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Teatro, subversão e
transformação: O jogo alusivo em Gil Vicente
Uma pergunta nos pode
ajudar de saída: o que, ainda hoje, nos causa interesse na produção vicentina?
Não estaríamos errando ao afirmar que a obra de Gil Vicente busca proporcionar
ao espectador/leitor uma pintura dos sentimentos, bons ou ruins, e dos estados interiores
e exteriores dos homens (inclusive os do próprio autor) a partir das matrizes culturais
que caracterizam o povo ibérico, na virada do século e das mentalidades. Esta atitude
resulta primeiro num trabalho etnográfico – está claro o maravilhoso desfile de particularidades dialetais,
vestuário característico, crendices, costumes,... – e depois num trabalho psicológico,
já que o autor, unicamente pela linguagem, consegue dar vida a tipos que
expressam sentimentos particulares. Tudo isso com uma flagrante naturalidade capaz
de evocar uma atmosfera lírica na mais despretensiosa experiência de leitura. Lemos Gil Vicente na certeza de que lemos um Poeta tão completo
que consegue criar uma relação de continuidade e contiguidade entre a poesia
e o teatro, em lugar de simplesmente sobrepô-los.
É por isso, aliás, que os sequazes da chamada Escola Vicentina
não tiveram o mesmo êxito que o Mestre justamente por não cultivarem o veio
lírico em seus versos, preocupados exclusivamente com a ação dramática. Essa ausência
de lirismo talvez tenha levado o gênero a um considerável declínio depois da
morte de Gil Vicente, já que parece notória a modificação do discurso que se
fazia sobre a arte dramática no século XVII. D. Francisco Manuel de Melo, com
sua Farsa do Fidalgo Aprendiz,
talvez tenha sido o melhor testemunho da manutenção do teatro em língua
portuguesa, embora bastante afastado do domínio técnico observado na produção vicentina.
Sequer nas composições de Anrique da Mota, que ganhou relevo no Cancioneiro Geral, podemos enxergar o notável
caráter lírico observado em Gil Vicente.
Contudo, o lirismo vicentino, ainda que seja uma vertente
que venha atraindo atenção especializada nas últimas décadas, se mantém como um
assunto modestamente tratado pela crítica. Stephen Reckert já havia posto o
problema nos seguintes termos:
Que Gil Vicente é o maior poeta dramático
português de todos os tempos, e que no dele (1465/ 70? - 1536/ 40) era também o
maior que até lá surgira na Europa pós-clássica, é ponto
assente. Menos geralmente reconhecido é o fato de se tratar também de um poeta lírico sem igual na própria língua entre el-rei
D. Dinis e Camões, ou na castelhana antes de Garcilaso de la Vega.
A maioria dos estudos sobre o lirismo
vicentino fundamenta-se numa perspectiva de base folclórica, como se verá, quer
no sentido de orientar a produção de Gil Vicente como um espaço dramático-operativo
de possível recuperação do repertório popular, quer considerando o caráter refundidor
e, portanto, autoral, de nosso dramaturgo. Em outras palavras, levando em conta
uma prática de alusão a textos/contextos presentes nos cancioneiros ibéricos e sua
utilização no plano do teatro. Sem dúvida este lirismo está presente de modo vigoroso
em nosso autor, mas não é no mero jogo alusivo que reside o interesse desta investigação. Afinal,
ao reportar-se às estruturas poéticas medievais, imitando-as, Gil Vicente se aproxima
de uma realização lírico-dramática já conhecida na Península Ibérica, especialmente
verificada na produção pastoril de Juan del Encina, ao passo que – observado por seu caráter
transformador desses modelos aludidos – nosso dramaturgo inaugura uma nova
função operativa da palavra poética no campo da manifestação cênica. Não é, portanto,
apenas o Pai do teatro português, mas o patrono ibérico que verdadeiramente
transformou, num ato inaugural, a proposição lírica em teatro, utilizando, para
isso, o jogo alusivo. Opera-se uma dupla subversão: a primeira está ligada à própria
essência do lirismo, sua imitação e transformação, seu afastamento dos ditames teóricos,
e a outra, de nível mais profundo e original, associa, por contiguidade, Gênero
Lírico e Dramático.
Há ainda uma possibilidade de ler os textos de Gil Vicente
em busca do lirismo que marca nitidamente alguns autos, sobretudo as comédias e
tragicomédias (tendo em vista que este trabalho
investiga a lírica amoros a) e que está desvinculado das imediatas
categorias de base modal verificadas na tradição, indicando, pois, um processo alusivo
mais complexo aos nossos olhos atuais, já afastados do tempo e da
referencialidade de que se vestiam os versos do autor.
Para pensarmos, portanto, algumas questões ligadas à lírica
vicentina, comecemos pelo verso
“Pois Amor o quis assi”, onde o sentimento amoroso, poderoso
em sua maiúscula forma, toma a frente do sujeito e organiza (ou desorganiza) as venturas do homem. Poderia ser, claramente, uma linha
camoniana, pois a atitude de servidão aos ditames do Amor nos faz lembrar
a redondilha onde, em forma de carta, Camões se dirige à dama:
E quereis ver a que fim
em mim tanto bem se pôs?
