúncia" (HESSEL; READERS, 1986, p.142). Portanto, os elementos satíricos
destas peças podem ajudar a entender a
construção da carnavalização no romance Cães da província.
Cabe
ressalvar, no entanto, o envolvimento final de Qorpo-Santo como parte de um
movimento em ascensão, apesar da distância espacial e temporal: espacial pelo
fato de que o autor vivia na provinciana Porto Alegre e, portanto, sem contato com
outros escritores da época, isto é, à margem da movimentada vida teatral do Rio
de Janeiro.
Temporal porque as suas peças
de caráter realista/naturalista, em sua estrutura básica, foram descobertas e encenadas, quase cem
anos depois. Isto é, Qorpo-Santo não existiu como escritor no século XIX, pelo contrário,
sua existência artística manifestou-se no final da primeira metade do século XX,
quando sua obra surpreendeu o público, com uma proposta que faz lembrar os grandes
nomes do Teatro do Absurdo e “ficou ele assim entre dois mundos: dramaturgo de um
século, fenômeno teatral de outro” (AGUIAR,
1998, p. 9).
Qorpo-Santo
não faz parte do livro A Literatura no Rio Grande do Sul, como justifica
a autora: “Enfim, um último limite: se lida aqui exclusivamente com prosa de ficção
e poesia. O teatro, a crônica e a literatura infantil, que mereceriam igualmente
uma abordagem, foram preteridos” (ZILBERMAN, 1982, p. 09). É importante demonstrar,
entretanto, conforme “o quadro cronológico da literatura gaúcha”, do referido livro,
a contemporaneidade de Qorpo-Santo e outros escritores, considerando que o
mesmo escreveu suas peças no período de janeiro a junho do ano de 1866. Assim, de
acordo com os estudos de Zilberman (1982), o ano de 1866 não oferece nada de extraordinário
em termos de produção literária no país, mas é significativo analisar os anos anteriores.
Por exemplo, em 1864 que marca o início da Guerra da Paraguai, Machado de Assis publica Crisálidas e José de
Alencar Diva; em 1865, José de Alencar lança Iracema e As minas de prata; enquanto Fagundes
Varela publica Cantos e Fantasias. Ou seja, trata-se de obras
caracteristicamente românticas. E as comédias de Qorpo-Santo não tinham nada de
românticas quer no tema, quer na linguagem, como explica Guilhermino César (1980),
pois as mesmas “apresentam situações conflituosas peculiares à sociedade gaúcha
do século XIX; e, do ponto de vista verbal são surpreendentes:
desprezam por completo a linguagem ornamental comum ao melhor teatro da época”
(CÉSAR, 1980).
Entretanto, Qorpo-Santo revela seus próprios conflitos na Ensiclopédia.
Destaca-se a seguir um trecho
de sua relação com a escrita e também com o processo desencadeado com a finalidade de interditá-lo
judicialmente.
Em 1861- por
moléstias de pessoas da família aqui existentes regressei, provendo-se-me mezes depois na cadeira publica da freguezia
de N.S. Madre de Deus, a qual
exerci até julho de 1862; época em que actos violentos de que fui vítima,
alguns dos quais ignorei pelo espaço de 2 anos (com que cortaram-me todos os
recursos à subsistência) - levaram-me a Villa do Triunfo no 1º de janeiro de 1863. Foi exatamente quando começaram tais actos
violentos que comecei também
a tomar notas para nesta data escrever a Enciclopédia. (Q.S. I-Introdução). [..] Qual a razão porque não posso escrever
com a orthografia que aprendi
em desesseis ou desessete autores e que ensinei por espaço de doze anos e mais
de oitocentos alumnos? "É simples: os crimes horrorozos de que fui vítima em
1862 nesta cidade, e suas funestas conseqüências! fez-se preciso para debelá-los
para inutilizá-los, suprimí-los relacionados com as letras que suprimo, e continuarei a suprimir até que
desapareçam totalmente. Quando eu readiquirir a força espiritual que já possuí;
e com ella, a coragem que
então tinha- viverei feliz...sinto pelas substâncias com que me sustento, e pelo fumo de que uso, destruindo-me os meus órgãos vitais (QORPO-SANTO,
1877, p. 54-55).
