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Qorpo Santo precursor de Qorpo Santo
Quem levaria em consideração um
homem cujos hábitos eram tão esdrúxulos e cujas idéias eram tão inovadoras para
o período em que surgiram? Se, por um lado, a sociedade oitocentista não se
encontrava pronta para entender e aceitar Qorpo Santo, por outro, não se
esforçou em fazê-lo e, ligando a pessoa – “louca” – ao artista, esta mesma
sociedade optou pela exclusão de um indivíduo em nome de um todo social; assim
sendo “o reformista que nele existia, encontrava sempre pela frente a acomodada
e sólida barreira dos que não querem mudar. Caricato, (...) apanhando de
preferência traços ridículos, mas no mesmo tempo calcados em seu próprio
desajustamento comovedor pelas incompreensões, Qorpo Santo extravasa, em cada ato
[teatral], toda sua incontida angústia”. Marginalizado socialmente em função de
seus atos bem como pelo que escreveu, a conseqüência imediata foi o anonimato
de onde ressurgiu anos depois, por ocasião da Semana de Arte Moderna de 1922.
Durante a Semana, o nome de Qorpo
Santo foi relembrado pela intelectualidade que, cobrindo o mesmo de uma
conotação negativa, tentaram atingir os modernistas através da analogia entre o
fazer literário daquele e as idéias vanguardistas destes. Embora implícita e
negativa, esta foi a primeira menção dada ao teatro de Qorpo Santo como precursor
do teatro moderno, título que sustenta até os dia de hoje pelo fato de suas comédias
terem atuado como um não, certamente
crítico, à literatura surgida com o desempenho do Romantismo e à ética social
de que o autor de Lanterna de fogo foi contemporâneo. Diante do corpus estético-literário preexistente, quer de
padrões, quer de pressões de obras que incorporam esses padrões, Qorpo Santo –
ou suas peças teatrais – opera como uma ruptura com a ordem vigente, impondo
um novo modo de arranjar o universo teatral. Devido a sua inovação e renovação,
as quais não se prenderam aos limites oferecidos pelo Romantismo, é que sua
obra de arte constitui-se em um salto no tempo e no espaço, daí o porquê de não
considerá-la representativa apenas do momento histórico em que foi produzida,
cujos parâmetros opõem-se frontalmente para tornarem-se familiar às propostas
estéticas do século XX. Porém, nem mesmo os poetas de 22, tão inclinados a descobrirem
o novo em nível de arte nacional,
tiveram sensibilidade o suficiente para fundamentar suas idéias pioneiras no
trabalho artístico realizado outrora por Qorpo Santo, em Porto Alegre.
Menosprezado pelos românticos,
ignorado pelos parnasianos e esquecido pelos modernistas, os registros de Qorpo
Santo não possuem nenhum depoimento ou crítica que lhes fossem contemporâneos à
elaboração ou posterior divulgação e, como resultado disso, seus textos foram
consumidos de forma implacável pela injúria do tempo, não alcançando, assim, um
lugar de destaque na historiografia literária brasileira. O anonimato ao qual Qorpo
Santo foi “condenado” só conheceu o seu término após o ressurgimento de sua
obra – ou o que se conhece dela – que aconteceu graças a Aníbal Damasceno
Ferreira, responsável pela descoberta de Qorpo Santo, Guilhermino César e
Antônio Carlos de Sena, que foi o primeiro diretor cuja coragem enfrentou as
dificuldades de interpretação dos textos de Qorpo Santo, colocando sobre o
palco do Clube de Cultura de Porto Alegre três peças (As relações naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não sou morte) do “desajuizado”
autor, no ano de 1966.
As mesmas peças encenadas na
capital dos gaúchos foram levadas pelo grupo de Sena até o Rio de Janeiro, em
1968, onde foram exibidas com enorme sucesso. Esse fato repercutiu até a
imprensa, proporcionando muitos debates acerca das peças e fazendo com que
alguns críticos da época divulgassem Qorpo Santo como sendo o precursor mundial
do Teatro do Absurdo. Fez-se necessário, portanto, além das mudanças que
operaram em nível estético no segundo decênio do século XX, o percurso de
exatamente um século para que o talento artístico de Qorpo Santo recebesse o
devido reconhecimento.
Somente depois de assimilado as
novas correntes filosóficas, entre elas a teoria psicanalítica de Freud e a
econômica de Marx, de ter convivido com os modelos artísticos de vanguarda – tais
como o expressionismo, futurismo, surrealismo etc – e, finalmente, ter vivenciado
a mudança estrutural que se concebeu em nível cênico, no decorrer dos anos cinqüenta
do século passado, a qual promoveu a ruptura com a mímese realista e deu asas ao
absurdo, é que o homem moderno conseguiu perceber que os escritos do autor de Um
parto realmente possuem valor artístico e não são, simplesmente, frutos de um
cérebro perturbado. Contudo, inúmeras são as pessoas que ainda suspeitam do
talento de Qorpo Santo, porquanto ligam sua pessoa à arte que produziu,
concluindo, assim, que seus escritos são resultados de uma irreversível
insanidade.
Realmente, é possível promover
uma aproximação entre a matéria dramatizada e o conhecimento que se tem acerca
da biografia de Qorpo Santo. Embora o autor não tenha se transferido
metonimicamente para suas criações, percebem-se alguns pormenores biográficos
em suas comédias que conservam, ao nível do texto, suas aspirações e frustrações,
o que ocorre em especial nas peças A
impossibilidade de santificação ou A santificação transformada, Hoje sou um; e
amanhã outro, Um credor da Fazenda Nacional e O marinheiro escritor, onde há referências diretas à sua
pessoa. Todavia, o fato desses textos conservarem reminiscências ideológicas de
seu autor não implica que devemos atribuir as mudanças, que se deram sob forma
temática e artística, a uma suposta ausência de lucidez da mente que as criou.
