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“A desejada das gentes”:
uma história da recusa
“Chame-lhe
mostro, se quer, mas acrescente divino”
No século XIX,
como vimos até aqui, a mulher continuava a ocupar uma posição subalterna na sociedade. Seu universo
restrito ao âmbito doméstico lhe proporcionava poucas opções de satisfação – fossem
sociais, sexuais ou mesmo sublimatórias. Seu objetivo primeiro era o casamento
e o final, a maternidade. Ou seja, pouco restava às mulheres, cujo destino, traçado por um discurso elaborado
por homens, não era necessariamente aceito de modo cândido. A possibilidade de um grito de revolta, em
alguns momentos, respaldou-se numa sintomatologia bem particular para ser ouvido,
trazendo à tona a insatisfação de mulheres reprimidas, represadas. A histeria
foi a expressão (possível) dessas mulheres “num período em que os ideais tradicionais
de feminilidade (ideais produzidos a partir das necessidades da nova ordem familiar burguesa) entravam em profundo
desacordo com as recentes
aspirações de algo mais”. Em Viena, ao se deparar com o sofrimento das mulheres
deslocadas, pelas injunções da
modernidade, de seu lugar no discurso tradicional sobre a feminilidade, Freud, ao iniciar sua clínica,
ouviu as histéricas, abrindo as portas da psicanálise. O esclarecimento da
etiologia da histeria é paralelo às principais descobertas da psicanálise: inconsciente, fantasia, recalque,
identificação, entre outras. Apesar de ser bem circunscrita pela cultura, a histeria
não se conteve no mundo europeu; no Brasil, Machado, cujo olhar arguto o levou a perceber
detalhes de funcionamento da sociedade carioca do final do século XIX, chamou a
atenção, nas entrelinhas de seu discurso, para as necessidades e direitos da vida
afetivo-sexual de suas leitoras. Desse modo, as “idéias fora do lugar” percebidas
por Machado se estendem também a um certo desgaste entre os anseios das mulheres
e o permitido pela sociedade. Daí a histeria ter sido uma solução de
compromisso, por parte das mulheres, entre antigas posições, modalidades já
estabelecidas do gozo feminino e novos anseios
que traziam consigo angústias típicas do retorno do recalcado.
Tudo isso
parecer ser o resultado do fato de o século XIX ter-se revestido de um certo puritanismo
em relação às mulheres. Por constituir o Outro de um discurso que tentava encaixá-las
em um molde repressor, a mulher foi vista e entendida como um ser da natureza, que
necessitava ser dominada. O desejo irrepresável da mulher levou os homens a
verem o sexo feminino como um “continente negro”, evocado pelo próprio Freud, como
algo incompreensível, misterioso, assustador.
Ainda,
talvez pelo grito de socorro ecoar nos mais diversos ambientes, o século XIX debruçou-se
sobre as questões do feminino, sendo um período rico em personagens femininos,
apesar de serem retratados por homens. Machado também, em diversos contos, corrobora a visão de sua época sobre as mulheres
na fala de seus narradores. As mulheres nunca aparecem nos contos de Machado como
portadoras de voz: são fruto de um olhar masculino, encarnando o papel que lhes cabe numa sociedade
patriarcal, ou seja, são reflexo de olhar do
outro, sendo esse outro um homem.
Quintília é
o foco da conversa entre dois homens, protagonizando o papel que lhe confere o título
do conto: ela é a “desejada das gentes”. O título também nos indica que a mulher é objeto não só das conversas mas também da libido
dos homens. Mais ainda, o verbo desejar, colocado na sua forma de particípio, não só adjetiva a
mulher mas também lhe dá um caráter
de passividade frente à situação que se abre no decorrer do conto – o que será um
engano, pois Quintília,
apesar de toda a patologia é quem comanda a ação dos homens que a cercam: é objeto,
indubitavelmente; mas também atua como sujeito. A passividade está presente em sua
incapacidade de reconhecer seu próprio desejo, enclausurando-a numa sintomatologia
que lhe engessará toda a possibilidade de realização como mulher. Quintília é uma
personagem que movimenta também pulsões de morte à sua volta. Talvez
reaproveitando o título deste conto e
inspirado pelas características da protagonista, Manuel Bandeira, utiliza-o mas num sentido inverso: “A indesejada
das gentes”. Ao analisar esse poema de Bandeira, Davi Arrigucci Jr. indica a origem da expressão: “A fórmula batida
é ‘o desejado das gentes’,
registrada por Moraes, em sua acepção corrente para designar Cristo. Na Bíblia se
acha também a expressão “desejado das nações”, para o Messias, assim chamado em
várias passagens (do Deuteronômio, dos Salmos e de Isaías).
Machado desloca a expressão que indica “o
salvador” para uma figura feminina, que insiste em resguardar sua virgindade.
A história é narrada em flashback
por um protagonista-narrador, que nos é apresentado como “conselheiro”, a um outro homem,
provavelmente um conhecido seu. Muitos anos já se passaram desde a época do
narrado, conforme indicam os cabelos grisalhos do narrador, cuja história se
confunde com a moça, pois fora ele um de seus apaixonados e sua narrativa será fruto
de suas lembranças particulares, nas quais se misturam a imaginação do poeta e
o desejo do homem: “Todas essas caras que aí passam são outras, mas falam-me
daquele tempo, como se fossem as mesmas de
outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto”. A história se confunde com ficção; quem narra conta o
que viu, viveu, o que testemunhou e também o que imaginou, o que desejou.
