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“Os Canibais”: metaconto
de Carvalhal
Enfim, quebro o fio às
divagações para
me devotar
à história que o merece.
Escolha o leitor a capricho
o local da
acção, que daí lavo eu
minhas mãos,
contanto que se não ausente
do país em
que sejam lidos Dumas e
Kock, e onde
abundem seminários, escândalos e
sotainas.
Álvaro do Carvalhal, Contos.
O conto “Os Canibais”
certamente é o mais conhecido dos escritos por Álvaro do Carvalhal e tem
despertado o interesse de pesquisadores que abordam a produção literária deste
autor excluído do cânone português do século XIX durante um largo período.
Inicialmente o conto foi
lançado com o título de ‘A Estátua Viva’, fazendo referência à condição
sobrenatural do protagonista da narrativa, e foi publicado entre 1865 e 1866,
na Revista de Coimbra, sem que seu autor visse a sua publicação se dar
por completo.
“Os canibais”, mesmo 140
anos após sua primeira publicação integral, que ocorreu somente em 1868, é
capaz de atrair a atenção e o interesse do público leitor e de tanger questões
fundamentais da existência humana. Acreditamos haver três aspectos de relevo
especial nesta narrativa de Carvalhal que podem ser apontados como questões
polêmicas que contribuíram para a popularização do conto, a saber: sua
conclusão, publicada postumamente, esteve cercada de controvérsia uma vez que
se lançaram dúvidas sobre a autoria da parte final e foi aventada a
possibilidade do editor e amigo de Carvalhal, J. Simões Dias, tê-la redigido.
Há também a sua adaptação para o cinema dirigida por Manoel de Oliveira no
final da década de 1980 que, em um movimento de redescoberta do escritor
oitocentista, difundiu sobremaneira o conto e o próprio escritor. Por fim, e
certamente com maior destaque, as características singulares do conto que são
capazes de estabelecer, como já destacado anteriormente, a paródia e a ironia
como instrumentos de crítica social e de afastamento do Romantismo.
Bem à moda folhetinesca, em
efervescência no século XIX, Álvaro do Carvalhal, em seu conto “Os Canibais” constrói um pretenso
triângulo amoroso, que tem como ângulos o
misterioso Visconde de Aveleda, o jovem e impulsivo D. João e a Senhora Dona
Margarida.
Através de um intrincado
jogo de palavras e de narrativas em paralelo, adotando como recurso o mise-en-abîme, o autor constrói um texto
surpreendente em sua organização com a interferência de um narrador, que apesar
de não ser personagem da narrativa, é ator em sua própria narração. Ou seja, o
narrador apresenta aos seus leitores uma história dentro da outra: uma que é a
construção da outra que é contada em paralelo.
Carvalhal elabora o seu
texto a partir da criação de um narrador extremamente irônico e que busca
estabelecer um diálogo com o seu leitor. O narrador parece guiar seu leitor e
não deixa passar a oportunidade de criticar os lugares-comuns do Romantismo na
construção de narrativas:
O meu conto
é amador do sangue azul; adora a aristocracia. E o leitor há-de peregrinar
comigo pela alta sociedade; hei-de levá-lo a um ou dois bailes, despertar-lhe o
interesse com mistérios, amores e ciúmes que se armazenam por essesromances de
amar ao efeito. Ora ouça, que eu principio moldando-me pela velhacostumeira: A
abóbada azul do céu alumiava com milhões de estrelas os coruchéus, obeliscos e arcadas
da decrépita arquitectura da cidade...”(CARVALHAL, 2004, p. 218)
O narrador é reflexivo
sobre o seu papel na constituição do conto e discute com o seu leitor a
ambientação que dará aos seus personagens:
Refleti,
com a madureza, que o caso pedia, e por fim, vencido da necessidade, quase me
resolvi a levar os meus heróis para o Japão, onde qualquer sombra do extraordinário
seria menos notada por sobrenatural... (CARVALHAL, 2004, p. 222)
Mais adiante, o narrador
continua sua reflexão sobre o texto que conduz caracterizando “Os Canibais”
como um metaconto: “Colocar o facto no local, que lhe é próprio, é sem dúvida a
primeira obrigação, que em ambos os casos compete ao narrador.” (Idem, p. 222)
Cônscio de seu papel de
construtor da narrativa, o narrador do conto continua sua incursão em uma
espécie de conversa que trava com seu leitor e discute a sua própria
construção:
Não foi sem grande dor de alma que coloquei o
sibilino visconde em frente de Margarida... (Idem, p. 227)
Se isto que
para aqui escrevo, fosse um romance, havia de ele (D. João) apertar com a
dextra febril o cabo de ouro dum reluzente punhal. Porém não enodoemos a história.
