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Gil Vicente: Os personagens
masculinos e a denúncia social
Como o gênero farsesco “situa-se
fora da ordem e da harmonia” e também é “a imagem do mundo às avessas”
(TEYSSIER, 1982: 169), as ações que fazem parte de sua trama podem ser as mais
imorais possíveis. É dentro desse contexto que no Auto da Índia a esposa
atraiçoa o marido que embarcou em uma armada rumo à Índia e na Farsa de Inês
Pereira a personagem homônima comporta-se de modo semelhante com o marido “asno”
que é Pêro Marques. No seio de uma sociedade “em que o homem em geral e o
marido em particular é um poder dominante, um marido escarnecido é como um rei
destronado” (TEYSSIER, 1982: 170). As personagens Constança e Inês (infiéis com
maestria) invadem o espaço do
poder, destronam seus maridos, que são “símbolo[s] do Poder na instituição do casamento” (RIBEIRO, 1984: 73), e assumem cenicamente o
papel de protagonistas. Embora saibamos que nos autos em estudo Gil Vicente
destine os principais papéis a figuras femininas, isso não significa dizer que
os personagens masculinos estejam relegados a um lugar de não-destaque nas
histórias que são narradas. É bem verdade que os homens aparecem em maior número
que as mulheres, tanto no Auto da Índia como na Farsa de Inês Pereira.
Aquela conta com a presença do Marido, do castelhano Juan de Zamora e de Lemos,
enquanto figuras femininas só há a de Constança e a da Moça. Na última farsa,
temos, com maior número de falas, Pêro Marques, o escudeiro Brás da Mata, o
Moço e o Ermitão; com menor
número de falas, Latão e Vidal, enquanto figuras femininas há Inês, sua
mãe, a alcoviteira Lianor Vaz e Luzia.
Ainda que não
protagonistas, os personagens masculinos são majoritários e, sem eles, a
temática principal, ou seja, a do adultério feminino, não poderia estar
estampada no texto de ambos os autos. Porque, como é óbvio, para que Inês e
Constança possam materializar suas relações extraconjugais, é necessário que,
além de marido, cada uma tenha um amante. As duas só fazem aumentar o rol dos
varões que fazem parte da trama: a primeira porque, além do marido, não se
contenta em ter apenas um amante, possui dois; a segunda porque, após ser “salva”
do primeiro casamento, desposa pela segunda vez, quando comete o adultério. Conforme
veremos a partir de agora, mais que tornar viável o desenrolar da temática da infidelidade
conjugal, os personagens masculinos, quando em cena, possibilitam que o autor ressalte
os caracteres das protagonistas e que denuncie, principalmente, a falsa
vassalagem amorosa, o culto das aparências e aspectos negativos das viagens
ultramarinas.
No Auto da Índia, o
primeiro personagem masculino a ganhar voz é Castelhano, única figura da peça
que não utiliza o português como idioma. Aproveitando-se do estado de solidão da
Ama, procura conquistá-la dizendo-se apaixonado. André Capelão adverte que “a
mulher deve (...) tomar cuidado para não cair nas ciladas de um amante pérfido;
[pois] muitos deles não procuram ser amados” (CAPELÃO, 2000: 225). Esta
advertência cabe perfeitamente no que tange ao amante de Castela: já em sua
primeira aparição, podemos perceber que seu discurso amoroso está repleto de
clichês e de frases que são lugares-comuns na linguagem galante da época:
Ama – Bem,
que vinda foi ora esta?
Castelhano
– Vengo aqui en busca mia,
que me
perdi en aquel dia
que os vi
hermosa y honesta
y nunca
más me topé.
Invisible
me torné,
y de mi
crudo enemigo;
el cielo,
empero, es testigo
que de mi
parte no sé.
Y ando un
cuerpo sin alma,
un papel
que lleva el viento
un pozo de
pensamiento,
una
fortuna sin calma.
Pese al
dia en que nasci;
vos y Diós
sois contra mi,
y nunca
topo el diablo (VICENTE, 1975: 32).
No momento em que Constança
informa ao Castelhano que seu esposo havia partido para a Índia, ele critica a
postura do marido:
Castelhano
– Al diablo que lo doy
el
desestrado perdido.
