12/06/2014

Hoje sou um; e amanhã outro (Teatro), de Qorpo Santo

 Hoje sou um e amanhã outro, de Qorpo Santo
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Uma ovelha estranha a qualquer rebanho

Tendo em vista que o imaginário social está presente em toda manifestação da vida humana em sociedade, e que esse imaginário está em constate transformação, a proposta desta pesquisa é analisar o modo como o teatro de Qorpo-Santo se relaciona com o imaginário vigente no Rio Grande do Sul do século XIX, época em que sua obra foi escrita. Um dos caminhos para apreensão desse imaginário é investigá-lo a partir da literatura canônica produzida na época, que refletia o modelo romântico adotado no centro do país. Deve-se, portanto, identificar as características do imaginário romântico para perceber quais foram as reais contribuições de Qorpo-Santo para a manutenção ou a renovação desse imaginário social. Primeiramente, porém, é importante verificar como o Romantismo constituiu um imaginário que determinou o pensamento, as emoções e as ações do período histórico em que a obra qorpo-santense foi concebida.

O Romantismo surgiu na Europa como um estilo artístico de época, porém o termo também abarca em sua significação um modo de compreensão e de atuação perante a vida. Sua origem remonta ao século XVII na França e na Inglaterra, fazendo referência à criação poética ligada à tradição dos “romances” medievais – narrativas heróicas e amorosas que, por seus temas e estrutura, opunham-se aos padrões poéticos clássicos. No século seguinte, o termo passou a designar a literatura fantasiosa feita à imitação desses “romances”. O Romantismo, então, caracteriza a reação ao estilo neoclássico anterior e designa “o movimento estético, traduzido num estilo de vida e de arte, que dominou a civilização ocidental, durante o período compreendido entre a metade do século XVIII e a metade do século XIX”. É, assim, um conjunto de concepções artísticas e filosóficas, sentimentos, idéias, mitos e símbolos comuns a várias nações ocidentais naquele período histórico.

O movimento romântico tomou forma a partir da recusa das novas tendências surgidas no século XVIII aos ideais neoclássicos de regras e gêneros regulares. É o que se costuma chamar de período pré-romântico. Essas novas tendências dão maior relevância à imaginação, ao sentimento, à emoção e à sensibilidade, em oposição ao predomínio da razão que caracterizou o Neoclassicismo. O Pré-Romantismo manifesta-se contra o intelectualismo e o rigor das convenções estéticas clássicas. O que atrai a atenção é a natureza, a inspiração natural, de cunho popular e primitivo. A Inglaterra, nesse período, redescobre a poesia popular e Shakespeare; na Alemanha, ressurgem os contos medievais, as lendas germânicas e despontam as figuras de Herder e Goethe, os irmãos Schlegel e Klopstock; na França, a obra de Rousseau reúne e determina as principais tendências a serem definidas como próprias do Romantismo. Porém, o início do Romantismo propriamente pode ser situado entre 1797 e 1810, com a aparição da escola alemã, dos lakistas ingleses, de Walter Scott, Chateaubriand e Mme. de Staël.

O poeta dotado do espírito romântico cria a partir da imaginação. É com ela que ele inventa mundos imaginários no passado ou no futuro. É também através dela que o poeta torna-se um visionário, penetrando no mundo invisível, metafísico e transcendente, que está além do visível e do familiar, o que o leva ao afastamento do convívio social. Para Alfredo Bosi, isso se deve a uma falta de adaptação do escritor ao meio: “o eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à evasão. No tempo, recriando uma Idade Média gótica e embruxada. No espaço, fugindo para ermas paragens ou para o Oriente exótico.” A poesia, então, é uma forma de conhecimento da realidade metafísica através da imaginação, e o estilo poético é constituído principalmente de mitos e símbolos.

O estado de alma romântico é relativista, por oposição ao absolutismo dos clássicos. Se a atitude clássica estabeleceu o primado da razão e da contenção, a atitude romântica é exaltada, emocional. O romântico é afeito à natureza, ao regional e ao selvagem. Inspira-se na alma, no inconsciente, na emoção e na paixão. E a imaginação permite ao romântico criar lugares fantasiosos ou aproximar-se de lugares distantes. O Romantismo preza pela liberdade e pela fé e seu temperamento é melancólico e exaltado. Afrânio Coutinho, em conformidade com Hibbard, enumera as seguintes características do espírito romântico: individualismo e subjetivismo, ilogismo, senso do mistério, escapismo, reformismo, sonho, fé, culto da natureza, retorno ao passado, gosto pelo pitoresco e exagero.

Além dessas características que configuram o imaginário romântico, há outras que dizem respeito à forma e à estrutura de sua literatura. No Romantismo literário, não há regras e formas fixas. A estrutura e a forma das obras são ditadas pela inspiração individual do autor.

A própria noção de gêneros fixos, imutáveis, que caracterizam o Neoclassicismo, é abalada pela possibilidade de transformação ou desaparecimento de velhos gêneros. Porém, há o nascimento de gêneros novos, que caracterizam a época romântica.

