15/06/2014

Mateus e Mateusa (Teatro), de Qorpo Santo

 Mateus e Mateusa, de Qorpo Santo
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Um Mito Que Queria Ser Louco

Liberdade – devemos dar,
Àquele que com juízo,
Sabe liberdade gozar!
Jamais ao que vende
A liberdade que teve,
Ou a grilhões se – prende!
Qorpo-Santo

Retornemos aos anos de afetação psíquica vivido por Qorpo-Santo. Durante esse período, além das acusações de loucura ou impossibilidade de uma salvação, ele sofre inúmeras perseguições e violências, que fizeram com que ele ficasse sem recursos para se prover. Sua interdição tinha sido concedida. Isolado socialmente, começa a escrever e reunir os primeiros textos para a construção de “Ensiqlopédia”.

Certamente a internação, que durara bem mais que o tempo de escritura dos seus textos, teria sido uma motivação para que Qorpo-Santo não parasse de escrever. Um fato que causa estranhamento é ele ter parado aos dezesseis dias de junho de 1866 se só seria libertado em 1868, dois anos depois dos textos de teatro serem escritos, sem falar na forma que eles foram deixados: uns com ausências, outros pela metade e ainda ficaram alguns praticamente só esboçados, sem que ao menos um ato tivesse sido acabado.

Seus transtornos ou possíveis desvios psíquicos não acabaram de uma hora para outra. O que nos surpreende é o motivo por que ele deixaria de escrever teatro depois de tantas peças escritas em tão pouco tempo... Teria sua mente demarcado os limites entre o que deveria e o que não deveria escrever? Parece que tentamos sempre encontrar uma lógica, meio ilógica. Será que dedicou pouco tempo ao teatro ou essa foi apenas uma estratégia de que lançou mão para manter em sua história o perfil de quem escreve como um louco? Todo esse cenário mantém nossa esperança de encontrar um segundo volume dedicado ao teatro, já com os volumes conhecidos não acreditamos no esgotamento de sua criação teatral. Nas suas 17 peças, vemos sim, a possibilidade de encontrar alguns textos dedicados à tragédia, mais especificamente.

Voltemos a sua interdição. Fischer (2001, p. 291) acrescenta que havia uma desconfiança da associação da esposa do teatrólogo, D. Inácia, com um juiz, para usufruir dos bens de seu marido, que naquela altura não eram poucos.

Depois da troca de muitas injúrias e de incontáveis questionamentos quanto à sua sanidade, em 1864, ele é levado ao Rio de Janeiro para fazer exames. Isso foi uma desculpa para interná-lo pela primeira vez aos 35 anos, na Casa de Saúde Doutor Eiras. Sua internação foi motivo de muita discussão entre os médicos e Qorpo-Santo, que, nesse período conturbado, aproveitou para escrever cada vez mais compulsivamente. Foi mantido neste manicômio até 1868, quando os psiquiatras avaliaram que a internação estava, na realidade, contribuindo para piorar o estado do paciente. Esse tempo foi suficiente para escrever o material dos nove volumes de “Ensiqlopédia”, mas, sem dúvida, o seu desejo era se comportar como um louco ou, no sentido oposto, perfeitamente lúcido segundo a sua conveniência. Em sua obra destacou que durante aquela internação, o ainda José Joaquim Campos Leão, viveu o que denominou de “momento de iluminação mística”, essa experiência santificadora do seu ser fez com que, por um estalo de consciência, se convencesse da necessidade de não mais manter relações com mulheres.

Um mundo novo se apresenta para o agora Qorpo-Santo. Sua obsessão em não se relacionar com o sexo oposto, uma vez que teria um corpo para zelar e diante dele nada mais poderia fazer se não deixá-lo livre das tentações da carne, foi o elemento motivador para a atribuição de sua alcunha.