Que mas
India que vos,
que mas
piedras preciosas,
que mas
alindadas cosas,
qué
estardes juntos los dos?
No fue él
Juan de Zamora.
Que
arrastrado muera yo,
Si, por
cuanto Dios crió
os dexara
media hora (VICENTE, 1975: 33-34).
Se levarmos em consideração
a regra número III do Tratado do amor cortês, onde é afirmado que não se
deve “destruir o amor de uma mulher que esteja (...) unida a outro” (CAPELÃO,
2000: 98), fica ainda mais nítido que Juan de Zamora não é um amador tipicamente
cortês, pois ele era consciente de que Constança era casada, mas ainda assim busca
com ela envolver-se.
O personagem utiliza
evidentes táticas a fim de impressionar Constança: pinta o retrato desfavorável
de seu marido, ao mesmo tempo em que procura demonstrar ser um homem sensível,
que preza menos as riquezas mundanas que a relação com a dama. É nesse intuito
que continua lançando mão de sua fala hiperbólica, carregada de figuras de
retórica, extremamente estereotipada e carente de conteúdo:
Castelhano
– Y aunque la mar se humillara
y la
tormenta cesara,
y el
viento me obedeciera
y el
cuarto cielo se abriera,
un momento
no os dexara (VICENTE, 1975: 34).
O primeiro amante da Ama
chega ao extremo de considerar a descoberta da Índia como uma graça divina que
permitiu que os dois realizassem o encontro amoroso:
Castelhano
– Mas como Evangelio es esto
que la
India hizo Dios,
solo
porque yo con vos
pudiese
passar aquesto.
Y solo por
dicha mia,
por gozar
esta alegria,
la hizo
Dios descobrir:
y no ha
mas que decir,
por la
sagrada María! (VICENTE, 1975: 34).
Castelhano
é um homem de muitas promessas, de muitas palavras, mas de poucas ações. É o típico “falso cavaleiro”, que busca,
picarescamente, obter vantagens de qualquer natureza. Entretanto, a Moça parece
não se deixar enganar por esse discurso eloqüente, ao contrário da patroa.
Constança, assim como Castelhano, também é uma amante traiçoeira, mas,
paradoxalmente, é ingênua, uma vez que se deixa enganar pela figura dele:
Moça –
Jesu! Como é rebolão!
Dai, dai ó
demo o ladrão.
Ama –
Muito bem me parece ele.
Moça – Não
vos fieis vós naquele,
porque
aquilo é refião (VICENTE, 1975: 34).
Juan de Zamora é um
personagem que, por representar um dos pretendentes de Constança (mulher casada
e abandonada), tem importância como elemento caracterizador da mesma, a qual,
com falsidade, manha e jogo duplo, acaba por vencer as fanfarronices de seu amante.
Com essa figura, Gil Vicente consegue satirizar os homens cuja fala enganadora certamente
acabava quando seduzida a mulher.
Segundo homem a figurar no Auto da Índia, Lemos tem
sua presença na farsa prenunciada pelo diálogo entre Ama e sua criada:
Ama – Um
Lemos andava aqui
meu
namorado perdido.
Moça –
Quem? O rascão do sombreiro?
Ama – Mas
antes era escudeiro.
Moça –
Seria, mas bem safado;
não
suspirava o coitado
senão por
algum dinheiro.
Ama – Não
é ele homem dess’arte.
Moça –
Pois inda ele não esquece?
Há muito
que não parece.
Ama –
Quant' eu não sei dele parte.
Moça –
Como ele souber à fé,
que nosso
amo aqui não é,
Lemos vos
visitará.
Lemos –
Hou da casa! (VICENTE, 1975: 37-38).
Lemos está ao serviço da
caracterização da Ama, visto ser o exemplo concreto, tal como o Castelhano, do
seu adultério. Personagem já conhecido das duas mulheres é, no entender da
Moça, um desgraçado, um miserável sem dinheiro e explorador de mulheres. Lemos
entra em cena exaltando sua amante, denominado-a sua “imperadora”:
Ama – Suba
quem é.
Lemos –
Vosso cativo, senhora.
Ama –
Jesu! Tamanha mesura!
Sou rainha
porventura?
Lemos –
Mas sois minha imperadora (VICENTE, 1965: 38).