No teatro, gênero de investigação desta pesquisa, é significativa nesse período a substituição da tragédia pelo drama, com estrutura e forma livres. O drama preza a unidade de ação ou de interesse em torno da personagem, em oposição à unidade de tempo e lugar, característica do teatro neoclássico. O drama romântico é de fundo histórico e compõe-se de numerosas personagens, que têm retratada a sua evolução através do tempo, o que impõe a ruptura das unidades, a fim de conceder maior margem de tempo e lugar para a ação. Esse drama tem a preocupação de representar os costumes, a “cor local” e, para isso, faz uso dos contrastes entre belo e feio, nobre e grotesco, como forma de aproximar-se da realidade. Também surge no teatro a possibilidade de misturar verso e prosa.No Brasil, o Romantismo é representativo de um ideal de afirmação da independência literária do novo país em relação a Portugal, valorizando o passado e as peculiaridades nacionais. Ele se enquadra, portanto, no sentimento nacionalista que acompanha o processo de independência do Brasil e que é constitutivo de primeira grandeza do imaginário social daquele momento. Ao lado dos aspectos literários que constituem o Romantismo brasileiro, estão, portanto, também os fatores sociais, como a ascensão da burguesia devido ao comércio e às atividades liberais, políticas e intelectuais e a crescente valorização do mestiço graças às cartas de branquidade que lhe davam o casamento, o enriquecimento e o talento literário ou político. No entanto, embora esses fatores fornecessem a justificativa para a adoção de um modelo literário europeu, a burguesia nacional ainda não tinha forças para impor-se politicamente, ao contrário da Europa. Para Nelson Werneck Sodré, enquanto o romantismo, em suas raízes européias, representa o triunfo burguês, o coroamento de suas conquistas, conseguidas através da aliança com as classes populares, aqui teria de condicionar-se, muito ao contrário, à aliança existente entre uma fraca burguesia e a classe dos proprietários territoriais.

Os burgueses, desse modo, copiavam os hábitos e costumes de uma classe territorial, e procuravam se identificar com ela. O Romantismo brasileiro é, pois, não a expressão da burguesia, mas da classe dos proprietários de terra, dos quais os burgueses adotavam o modo de vida. Dessa forma, o imaginário romântico, no Brasil, adquire uma expressão diferente da que havia na Europa.

O progresso, no momento imediatamente posterior à Independência, acontece em todos os sentidos, e o espírito romântico é manifestação e, em parte, criação do entusiasmo nacionalista que com ele aflora. Na literatura, ele é responsável pela invenção de emoções e motivos nacionais. Por isso, embora o Romantismo brasileiro ainda se alimente dos modelos portugueses, agora a literatura nacional busca a influência das literaturas francesa e inglesa como forma de rompimento em relação à antiga metrópole.

Entretanto, como foi dito anteriormente, o Romantismo não se traduz apenas como um modo de expressão artística, mas também como um modo de pensar e de agir comum a uma época. É o que se pode investigar através da teoria do imaginário social, que reconhece a existência de uma aura que ultrapassa a própria cultura e que determina os pensamentos, os sentimentos e as ações dos indivíduos de uma coletividade em determinada época. Os principais traços do imaginário romântico no Brasil são, portanto: a afirmação da individualidade do brasileiro e do sentimento nacionalista; o culto da inspiração, da improvisação e da espontaneidade como fontes de criatividade; o sentimentalismo e o sensibilismo; o caráter político, traduzido em ideais burgueses de liberdade, independência e democracia, influenciados pela Revolução Francesa; o mito da infância feliz e da inocência infantil; a crença no índio como origem da civilização brasileira, adequada à idéia do “bom selvagem” de Rousseau; o individualismo e a boemia; o negativismo e a melancolia; o pessimismo; a dúvida e a religiosidade; o realismo baseado nas verdades interiores (do coração e do espírito); a busca do pitoresco, segundo o princípio relativista de que a humanidade varia conforme o tempo e o lugar, levando à tipificação dos caracteres humanos; a valorização da cultura popular em oposição à erudita e à mitologia clássica, e o culto à natureza instaurando o valor estético da paisagem.

É necessário, agora, verificar como se expressaram esses traços do imaginário social na literatura sul-riograndense, a fim de especificar alguns elementos que servirão de base para o estudo do imaginário social no teatro de Qorpo-Santo.

No Rio Grande do Sul, na época do autor, o Romantismo era representado principalmente pela poesia veiculada pela revista O Guaíba (1856-1858), onde se destacaram os nomes de João Vespúcio de Abreu e Silva, Félix da Cunha, Rita Barém de Melo, Pedro Antônio de Miranda e João Capistrano Filho. Os poetas publicados n'O Guaíba prezavam pelo sentimentalismo, “dando lugar à contemplação, à melancolia, ao abandono e à tristeza”. Não tinham compromisso com aspectos tipicamente regionais da cultura gaúcha, mas eram individualistas, sensíveis e indiferentes às questões de nacionalidade que formavam o ideário romântico da geração de Gonçalves Dias no centro do país.

