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Uma ovelha estranha a qualquer rebanho
Tendo em
vista que o imaginário social está presente em toda manifestação da vida humana
em sociedade, e que esse imaginário está em constate transformação, a proposta
desta pesquisa é analisar o modo como o teatro de Qorpo-Santo se relaciona com
o imaginário vigente no Rio Grande do Sul do século XIX, época em que sua obra
foi escrita. Um dos caminhos para apreensão desse imaginário é investigá-lo a partir
da literatura canônica produzida na época, que refletia o modelo romântico
adotado no centro do país. Deve-se, portanto, identificar as características do
imaginário romântico para perceber quais foram as reais contribuições de Qorpo-Santo para a manutenção ou a renovação
desse imaginário social. Primeiramente,
porém, é importante verificar como o Romantismo constituiu um imaginário que
determinou o pensamento, as emoções e as ações do período histórico em que a obra qorpo-santense foi concebida.
O
Romantismo surgiu na Europa como um estilo artístico de época, porém o termo também
abarca em sua significação um modo de compreensão e de atuação perante a vida. Sua
origem remonta ao século XVII na França e na Inglaterra, fazendo referência à
criação poética ligada à tradição dos “romances” medievais – narrativas
heróicas e amorosas que, por seus temas e estrutura, opunham-se aos padrões
poéticos clássicos. No século seguinte, o termo passou a designar a literatura fantasiosa
feita à imitação desses “romances”. O Romantismo, então, caracteriza a reação ao
estilo neoclássico anterior e designa “o movimento estético, traduzido num estilo
de vida e de arte, que dominou a civilização ocidental, durante o período
compreendido entre a metade do século XVIII e a metade do século XIX”. É, assim,
um conjunto de concepções artísticas e filosóficas, sentimentos, idéias, mitos
e símbolos comuns a várias nações ocidentais naquele período histórico.
O movimento
romântico tomou forma a partir da recusa das novas tendências surgidas no
século XVIII aos ideais neoclássicos de regras e gêneros regulares. É o que se
costuma chamar de período pré-romântico. Essas novas tendências dão maior
relevância à imaginação, ao sentimento, à emoção e à sensibilidade, em oposição
ao predomínio da razão que caracterizou o Neoclassicismo. O Pré-Romantismo
manifesta-se contra o intelectualismo e o rigor das convenções estéticas
clássicas. O que atrai a atenção é a natureza, a inspiração natural, de cunho popular
e primitivo. A Inglaterra, nesse período, redescobre a poesia popular e
Shakespeare; na Alemanha, ressurgem os contos medievais, as lendas germânicas e
despontam as figuras de Herder e Goethe, os irmãos Schlegel e Klopstock; na
França, a obra de Rousseau reúne e determina as principais tendências a serem
definidas como próprias do Romantismo. Porém,
o início do Romantismo propriamente pode ser situado entre 1797 e 1810, com a aparição da escola alemã, dos
lakistas ingleses, de Walter Scott, Chateaubriand e Mme. de Staël.
O poeta
dotado do espírito romântico cria a partir da imaginação. É com ela que ele inventa
mundos imaginários no passado ou no futuro. É também através dela que o poeta torna-se
um visionário, penetrando no mundo invisível, metafísico e transcendente, que
está além do visível e do familiar, o que o leva ao afastamento do convívio
social. Para Alfredo Bosi, isso se deve a uma falta
de adaptação do escritor ao meio: “o eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os
conflitos com a sociedade, lança-se à evasão. No tempo, recriando uma Idade
Média gótica e embruxada. No espaço, fugindo para ermas paragens ou para o Oriente exótico.” A poesia,
então, é uma forma de conhecimento da realidade metafísica através da imaginação, e o estilo poético é
constituído principalmente de mitos e símbolos.