Partindo do pressuposto que a
obra de arte não deve ser reduzida à referencialidade trabalhada e
considerando, também, o legado cultural das vanguardas, que preparou o leitor moderno
para absorver uma literatura não canonizada, fica transparente que o conjunto
de novas características que compõem o fazer cênico de Qorpo Santo foi
realizado de forma consciente e criativa. Se, por um lado, Qorpo Santo não
pensou o seu teatro como um engenhoso dramaturgo, por outro, não deixou de
fazer criativas alterações que levaram o seu trabalho ao comparativo com o
realizado por Eugene Ionesco. No entanto, como ambos os artistas fizeram parte
de contextos históricos diferentes, as mudanças teatrais de Ionesco foram amparadas
pela concepção estética moderna e recebidas como inovadoras, já as de Qorpo
Santo foram de encontro às concepções estéticas românticas e recebidas como sinônimo
de loucura.
Com certeza, o teatrólogo gaúcho
não teve a intenção de criar o Teatro do Absurdo em pleno século XIX, até
porque, àquela época, Qorpo Santo não foi tomado pelo sentimento íntimo de
incomunicabilidade e de opressão vivido por Alfred Jarry, Samuel Beckett e
Eugene Ionesco ao longo dos anos cinqüenta do século XX, motivo pelo qual aqueles
dramaturgos foram impulsionados a conceber uma reforma radical no bojo das artes
cênicas, e sim por uma incontrolável grafomania, gerada pelo impulso de autoconfissão
que o obrigava a escrever. Logo, se Qorpo Santo não elaborou os seus escritos
em função de uma concepção metafísica da solidão – como Ionesco, por exemplo – o
fez em razão de fortes impulsos subjetivos, gerados pelas turbulências de sua
vida, que moveram sua mente a criar um novo
modelo teatral que, por razões óbvias, não seria influenciado em vanguarda
alguma e sim pela fusão do Teatro Realista com a Farsa.
Dito isso, a analogia entre o
trabalho do dramaturgo sulino e o de Ionesco, por exemplo, torna-se pertinente
se considerarmos que ambos, impelidos por motivos diferenciados, lançaram ao
universo teatral um caráter híbrido, mas que não pode ser considerado de igual
teor artístico. A Qorpo Santo, sem dúvida, é o mérito de ter inventado conscientemente
e sem nenhum tipo de modelo precedente, um teatro singular que termina por
apontar para várias maneiras de se dissolver o enredo narrativo de lógica perfeita.
Sem optar por nenhuma delas, “Qorpo Santo ficou no limiar de uma série de
caminhos trilhados, mais tarde, por diferentes escolas e movimentos que,
partindo dos mais diversos pontos de vista, dedicaram-se a contestar a
validade, como representação do mundo, daquele mesmo enredo narrativo e lógico,
fixado na tradição da peça bem feita”. Estas palavras já justificariam o
aspecto inovador do trabalho de Qorpo Santo que, se não inventou o Teatro do
Absurdo, construiu – mesclando a tragédia com a comédia, somadas ao grotesco e
ao texto fragmentado, por exemplo – um modo do teatro questionar-se por sua
natureza própria, modo este que se aproxima do metateatro desenvolvido, em
nível de texto e representação, pelos dramaturgos do Absurdo, daí a analogia.
Portanto, conclui-se que José
Joaquim de Campos Leão é de fato um precursor, não do Teatro do Absurdo mas de
um teatro híbrido que, pela primeira vez, chamou a atenção para
a própria representação teatral em si. Elaborou um trabalho de forma lúcida, consciente
e criativa, em cuja base Qorpo Santo demonstra toda a sua inconformidade com relação
aos problemas oriundos de uma sociedade patriarcal e escravocrata, transpondo
aos textos toda a opressão de cunho social e moral do século XIX, “a família,
as crendices, as casas de jogo, as festas, o bordel, os heroísmos patuscos e a
devassidão mascarada de santidade – encontramos de tudo um pouco nestas
comédias”.
Renegado pela opinião pública e,
consequentemente, pelo crivo da crítica, o teatro de Qorpo Santo tornou-se um
amplo painel onde, atualmente, é possível projetar vocações surrealistas,
impulsos tipicamente brechtianos, sensações do chamado Absurdo e, certamente,
inúmeras outras características que não são capazes de defini-lo com precisão, pois
diversas são as opiniões acerca do teatro de Qorpo Santo no sentido de
denominá-lo ou classificá-lo dentro deste ou daquele estilo. Mais importante,
no entanto, do que uma classificação precisa à arte cênica de Qorpo Santo, é a
consciência de que o trabalho do dramaturgo gaúcho deve ser analisado e
estudado como o pioneiro entre muitas escolas e estilos que surgiram tempos
depois, fato que transforma Qorpo Santo, antes de tudo, em precursor de Qorpo
Santo, e o conjunto de suas peças um objeto constante de análises, para que o
autor de Duas páginas em branco alcance
um verdadeiro lugar de destaque dentro do universo dramático contemporâneo.
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Fonte:
André da Silva Menna: “Um qorpo
santo na província: da História à Ficção”. (Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Letras – Literatura Brasileira e Teoria Literária – da
Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em
Literatura Brasileira. Orientadora: Profª. Dr.ª Tânia Regina Oliveira Ramos).
Florianópolis, 2003.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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