Mandemos o punhal para o velho teatro ou para a floresta erma. (Idem, p. 228)
Carvalhal torna seu texto
singular graças às intromissões do narrador que coloca sua narrativa entre
parênteses e abre um canal de comunicação privilegiado com seu leitor ao
chamá-lo a praticamente compor com ele uma interação com o texto que ali
elabora: “Enfim, quebro o fio às divagações para me devotar à história que o
merece. Escolha o leitor a capricho o local da acção, que daí lavo eu minhas mãos...”
(Idem, p. 222)
Ao lado de Margarida,
mulher fatal e de D. João, um D. Juan às avessas, como apontamos anteriormente,
a caracterização do visconde de Aveleda merece um destaque especial, pois o
nobre é visto como um excêntrico, que usa luvas o tempo todo, o que deserta a
curiosidade das pessoas. Sua descrição remete-nos a episódios de à ficção
científica, pois sua constituição física parece ser de um autômato, de um
andróide, já que nos seus movimentos “notava-se um esforço dissimulado; parecia
um movimento mecânico, automático.” (Idem, p. 221) Através destas percepções
singulares, o narrador aponta para os seus leitores, desde o surgimento do
visconde, que há uma aura de mistério que o cerca.
O visconde
é um homem sedutor, que atrai a atenção das senhoras nos salões que frequenta, que provoca a inveja dos homens e é “um
tipo ideal e misterioso, como o concebia Byron.” (Idem, p. 221) A alusão
explícita ao poeta ultrarromântico inglês é uma referência que nos leva a um
quadro referencial que serve de padrão para um certo tipo de escola estilística
que será então questionada por Carvalhal.
Encantada com o visconde e
insistente em um compromisso, Margarida alcança seu intento, casando-se com o
nobre, mesmo quando advertida por ele próprio sobre a impossibilidade de um
relacionamento entre ambos:
Impossível.
[...]
O cego
advinha as maravilhas da natureza e adora-as, mas sem poder contemplá-las. Eu
sou como o cego, Margarida; adoro-a, sem poder mais nada. (Idem, p.226)
Margarida,
como se fosse uma espécie de L. Gundar (“A Vestal”) do sexo feminino, encontra também seu fim desgraçadamente na
escolha que faz pelo matrimônio. Na noite de núpcias, o visconde lhe revela que
nada mais é do que uma figura sobrenatural, uma estátua viva:
Fez um
movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado, disforme,
monstruoso. Pernas, braços, os próprios dentes do visconde, brancos como formosos fios de pérolas, tombaram
sobre os felpudos tapetes da Turquia e perderam-se nas dobras do seu robe de
chambre, que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros.
O infeliz
era um fenômeno, um aborto estupendo... (Idem, p. 251)
A reação de Margarida,
apesar de suas juras de amor e de fidelidade até a sepultura é a de horror com aquela
revelação inesperada e a impossibilidade de uma
convivência com seu amado.
É nesse ponto da narrativa
que se pode ver esta figura exótica do visconde, por quem Margarida se
apaixonou, semelhante aos mitos populares da ‘alma penada’ que retorna do
túmulo para findar situações pendentes e que só poderia obter a sua remissão
pelo amor. Entretanto, sem sucesso, rejeitado e sem vislumbrar outra solução
para sua existência, o conde de Aveleda lança-se nas chamas de um fogão do
quarto de núpcias, sacrificando-se. Desesperada, Margarida se suicida e é
seguida por D. João, o jovem apaixonado que não vê razão na sua existência sem
a sua amada Margarida.