O estado
de alma romântico é relativista, por oposição ao absolutismo dos clássicos. Se
a atitude clássica estabeleceu o primado da razão e da contenção, a atitude
romântica é exaltada, emocional. O romântico é afeito à natureza, ao regional e
ao selvagem. Inspira-se na alma, no inconsciente, na emoção e na paixão. E a
imaginação permite ao romântico criar lugares fantasiosos ou aproximar-se de
lugares distantes. O Romantismo preza pela liberdade e pela fé e seu
temperamento é melancólico e exaltado. Afrânio Coutinho, em conformidade com
Hibbard, enumera as seguintes características do espírito romântico:
individualismo e subjetivismo, ilogismo, senso do mistério, escapismo, reformismo,
sonho, fé, culto da natureza, retorno ao
passado, gosto pelo pitoresco e exagero.
Além
dessas características que configuram o imaginário romântico, há outras que dizem
respeito à forma e à estrutura de sua literatura. No Romantismo literário, não
há regras e formas fixas. A estrutura e a
forma das obras são ditadas pela inspiração individual do autor.
A própria
noção de gêneros fixos, imutáveis, que caracterizam o Neoclassicismo, é abalada
pela possibilidade de transformação ou desaparecimento de velhos gêneros. Porém,
há o nascimento de gêneros novos, que
caracterizam a época romântica.
No teatro,
gênero de investigação desta pesquisa, é significativa nesse período a substituição
da tragédia pelo drama, com estrutura e forma livres. O drama preza a unidade
de ação ou de interesse em torno da personagem, em oposição à unidade de tempo
e lugar, característica do teatro neoclássico. O drama romântico é de fundo
histórico e compõe-se de numerosas personagens, que têm retratada a sua
evolução através do tempo, o que impõe a ruptura das unidades, a fim de
conceder maior margem de tempo e lugar para a ação. Esse drama tem a
preocupação de representar os costumes, a “cor local” e, para isso, faz uso dos
contrastes entre belo e feio, nobre e grotesco, como forma de aproximar-se da
realidade. Também surge no teatro a
possibilidade de misturar verso e prosa.No Brasil, o Romantismo é representativo de um ideal de afirmação
da independência literária do
novo país em relação a Portugal, valorizando o passado e as peculiaridades nacionais. Ele se enquadra, portanto, no
sentimento nacionalista que acompanha o processo de independência do Brasil e que
é constitutivo de primeira grandeza do imaginário social daquele momento. Ao
lado dos aspectos literários que constituem o Romantismo brasileiro, estão,
portanto, também os fatores sociais, como a ascensão da burguesia devido ao
comércio e às atividades liberais, políticas e intelectuais e a crescente
valorização do mestiço graças às cartas de branquidade que lhe davam o
casamento, o enriquecimento e o talento literário ou político. No entanto,
embora esses fatores fornecessem a justificativa para a adoção de um modelo literário
europeu, a burguesia nacional ainda não tinha forças para impor-se politicamente, ao contrário da Europa. Para Nelson Werneck
Sodré, enquanto o romantismo,
em suas raízes européias, representa o triunfo burguês, o coroamento de suas conquistas, conseguidas através
da aliança com as classes populares,
aqui teria de condicionar-se, muito ao contrário, à aliança existente entre uma
fraca burguesia e a classe dos proprietários territoriais.
Os burgueses, desse modo,
copiavam os hábitos e costumes de uma classe territorial, e procuravam se identificar com ela. O
Romantismo brasileiro é, pois, não a expressão da burguesia, mas da classe dos
proprietários de terra, dos quais os burgueses adotavam o modo de vida. Dessa
forma, o imaginário romântico, no Brasil, adquire uma expressão diferente da que havia na Europa.
O progresso,
no momento imediatamente posterior à Independência, acontece em todos os
sentidos, e o espírito romântico é manifestação e, em parte, criação do
entusiasmo nacionalista que com ele aflora. Na literatura, ele é responsável
pela invenção de emoções e motivos nacionais. Por isso, embora o Romantismo
brasileiro ainda se alimente dos modelos portugueses, agora a literatura
nacional busca a influência das literaturas francesa e inglesa como forma de rompimento em relação à antiga metrópole.