É
interessante lembrar que, enquanto esteve internado no Hospício Pedro II para tratamento
no Rio de Janeiro, Qorpo-Santo escrevia cartas a pedido de outros pacientes aos seus familiares:
Hospício-abril-28-Rio
de janeiro: Realmente não sei sobre o que se deva escrever mais. Já o fiz sobre
o que eu achei conveniente para melhorar a existência
de alguns habitantes desta casa; já escrevi alguns pensamentos que a outros respeitos ocorreram-me; já o fiz
em longas páginas as arbitrariedades os insultos que trouxeram-me à corte; já
mandei para o Jornal do Commercio a fim de ser impresso um pequeno folheto com
a minha defesa (Qorpo-Santo, 1877, p. 69-70).
Porém, é
necessário que se faça uma advertência com relação à figura histórica e ao personagem
do romance. Por Qorpo-Santo pertencer ao mundo artístico-literário, estas categorias
podem parecer ambíguas e darem a impressão de que se trata de um mesmo objeto. Suas
atitudes enquanto personagem supõe-se sejam imitações de seu comportamento enquanto cidadão de Porto Alegre. Isso porque
sobre ele pairam muitas histórias a partir das quais torna-se duvidosa a
delimitação entre a ficção e a realidade.
Ferrier-Caverivière
(1997) alerta que nem a história nem o real são em si mesmo míticos. Mas podem tornar-se
tais, se forem penetrados, entre outros, por um mistério insondável, se deixarem de ser legíveis, de evoluir com
lógica:
Quando um acontecimento
histórico ou a atitude de um grande personagem aparece
em ruptura com a trama da época ou com a normalidade dos comportamentos
humanos, quando uma zona de sombra e de incompreensão os invade de repente e os faz escapar ao domínio
da ciência e da pura inteligência, a imaginação de um grupo de homens ou de um povo,
em desafio às leis do cotidiano, encontra naturalmente o meio de impor suas cores e suas metamorfoses, suas deformações e suas amplificações
(FERRIER-CAVERIVIÈRE, 1997 p. 385).
Como protagonista de Cães
da Província, é interessante observar que Qorpo-Santo tem uma personalidade forte e
marcante e, ao consolar seu amigo Eusébio quando este se queixava do
comportamento de Lucrécia, fica furioso ao perceber a preocupação do amigo com a honra:
- Então a
honra está na algibeira! Por isso é que os miseráveis, os deserdados da sorte,
esses não têm as preocupações dos ricos, pois o que tinham a perder já perderam. Honrados ou desonrados, a vida para eles é a
mesma coisa. Mas os burgueses não, eles têm muito o que preservar, seu vinho,
seu azeite, suas roupas finas,
tudo o que a honra lhes traz de mão beijada. Ah, pobre e mesquinha humanidade!
O espetáculo que me ofereces é uma grande comédia (ASSIS BRASIL, 1996, p. 26).
Desse modo,
nota-se que Assis Brasil, ao delinear seu protagonista não desconsiderou totalmente
os dados históricos que sobreviveram sobre o dramaturgo gaúcho.
E, de fato,
Guilhermino César (1980) nos apresenta um Qorpo-Santo muito ativo, pois foi também
vereador, comerciante, delegado de polícia, professor, proprietário de colégio,
tirando destas experiências conteúdo para os artigos publicados nas páginas de A
Justiça. Mas, por considerar-se humilhado, quis romper cadeias, quebrar tabus, refundir a sociedade e instaurar a mais
perfeita justiça. E é este momento de originalidade e inquietude do nome histórico que será
trabalhado para transformar-se em personagem
de romance.