Como desfecho e recurso de
extremado horror, Álvaro do Carvalhal nos apresenta o pai da noiva, que
atraído, pelo aroma de carne no fogão do quarto dos recém-casados, sacia-se
desta e vem a descobrir que era carne humana, tornando-se um dos canibais desta
narrativa acompanhado por seus filhos mais jovens. Parodiando os textos
românticos que viam na morte a solução para os problemas, Carvalhal leva os
três a julgarem ser o suicídio a solução para o canibalismo que acabavam de
praticar. Entretanto, reveem sua posição ao se lembrarem de que herdam a
fortuna de Margarida e do visconde. Novamente, surge aqui a desproporção entre
o motivo e a solução, como apontamos para o caso do desfecho do episódio da
desonra da irmã de Benedito, no conto “J. Moreno”. Esse recurso contribui para
a quebra da tensão e introduz, mais uma vez, a ironia paródica pelo viés do
humor.
Álvaro do Carvalhal
constrói sua narrativa atento à necessidade de evitar as descrições muito
detalhadas para que se mantenha uma aura de mistério e ambiguidade envolvendo
seu texto, por isso descreve o visconde com uma “calculada contenção”:
Porém a par
deste retratar tão vago e circunspeto, a encenação fantástica está ainda
dependente da observação de outros princípios, nomeadamente da representação,
por pinceladas descontínuas, daqueles traços que propiciam uma permanente
indefinição do sujeito, dada a sua natureza contaminada. (CARNEIRO,1992, p. 47)
Neste ambiente envolto em
sombras que o autor cria para dar condições de inserção da hesitação do leitor
e, por consequência, a construção das condições indispensáveis ao fantástico e
sua posterior desconstrução através da ironia e da paródia, podemos destacar os
elementos aos quais recorre o narrador paraestabelecer a ambiguidade necessária
entre espírito e matéria. Dentre eles, a dúvidalançada sobre a natureza e o
comportamento excêntrico do visconde:
[...] O que eu desejava saber, sobretudo, é
que originalidade é aquela de vir sentar-se à mesa com as mãos escondidas nas
luvas.
Diz-se que nunca fora visto sem luvas.
É um homem bem extravagante. (CARVALHAL, 2004,
p. 236)
Como já referimos
anteriormente, cabe ressaltar na análise que se faz do conto “Os Canibais” os
recursos utilizados pelo narrador que buscam a desconstrução da estrutura
narrativa que inicialmente constrói.
Os recursos adotados pelo
escritor, a saber a ironia e a paródia, transformam o que se supõe um conto
fantástico em um metaconto, que apresenta um narradorque dialoga com o leitor e
que é capaz de questionar e debater as estruturasnarrativas adotadas pelo
escritor/narrador:
Porém que
destino! A astúcia depravada do autor faz que o vejamos na parte luminosa do
quadro; [...] Depois acende um fogão monstro [...] Palpita-me que o vaicomer.
Isto não se faz em país civilizado e liberal! (Idem, p. 254)
O narrador do conto
parece-nos ser, em certa medida, a figura principal de sua própria narrativa,
pois é capaz de imprimir tensão ao seu texto e, em seguida, suspendê-la com
digressões que desarticulam a narrativa. Ao lado disso, o narrador é capaz de
tratar ironicamente de temas capazes de causar repulsa:
Pobre
visconde de Aveleda!
Quem
sonhara, ao ver-te esplêndido, imponente e adorado, que cruel fim te reservara
o avesso destino, sujeitando teu requeimado tronco aos apetites vorazes de
famintos canibais, que, ainda na véspera, te abraçavam no desafogo duma amizade
pura! (Idem, p. 260)
O macabro e chocante
incidente que leva ao canibalismo e a suspensão da tensão dramática que se
opera com a lembrança dos valores que os recém-descobertos canibais receberão por ocasião da morte do
visconde e de Margarida dão o tom final e são
a reafirmação da ironia que esteve presente em todo o texto.
---
Fonte:
Renato Martins e Silva: “Álvaro do Carvalhal, a denúncia do descompasso”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Maria Cristina Batalha). Rio de Janeiro, 2009.
Fonte:
Renato Martins e Silva: “Álvaro do Carvalhal, a denúncia do descompasso”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Maria Cristina Batalha). Rio de Janeiro, 2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: www.bdtd.uerj.br
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