Entretanto,
como foi dito anteriormente, o Romantismo não se traduz apenas como um modo de
expressão artística, mas também como um modo de pensar e de agir comum a uma época.
É o que se pode investigar através da teoria do imaginário social, que
reconhece a existência de uma aura que ultrapassa a própria cultura e que determina
os pensamentos, os sentimentos e as ações dos indivíduos de uma coletividade em
determinada época. Os principais traços do imaginário romântico no Brasil são, portanto:
a afirmação da individualidade do brasileiro e do sentimento nacionalista; o culto
da inspiração, da improvisação e da espontaneidade como fontes de criatividade;
o sentimentalismo e o sensibilismo; o caráter político, traduzido em ideais
burgueses de liberdade, independência e democracia, influenciados pela
Revolução Francesa; o mito da infância feliz e da inocência infantil; a crença
no índio como origem da civilização brasileira, adequada à idéia do “bom selvagem”
de Rousseau; o individualismo e a boemia; o negativismo e a melancolia; o pessimismo; a dúvida e a religiosidade; o realismo baseado nas
verdades interiores (do coração
e do espírito); a busca do pitoresco, segundo o princípio relativista de que a humanidade
varia conforme o tempo e o lugar, levando à tipificação dos caracteres humanos;
a valorização da cultura popular em oposição à erudita e à mitologia clássica,
e o culto à natureza instaurando o valor
estético da paisagem.
É
necessário, agora, verificar como se expressaram esses traços do imaginário
social na literatura sul-riograndense, a fim de especificar alguns elementos
que servirão de base para o estudo do
imaginário social no teatro de Qorpo-Santo.
No Rio Grande
do Sul, na época do autor, o Romantismo era representado principalmente pela
poesia veiculada pela revista O Guaíba (1856-1858), onde se destacaram os
nomes de João Vespúcio de Abreu e Silva, Félix da Cunha, Rita Barém de Melo,
Pedro Antônio de Miranda e João Capistrano Filho. Os poetas publicados n'O
Guaíba prezavam pelo sentimentalismo, “dando
lugar à contemplação, à melancolia, ao abandono e à tristeza”.
Não tinham compromisso com
aspectos tipicamente regionais da cultura gaúcha, mas eram individualistas,
sensíveis e indiferentes às questões de nacionalidade que formavam o ideário romântico da geração de Gonçalves Dias no centro do país.
Porém, em
1868, dois anos depois da escritura das comédias de Qorpo-Santo, um fato de grande
importância acontece na literatura sul-riograndense: a fundação da Sociedade Partenon
Literário. Incorporando o estado de espírito romântico, esse grupo incluiria em
sua proposta estética a representação regionalista do Rio Grande do Sul. Na
época de fundação do Partenon, o movimento romântico já estava em decadência no
centro do país, porém a feição que esse grupo dá ao Romantismo é inovadora
devido à utilização de elementos regionais e à mitificação do peão de estância
(em substituição ao índio de Gonçalves Dias). Assim, os poetas do Partenon
serão responsáveis pela inclusão do vocabulário do gaúcho da campanha na poesia
erudita e pela representação das tradições e costumes sul-riograndenses. Desse modo,
esses poetas fixam o padrão romântico da literatura regionalista no Estado. Essa
literatura cumprirá o papel de definir o sul-riograndense para si mesmo e para
o resto do Brasil. Fazem parte desse grupo Caldre e Fião, Apolinário Porto
Alegre, Carlos von Koseritz, Bernardo Taveira
Júnior, Múcio Teixeira e Lobo da Costa, entre muitos outros.
O pano de
fundo histórico do Rio Grande no ano de fundação do Partenon incluía a
Batalha do
Humaitá, a Guerra do Paraguai, os prenúncios do manifesto republicano de 1870 e
o crescimento da propaganda pela abolição da escravatura. O Partenon, em meio a
tal inquietação, tinha também um caráter político-social, defendendo princípios
republicanos e abolicionistas, procurando atrair as mulheres ao cultivo do
espírito, incentivando a formação de bibliotecas, desenvolvendo a pesquisa
bibliográfica sobre os homens de Letras do Rio Grande do Sul, registrando
lendas e tradições locais, dando ênfase às comemorações cívicas como o Sete de Setembro.