Alguns
eventos vinculados a sua vida podem ser encontrados no romance, como por exemplo, no que se refere ao seu retorno para a cidade
de Triunfo:
Correu naquele
dia, mal-e-mal botando seus tarecos numa grande mala e mandando à merda a cidade que tão pouco acolhedora se
estava revelando, as pessoas acusando-o de lunático e desmiolado, quando na
verdade é apenas o homem mais inteligente de toda a Terra, de todo o imenso Universo,
destinado a grandes feitos literários e dramatúrgicos. [...] A ida para Triunfo
veio bem a calhar. Comprara uma
casinha por lá, lugar de nascimento, e a passividade do povoado acalmava-o. Lá
podia fazer o que bem entendesse. Se quisesse, até podia recitar seus versos vestindo
toga romana, debaixo da figueira da praça
(ASSIS BRASIL, 1996, p. 20-27).
E aos seus assuntos
profissionais e literários:
Depois
Qorpo-Santo tinha mais em que pensar, suas aulas de primeiras letras tornavam-se
cada vez mais pobres, os alunos debandavam, os pais, pouco a pouco, tiravam os filhos; sua fama de louco corria como
pena ao vento. Por sorte era
professor público, tinha seu ganho assegurado depois da falência de sua própria
casa de comércio. Não deixava de dar razão aos pais, andava displicente, mais
envolvido com suas elucubrações do que com a vida prática. Sabia que dentro de si palpitava o gênio, mas não conhecia
a direção em que sua genialidade iria de exercitar. Talvez escrevesse uma
enciclopédia, ou um feixe de dramas, ou uma grande epopéia, talvez um novo
sistema ortográfico em que, por
exemplo, a letra c com som de k seria
sempre grafada com q, como seu
nome: Qorpo-Santo. Para que o u depois do q, se
não servia para nada (ASSIS BRASIL, 1996, p.
27).
Considerando
a figura histórica e sua produção, Guilhermino César diz que Qorpo-Santo
escrevia com muita rapidez e que só no mês de maio de 1866 compôs oito comédias.
Além disso, descreve Qorpo-Santo como implacável no combate à desordem ortográfica
vigente em sua época e que após escrever muitas peças “voltou a encarar o assunto
em 1868, já agora com o objetivo de traçar regras práticas que levassem à simplificação gradual da ortografia portuguesa” (CÉSAR,
1980).
Neste trecho de Cães da
província, pode-se constatar como Assis Brasil constrói a personalidade do
dramaturgo:
O destino
às vezes arma ciladas, ele jogado aqui nesta mesquinha cidade com esse povinho
medíocre, gentinha de ocupações fúteis. É certo que, a esta hora, nenhum desses aí de baixo está escrevendo uma nova Odisséia,um
Werther,tudo gente de cérebro ressecado pelas contas, faturas de fumo e
vinho. E ele solitário, com tantas ânsias, sentindo-se no limiar de uma grande obra,
destinada a aplastar o vulgo (ASSIS BRASIL, 1996, p. 45).
Foi a fase
vinculada ao desencadeamento da doença mental, segundo Guilhermino César (1980),
na qual Qorpo-Santo encontrou vazão no trabalho intelectual, passando a escrever
sem trégua, nessa cidade de Porto Alegre que era “quase uma aldeia naqueles dias,
escandalizada e divertida, cobriu de riso o pobre homem” (CÉSAR, 1980).