Embora a iluminação mística seja a maneira encontrada pelo autor para justificar essa obsessão pela santificação, César (1980) nos alerta para o choque moral sofrido por ele aos três anos de idade, ao presenciar ou entender ter presenciado uma tentativa de estupro, que não se sabe ao certo em que circunstâncias ocorreram, mas, como já comentamos anteriormente, esse fato poderia configurar-se em uma história de sua infância criadora, sem nenhum teor de verdade, como também pode representar um outro lado da moeda. Certamente, para uma criança de três anos, deparar-se com a relação sexual entre um casal, pode significar a imagem da agressão do homem para com uma mulher (sua mãe), isto porque ontologicamente essa é uma referência dada na psicanálise, marcante para justificar a instalação de vários procedimentos comportamentais angariados da infância. Não se descarta a possibilidade de que, em suas lembranças, a imagem do “lobo mal” esteja relacionada às imagens arquivadas fazendo com que o ato sexual represente uma agressão à mulher, o que, na visão de uma criança, machucaria a mulher, fazendo-a gemer, representando, portanto, o sofrimento e não o prazer.

No momento que sua vida é norteada pelo celibato, canaliza a sexualidade reprimida para a sua escritura, registrando-a em seus textos teatrais. Neles encontramos uma obsessão constante que marcaria o desejo sexual reprimido, exteriorizado, principalmente, por mulheres bem mais jovens. Foi este momento de recolhimento ou iluminação que fez com que ele passasse não só a assinar Qorpo-Santo, mas também, a incorporá-lo ao seu nome civil. Sobre seu novo nome o próprio contemporiza que

Se a palavra Qorpo-Santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo. (Apud César, 1980)

Neste depoimento, ele refere-se à interdição judicial que sofreu, comentando que seu nome foi uma forte contribuição para a manutenção das internações, que continuaram em 1868, no Rio de Janeiro, onde realizaria exames de sanidade mental e seria internado no hospício Pedro II. Apesar de mais um período de internação, o maior especialista em clínica médica psiquiátrica da Corte, Dr. Torres Homem, afirmou que Qorpo-Santo gozava de boa saúde mental e, mais ainda, observou que ele seria dotado “de um acréscimo de atividade mental, que não pode exprimir um estado anormal de intelecto” (Apud César, 1980, SN). A opinião deste médico foi decisiva para a aferição de alta, fazendo com que ele voltasse para Porto Alegre. Cria, então, à época, o jornal A Justiça, principal veículo de críticas e denúncia contra os que o maltratavam. O próprio título atribuído ao periódico evidencia o estado de espírito singular em que se encontrava o autor.

Os números desse periódico tornaram-se um dos veículos para a divulgação de suas idéias, contestadas e condenadas por aquela sociedade. É claro que, entre os seus leitores, existiam aqueles que eram adeptos ardorosos de suas idéias. Não podemos deixar de falar sobre essas idéias e a importância que elas tiveram para manter o efeito alucinógeno para aqueles que lêem.

Na certeza ambígua de partidário e perseguidores de suas idéias e de sua obra, encontramos trilhas, pistas que justificariam nossa convicção de que ele teria almejado ser visto como louco, ou melhor, precisava se fazer de louco. Ainda mais, Qorpo-Santo escreve antes mesmo de sua perturbação psíquica e talvez a acidez de seus textos seja um mote válido para o questionamento de sua sanidade mental.

Abrimos um precedente para questionar essa insanidade propalada aos quatro ventos. Sua estratégia de se manter distante do mundo, mesmo de forma forçada, foi realizada como uma preparação, um ritual, um hibernar propício para angariar munição contra essa sociedade que o condenou, tentando calar seu canto:

C-S. – Há pouco me lembrei e repeti os versinhos incompletos que produzi certo tempo e que existem não sei por onde. Querem-me fazer frade; eu, frade, não quero ser. Aborrecido de ler. E também de escrever. Em que hei de me entender. De que modo hei de viver?! (Qorpo-Santo, 2001, p. 54)

O desejo explícito de não se fzer frade faz com que entendamos a necessidade de sair do isolamento. Vemos claramente a comparação a um frade, já que ambos – frade e escritor – vivem, para melhor exercer suas atividades, retirados do convívio mundano e não podem falar ou escrever o que querem, pois são observados pelo diversos olhos da igreja e da justiça.