É
importante ressaltar que, embora a Sociedade Partenon Literário tenha sido
fundada dois anos depois da escritura da obra dramática de Qorpo-Santo, grande
parte do imaginário que se depreende de sua literatura
já era parte do imaginário social da literatura sul-riograndense antes da fundação do grupo. Pode-se
observar isso pelas características do gaúcho difundidas pela literatura oral (individualismo,
nomadismo, liberdade, coragem, celebração da
mulher e do cavalo etc.) e pelos ideais da
Revolução Farroupilha, além da imaginação romântica, que já aparecera por meio
da poesia do grupo da revista O Guaíba.
Portanto,
não há impedimento em aceitar o imaginário que constitui a literatura do
Partenon como representativo da época histórica pretendida, o que possibilita a
inserção da Sociedade Partenon Literário neste estudo como importante elemento
revelador do imaginário romântico da segunda
metade do século XIX.
Considerando
os fatos acima apresentados, o imaginário social representado na literatura
sul-riograndense desse momento histórico, embora reflita em muitos aspectos o imaginário da literatura brasileira da época, apresenta
alguns elementos que o distinguem. Há, sobretudo, o prestígio do guasca (descendente dos primeiros povoadores);
o louvor à coragem e à lealdade como virtudes do gaúcho; o repúdio aos
castelhanos da região do Prata (que correspondem aos bárbaros da visão romântica
européia de resgate do medieval); a valorização da cultura, da história e dos
heróis regionais; o gosto pela vida campestre; a afinidade com o pampa e com os
animais (mormente com o cavalo); a generalização em torno dos habitantes do Rio
Grande do Sul, vistos todos como portadores dos valores da região da Campanha;
o mito da “democracia rural”, que determina que não há conflito social entre estancieiros e vaqueanos, pretos e brancos;
a ideologia federalista e separatista que deu origem
à Revolução Farroupilha.
Tomando
como base essa perspectiva histórica, Qorpo-Santo passa a ser um estranho no rebanho
da literatura sul-riograndense, pois suas comédias não assumem os ideais românticos
de constituição da nacionalidade, nem o espírito individualista e sensível da poesia
da época. Há uma distância ideológica entre o dramaturgo e seus contemporâneos.
O objetivo de Qorpo-Santo não é a promoção das tradições, mas a representação,
através de diversos gêneros literários, da sociedade urbana como ele a vê:
repleta de vícios inspirados pela falta de moral. Para isso, são utilizados elementos
próprios, diversos dos melodramas e das comédias de costumes que dominavam o
teatro da época. É o que permite vislumbrar, em sua obra, uma representação de
sociedade diversa da pretendida pelos escritores de inspiração romântica. Essa representação
será analisada, neste trabalho, sob diversos aspectos, com ênfase no papel
desempenhado pelas instituições família e religião, de modo que se tenha acesso a uma visão singular da sociedade sul-riograndense
do século XIX.
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Fonte:
Douglas Ceccagno: “Ovelhas merinas: malditas feras: O imaginário social no teatro de Qorpo-Santo”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras e Cultura Regional, com concentração na área de Literatura e Cultura Regional, pela Universidade de Caxias do Sul.Orientador: Prof. Dr. João Claudio Arendt). Caxias do Sul, 2006.
Fonte:
Douglas Ceccagno: “Ovelhas merinas: malditas feras: O imaginário social no teatro de Qorpo-Santo”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras e Cultura Regional, com concentração na área de Literatura e Cultura Regional, pela Universidade de Caxias do Sul.Orientador: Prof. Dr. João Claudio Arendt). Caxias do Sul, 2006.
Notas:
A
imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências
bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na
citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no
referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura
da tese em sua totalidade.
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