Porque quis Amor assim.
Trata-se, contudo, de um verso dos agravos de Colopêndio
na Tragicomédia Romagem dos Agravados. Tudo
indica, aliás, que Camões era um grande conhecedor das obras vicentinas,
desenvolvendo ao gosto cortesanesco (ora pela métrica
velha, ora pela medida nova) as suas lições, como mostramos em outro momento,
especificamente sobre seu teatro. Também na Lírica Camoniana podemos encontrar
um eco do lírico Gil Vicente, e o exemplo é do mesmo auto.
Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acórdo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me
mostro, m‟escondo;
quando espero, desconfio.
Não seria este poema de Gil Vicente o texto que, fértil em
seus paradoxos, ajudou a lapidar o engenho camoniano? Afinal, anos mais tarde, Camões
mostraria sua mais alta
expressão em textos como “Amor fogo que
arde sem se ver” (de semelhante aproveitamento dos paradoxos ao
utilizar um verso partido em duas idéias contraditórias), ou em “Tanto de meu estado me acho incerto”
onde, aliás, encontramos um jogo alusivo bastante notório (o último verso
acima citado parece estar na origem do camoniano “Agora espero, agora
desconfio”, embora tenhamos
em mente as lições de Petrarca, Boscán, Sanazarro e Groto). O que observamos, contudo,
é que tanto Gil Vicente quanto Camões encontraram em Boscán as linhas bem talhadas para a realização da imitatio, como
já apontara Visconde de Juromenha, ao comentar o estudo de Faria e Souza,
indicando o verso “Caygo y
levanto; espero e desconfio”, do poeta espanhol, como aquele que teria
provocado a imitação camoniana.
O que não dizer da cativa que torna o homem cativo, tópica
recorrente e amplamente utilizada pelos poetas palacianos,
também empregada no texto vicentino? Diz o Escudeiro na Farsa do Juiz da
Beira:
eu andava namorado
de hũa moça pretezinha,
muito galante mourinha
um ferretinho delgado.
ó, quanta graça que tinha!
Então amores de moura,
ja sabeis o fogo vivo,
el a cativa eu cativo:
ora que má morte moura
Como podemos perceber, a obra vicentina realizou densos mergulhos
na temática amorosa e, neste sentido, contribuiu vivamente para a compreensão
das várias concepções de amor em voga. Está lá o sentimento cortês, de matriz idealizante, ainda que enviesado pelo caráter satírico, como na fala
insincera dos Escudeiros (e a citação acima não é o único exemplo) ou nos
pronunciamentos dos velhos, completamente destituídos da ordem da Razão, como
veremos no capítulo seguinte.
Este lirismo amoroso, que tem inspirado parte dos estudos
vicentinos nos últimos anos, recebeu, contudo, variada
abordagem crítica; algumas vezes os estudiosos passearam com competência por um
primeiro nível de leitura no que concerne ao aspecto lírico de Gil Vicente, noutras,
em menor quantidade, realizaram um mergulho mais profundo. Se são muitos os
matizes da crítica, muitos mais são os do texto vicentino. Agostinho de Campos
reflete com lucidez sobre o lirismo do autor, deixando claro a algumas
correntes teóricas que os autos de Gil Vicente estão amalgamados a uma atitude
poética para além das teorizações:
Chame-se a esse poder literário excepcional o que se
queira: lirismo dramático, poesia dramática. Eu direi apenas: essa transfusão
íntima e profunda, realista e efusiva, complicada e espontânea, artística e sincera,
do sujeito ao objecto, esse dom de ficarmos nós próprios através dos outros, ou
de sermos os outros através de nós mesmos – só pode explicar-se por um doseamento raro, e para nós portugueses
quási inconcebível, do poder de observação com faculdades de emoção lidimamente
líricas.
Consideramos enormemente a sensibilidade com que
Agostinho de Campos define a questão, fruto de uma refinada leitura do nosso
autor. É consensual, neste sentido, que o olhar sensível não exclui a
possibilidade de teorização sobre o texto. Por isso, buscaremos a “transfusão ìntima e profunda, realista
e efusiva, complicada e espontânea” que caracteriza a lìrica amorosa de Gil Vicente,
realizando algumas opções teóricas que merecem ser
explicadas logo no início deste trabalho.
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Fonte:
Luiz Fernando de Moraes Barros: “E amor não tem saída: A velhice enamorada à luz de Gil Vicente”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos quesitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientador: Profa. Dra. Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro, 2009.
Fonte:
Luiz Fernando de Moraes Barros: “E amor não tem saída: A velhice enamorada à luz de Gil Vicente”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos quesitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientador: Profa. Dra. Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro, 2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível digitalmente em: www.letras.ufrj.br
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível digitalmente em: www.letras.ufrj.br
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