O texto do teatro de Qorpo-Santo nos leva muitas vezes às raias da loucura, principalmente se considerarmos o cenário teatral em que ele se desenvolve. Ao contrário do que existe no século XIX, nosso dramaturgo parece sentir prazer em trazer a loucura das pessoas para as cenas do cotidiano. Trata-se de uma espécie de teatro espontâneo, recurso que será amplamente utilizado na psicoterapia no final século XX, como apresenta-nos Moysés Aguiar (1988, p. 47):

O recurso mais importante que se pode utilizar, segundo a concepção moreniana do teatro espontâneo (grifo nosso), é, porém a inversão de papéis. O protagonista deixa de desempenhar o seu próprio personagem, na cena, e passa a representar o que com ele está encenando. O ator que fazia o contrapapel vai fazer o principal. Nessa oportunidade ambos têm a possibilidade não apenas de ser de fora (como no espelho), mas de se ver e sentir a partir da posição do outro, interatuando como se fosse o outro.

A técnica descrita por Aguiar, se observada atentamente, relembra várias passagens do teatro de Qorpo-Santo, em que há uma espécie de troca de papéis, mais ou menos similar ao já descrito. Comprovamos isso nas trocas de papéis vividos por Ernesto e Eulália, ele numa primeira situação encontra-se como o senhor da casa onde mora, porém, com a chegada da serviçal da esposa, ele se mostra não mais o dono, mas o que segue as ordens da esposa. Inicialmente é o chefe de família: manda na casa, mas quem fala mais alto é a mulher, mesmo quando se questiona:

‘Que é o será melhor: ser servido ou servir?’. Respondo: seja melhor; seja pior prefiro servir a ser servido. Note-se: falo do que é próprio da classe dos criados, etc., visto que todos servem. (Qorpo-Santo, 2001, p. 28)

Apesar de Ernesto considerar melhor ser servido, admite, porém, que todos trocam de papéis. É o que acontece na peça, na cena seguinte, em que o casal, através de portas separadas, se encontra. Em vez da mulher se explicar para o marido, Ernesto é quem o faz. Já chega com um “como vai, minha querida Eulália? Já sei que estás muito zangada comigo. Andei passeando hoje; fui ao Riacho, à rua... de...”. Sua precaução não o levou a nada, pois ela o recebeu com o seu habitual “Já sei, já sei onde o senhor foi; não precisa mais nada!”14 (Qorpo-Santo, 2001, p. 30). No início da peça Ernesto era o senhor da casa, mas depois, quem passa a mandar é a mulher.

Fica claro que, tanto no teatro como medida terapêutica, apresentado por Aguiar (1990, p. 17), quanto no texto de Qorpo-Santo, encontra-se uma espécie de traço comum:

O enredo aponta para conflitos existenciais, propondo para eles uma compreensão, através da denuncia dos responsáveis pelos malefícios, da exaltação dos heróis e dos virtuosos; defende alguma tese de sentido da vida e culmina com um reencontro reparador.

Parece pouco profícua essa discussão, mas ela surgiu diante da demanda de aproximar o texto de Qorpo-Santo a uma realidade psicoterapêutica, posto que sua dramaturgia, muitas vezes, parece um grande divã de um consultório de Psicanálise, que “defende o sentido da vida e culmina com um reencontro reparador”, bem nos moldes de uma sessão de psicoterapia, em que o paciente (leitor/espectador) anseia por essa reparação interior.

Quanto às idéias propagadas, observamos notas muito interessantes que versavam sobre a postura do profissional de imprensa. Indubitavelmente uma forma a mais de se dirigir aos que o criticavam. Temos, ainda, observações sobre o divórcio, criando alternativas nada ortodoxas, mas, de certa feita, adotadas pelo direito civil. Por fim, há de se considerar suas reflexões, em meados do século XIX, algumas vezes válidas, sobre a complicada ortografia vernácula.


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Fonte:
Carlos Augusto Nascimento Sarmento-Pantoja: “Ohares caleidoscópicos do teatro de Qorpo-Santo”. (Dissertação entregue ao Curso de Mestrado em Letras  -  Estudos  Literários,  da  Universidade Federal  do  Pará  –  UFPA,  como  pré-requisito parcial,  para  a  obtenção  do  Título  de  Mestre. Trabalho orientado pelo Professor Doutor Joel Cardoso). Belém – PA, 2006.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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