A
descrição física de Qorpo-Santo, e também de sua personalidade extravagante e
inquieta, é apresentada pelo narrador do romance através da perspectiva de seu
amigo Eusébio Cavalcante:
Eusébio não
encontra palavras para começar, e eram tantas. Qorpo-Santo o perturba, agora
aquele olhar de doido, os olhos verdes furando a cara, indo até o cérebro em
chamas, os cabelos desalinhados caindo nos lados do rosto fino, as barbas arrepiadas,
a bigodeira selvagem de quem não se importa com as modas, toda uma presença que amedronta, ainda mais à amarelada
e tenebrosa luz de vela. Terá
coragem de contar tudo para aquele homem? Esquiva-se,
balbucia algumas palavras, a coragem esmorecendo. Antes não o tivesse chamado,
antes amargar tudo sozinho. Mas a verdade é inexorável, é um desgraçado, enfrentando a mais escabrosa
história de sua vida, que até então foi um construir silencioso e eficiente de fortuna
e reputação. E, de repente encontra-se jogado ao temperamento cambiante de um homem
que todos chamam de variado, em meio a uma noite que parece nunca mais acabar, perpétua
e fantasmagórica. Contudo, por desencontrado que seja, todas essas circunstâncias
de loucura e trevas começam por tranqüilizá-lo. Qorpo-Santo,
afinal, é seu amigo, leal e fraterno, há anos. Deve confiar nele (ASSIS BRASIL,
1996, 50).
José Joaquim
de Leão era alto, magro, moreno, de uma palidez de morte, conforme descreve Achilles
Porto Alegre (1920), destacando ainda que usava a cabelleira comprida como os velhos
artistas da renascença, trajava calças brancas, sobrecasaca
preta, toda abotoada como uma farda. E que tinha uma “bengala grossa para afungentar os cães e chapéo alto de seda
lustrativa. Andava sempre na rua apressado
como se fosse tirar o pae da forca” (PORTO ALEGRE, 1920).
Ainda,
retomando Ferrir-Caverivière (1997), é importante considerar o que esta autora
diz sobre a relação histórica das personagens. Ou seja, a magia do verbo
recriado reinventa as personagens e suas ações com as cores da imaginação, a tal
ponto que a concordância histórica deixa de ser significante. Assim, a história
tende a frear o imaginário e, mesmo quando a cronologia dá ao “mito seu impulso
e dita suas metamorfoses, ele é reconhecível por seu afastamento em relação aos
acontecimentos” (FERRIER-CAVERIVIÈRE, 1997, p.
388).
Tratando
do desempenho da personagem, Mikhail Bakthin (2003) explica que a personagem é autora
de sua própria vida esteticamente e que “parece representar um papel, é
auto-suficiente e acabada de forma segura” (BAKHTIN, 2003, p.18). Por isso, com
a apresentação comparativa destes elementos tivemos a intenção de justificar ou
apontar o processo de construção da personagem no romance. Isto é, como os dados
exteriores, as informações documentais contribuem para a sua consolidação. No entanto,
a personagem do novo romance histórico, é constituída não somente por fatores que
a vinculem à sua vivência histórica, tornando-a verossímil, mas também e, sobretudo, pelas transformações criativas executadas pelas
mãos do escritor.
O
dramaturgo foi descoberto efetivamente, após pesquisa realizada por Annibal Damasceno
Ferreira na Biblioteca de Dario Bittencourt em 1963 e, já no ano de 1966, aconteceu
a montagem e a apresentação de três de suas comédias pelo Teatro Clube da Cultura
de Porto Alegre sob a direção de José Carlos de Sena. Posteriormente, vários artigos
foram publicados em jornais locais e de outros Estados, dando conta de que
Qorpo-Santo tinha sua importância no cenário cultural do país,
apesar do reconhecimento tardio5.

E é o protagonista Qorpo-Santo que efetivamente
dará início à construção de sua grande obra literária “O Homem que Enganou a
Província”, inspirada nos crimes da Rua do Arvoredo e no assassinato de Lucrecia,
os quais causaram comoção e revolta nos moradores de Porto Alegre. Estas incursões
do romance Cães da província pelo terreno
policial serão tratadas na próxima parte deste trabalho.
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Fonte:
Maria Helena d Moura Arias: “O homem que enganou a província ou as peripécias de Qrpo-Snto: uma leitura de Cães da província, de Luiz Antonio de Assis Brasil.” (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis-UNESP-Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de conhecimento: Literatura e Vida Social. Orientador: Prof. Dr. Antonio Roberto Esteves). Assis, 2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: www.laab.com.br
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