Portanto, o narrador já indicia, logo de início que o leitor deve ser prudente
em sua leitura, pois as palavras que lê são fruto da imaginação: a matéria
narrada esta revestida de um sentido
imaginário que, na verdade, faz parte da vida.
A história
contada pelo conselheiro será a de sua paixão por Quintília e as peculiaridades
desse relacionamento. Mulher bela, rica e elegante, Quintília pertencia à “primeira
roda” da sociedade fluminense, sendo uma exceção desde sua apresentação, pois não
só não aparentava a idade que tinha mas também fazia questão de alardear isso, contrariando o desejo de toda moça ser conhecida
como mais nova do que realmente era: “Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava
essa idade. Ela própria confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de
suas amigas afirmava que Quintília não passava dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia,
dizia isso para diminuir-se a
si própria”. Era alta e magra e, ao contrário de heroínas românticas, não aparentava
trazer nenhum segredo: “tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar
de noturnos, sem mistérios nem abismos”. O mistério que move a narrativa reside no celibato da moça que era
motivo de especulações das mais
diversas por parte dos membros da sociedade da época. Quintília vai contra a ordem
vigente, pois se o objetivo de toda moça deveria ser casar-se e ser mãe e não permanecer
solteira, como compreender o
desperdício de pretendentes de sua parte: “e todos pasmavam do celibato da moça
que lhes parecia sem explicação”. Machado, como dissemos anteriormente,
escrevia para e sobre mulheres. Portanto, boa parte de seus contos publicados em revistas
femininas, ou mesmo em jornais da época, gira em torno do tema do casamento.
Se o casamento
é, sobretudo no século XIX, um objetivo a ser almejado pelas mulheres, permanecer solteira implicava um desprestígio e a entrega
definitiva dos sonhos de status e vantagens sociais: casar-se representava
uma função fundamental na vida da mulher, sobretudo a da elite. Se uma moça
ficasse solteira lhe restariam poucas opções: viver solitária, caso tivesse dinheiro suficiente para se manter;
o desmerecido trabalho no magistério, ou mesmo, para classes mais baixas, o trabalho
de costura. Mais ainda, o casamento oferecia uma
real – e única, para a mulher – possibilidade de ascensão social.
Um lugar comum nos contos, e
na obra de Machado como um todo, é a quase impossibilidade de coadunar amor e interesse
nas relações de matrimônio. As mulheres machadianas dão preferência para o status
social, pois, assim como os homens retratados, elas também têm junto ao seu desejo uma ambição
marcada. Vemos, assim, que o percurso do desejo
na ambição feminina passará, necessariamente, pelo relacionamento das mulheres
com os homens. No entanto, trata-se do Brasil oitocentista e, portanto, de
relações marcadamente patriarcais,
restando pouquíssimas opções para as mulheres, restringidas por imposições sociais, mais fortes do que um discurso que as cerceava: o
discurso natural.
No entanto,
o conto vai além do simples tema do casamento, que não parece ser o objetivo principal da protagonista da história, elencando
inúmeras razões pelas quais alguém poderia protelar tal “anseio de toda moça”. A
heroína já goza de uma posição social privilegiada, não vendo o casamento como
um degrau possível de ascensão social. Por outro lado, Quintília representa a mulher
de difícil conquista, uma “fortaleza inexpugnável”, suscitando inclusive uma aposta
entre o narrador e um amigo, um tal Nóbrega: ambos queriam saber quem conseguiria romper o
celibato da moça e subjugá-la: “Pois lembrou-me uma coisa: vamos tentar o
assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe na rua, e já
podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o amigo
feliz”. De algum modo, a aposta revela as disputas narcísicas possíveis de
ocorrer entre homens, tão comuns na vida e na literatura. Os homens nas suas disputas
pelos objetos sexuais disponíveis, sempre encontram maneiras para pavonearem–se
uns diante dos outros: “Combatamos
pela nossa Quintília, minha ou tua, provavelmente minha porque sou mais bonito que tu”. O que começou como simples
brincadeira, tomou outras proporções e ambos acabaram se apaixonando pela moça:
“Não tínhamos contado com ela, que nos enfeitiçou a ambos, violentamente”. Por
fim, a amizade entre os dois acabou-se de vez, sobretudo quando Nóbrega recebeu
uma negativa de Quintília: “daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela
lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou
uma nomeação de juiz municipal
lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio”. Assim, Nóbrega, como
tantos outros pretendentes, ao se deparar com as negativas da moça, afastou-se,
mas o narrador, apresentando uma incomum persistência, permanece ao lado da moça, tentando conquistá-la.
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Fonte:
Marta Cavalcante de Barros:
“Espirais do desejo: Uma visão da mulher nos contos de Machado de Assis”. (Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, do Departamento
de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de são Paulo, para obtenção do título de
Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Adélia Bezerra de Meneses). São
Paulo, 2002. Disponível em: www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br
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