Porém, em 1868, dois anos depois da escritura das comédias de Qorpo-Santo, um fato de grande importância acontece na literatura sul-riograndense: a fundação da Sociedade Partenon Literário. Incorporando o estado de espírito romântico, esse grupo incluiria em sua proposta estética a representação regionalista do Rio Grande do Sul. Na época de fundação do Partenon, o movimento romântico já estava em decadência no centro do país, porém a feição que esse grupo dá ao Romantismo é inovadora devido à utilização de elementos regionais e à mitificação do peão de estância (em substituição ao índio de Gonçalves Dias). Assim, os poetas do Partenon serão responsáveis pela inclusão do vocabulário do gaúcho da campanha na poesia erudita e pela representação das tradições e costumes sul-riograndenses. Desse modo, esses poetas fixam o padrão romântico da literatura regionalista no Estado. Essa literatura cumprirá o papel de definir o sul-riograndense para si mesmo e para o resto do Brasil. Fazem parte desse grupo Caldre e Fião, Apolinário Porto Alegre, Carlos von Koseritz, Bernardo Taveira Júnior, Múcio Teixeira e Lobo da Costa, entre muitos outros.

O pano de fundo histórico do Rio Grande no ano de fundação do Partenon incluía a

Batalha do Humaitá, a Guerra do Paraguai, os prenúncios do manifesto republicano de 1870 e o crescimento da propaganda pela abolição da escravatura. O Partenon, em meio a tal inquietação, tinha também um caráter político-social, defendendo princípios republicanos e abolicionistas, procurando atrair as mulheres ao cultivo do espírito, incentivando a formação de bibliotecas, desenvolvendo a pesquisa bibliográfica sobre os homens de Letras do Rio Grande do Sul, registrando lendas e tradições locais, dando ênfase às comemorações cívicas como o Sete de Setembro.

É importante ressaltar que, embora a Sociedade Partenon Literário tenha sido fundada dois anos depois da escritura da obra dramática de Qorpo-Santo, grande parte do imaginário que se depreende de sua literatura já era parte do imaginário social da literatura sul-riograndense antes da fundação do grupo. Pode-se observar isso pelas características do gaúcho difundidas pela literatura oral (individualismo, nomadismo, liberdade, coragem, celebração da mulher e do cavalo etc.) e pelos ideais da Revolução Farroupilha, além da imaginação romântica, que já aparecera por meio da poesia do grupo da revista O Guaíba.

Portanto, não há impedimento em aceitar o imaginário que constitui a literatura do Partenon como representativo da época histórica pretendida, o que possibilita a inserção da Sociedade Partenon Literário neste estudo como importante elemento revelador do imaginário romântico da segunda metade do século XIX.

Considerando os fatos acima apresentados, o imaginário social representado na literatura sul-riograndense desse momento histórico, embora reflita em muitos aspectos o imaginário da literatura brasileira da época, apresenta alguns elementos que o distinguem. Há, sobretudo, o prestígio do guasca (descendente dos primeiros povoadores); o louvor à coragem e à lealdade como virtudes do gaúcho; o repúdio aos castelhanos da região do Prata (que correspondem aos bárbaros da visão romântica européia de resgate do medieval); a valorização da cultura, da história e dos heróis regionais; o gosto pela vida campestre; a afinidade com o pampa e com os animais (mormente com o cavalo); a generalização em torno dos habitantes do Rio Grande do Sul, vistos todos como portadores dos valores da região da Campanha; o mito da “democracia rural”, que determina que não há conflito social entre estancieiros e vaqueanos, pretos e brancos; a ideologia federalista e separatista que deu origem à Revolução Farroupilha.

Tomando como base essa perspectiva histórica, Qorpo-Santo passa a ser um estranho no rebanho da literatura sul-riograndense, pois suas comédias não assumem os ideais românticos de constituição da nacionalidade, nem o espírito individualista e sensível da poesia da época. Há uma distância ideológica entre o dramaturgo e seus contemporâneos. O objetivo de Qorpo-Santo não é a promoção das tradições, mas a representação, através de diversos gêneros literários, da sociedade urbana como ele a vê: repleta de vícios inspirados pela falta de moral. Para isso, são utilizados elementos próprios, diversos dos melodramas e das comédias de costumes que dominavam o teatro da época. É o que permite vislumbrar, em sua obra, uma representação de sociedade diversa da pretendida pelos escritores de inspiração romântica. Essa representação será analisada, neste trabalho, sob diversos aspectos, com ênfase no papel desempenhado pelas instituições família e religião, de modo que se tenha acesso a uma visão singular da sociedade sul-riograndense do século XIX.


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Fonte:
Douglas Ceccagno
: “Ovelhas merinas: malditas feras: O imaginário social no teatro de Qorpo-Santo”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras e Cultura Regional, com concentração na área de Literatura e Cultura Regional, pela Universidade de Caxias do Sul.Orientador: Prof. Dr. João Claudio Arendt). Caxias do Sul, 2006.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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