Na verdade, representa um
tipo de homem rude, singelo e direto em seus comentários, o que o diferencia do
Castelhano:
Ama – Que
foi do vosso passear,
com luar e
sem luar,
toda a
noite nesta rua?
Lemos –
Achei-vos sempre tão crua,
que vos
não pude aturar (VICENTE, 1965: 38).
O segundo amante de
Constança simboliza o caso típico do escudeiro pobre, mas pretensioso, que
tenta valer-se das suas palavras e estatuto aparente para encobrir a precariedade
da sua vida social e financeira. Isso fica claro na cena em que o personagem, pretendendo
cear, solicita à Moça que vá a ribeira comprar alguns produtos. Porém, quando esta
sugere a compra de determinados alimentos, de luxo à época, ele opõe-se:
apresenta defeitos para as ostras e para a carne de cabrito, propondo em
alternativa que adquira outros mais baratos. Além de solicitar a compra de
itens mais “modestos”, entrega à criada muito pouco dinheiro. Se com o
personagem Lemos, cuja participação no auto é relativamente curta, Gil Vicente,
modestamente, imprime uma crítica ao culto das aparências, na Farsa de Inês
Pereira a figura do escudeiro sem posses voltará a surgir (na pele de
Brás da Mata) concomitante à sátira do autor, agora mais aguda.
Como observa Maria Leonor
García da Cruz, “é Brás da Mata, indivíduo sem meios que pretende pelo
casamento adquirir bens e que, à semelhança dos outros escudeiros, de tudo
escarnece, dando-se ares de ser alguém” (CRUZ, 1990: 133). No seu discurso,
logo fica explícito o desprezo e os preconceitos que nutre em relação às moças
da vila. Quando
toma conhecimento de que conta com uma pretendente em potencial, fala a seu
moço:
Brás da
Mata – Moça de vila será ela
com
sinalzinho postiço,
e sarnosa
no toutiço
como burra
de Castela (VICENTE, 1975: 105).
Contudo, é com uma moça
dessas que pretende se casar, desde que de algum modo dela possa tirar
proveito. Para que seu casamento se concretize, solicita a cumplicidade de seu
criado Fernando, recomendando-lhe inúmeros cuidados para que não o desmascare quando
se fizer de homem “rico” diante de Inês:
Brás da
Mata – E se me vires mentir,
gabando-me
de privado,
está tu
dissimulado,
ou sai-te
lá fora a rir:
isto te
aviso daqui,
faze-o por
amor de mi (VICENTE, 1975: 106).
Em verdade, não é homem
abastado, não possui dinheiro nem ao menos para comprar sapatos ao Moço:
Moço –
Porém, senhor, digo eu
que mau
calçado é o meu
para estas
vistas assi.
Escudeiro –
Que farei, que o sapateiro
não tem
solas, nem tem pele?
Moço –
Sapatos me daria ele
se me vós
désseis dinheiro.
Escudeiro –
Eu o haverei agora;
e mais,
calças te prometo.
Moço –
(Homem que não tem nem preto
casa muito
na má-hora!) (VICENTE, 1975: 107).
É miserável ao ponto de o
seu criado dormir no chão, sem manta e cheio de fome:
Escudeiro –
Não dormes tu que te farte?
Moço – No
chão... E o telhado por manta;
e
cerra-se-m’a garganta
com
fome... (VICENTE, 1975: 109-110).
Gaba-se, entretanto, de ser
comprador e escudeiro de um
marechal, saber ler e escrever
e tanger viola (ainda que emprestada, segundo afirma o Moço). Impressiona Inês
de imediato, pois seu discurso é galante e
habilmente utilizado para conquistá-la, assim como posteriormente o faz o
Ermitão no mesmo auto, e Castelhano e Lemos para com a protagonista do Auto
da Índia. Curioso é o fato de que tanto a má impressão deixada por Pêro Marques
quanto o deslumbramento inspirado por Brás da Mata serem decorrentes de seus discursos.
Com um tom que remonta aos cantares de amor, o escudeiro encanta a moça:
Escudeiro –
Antes que mais diga agora,
Deus vos
salve, fresca rosa,
e vos dê
por minha esposa,
por mulher
e por senhora.
Que bem
vejo
nesse ar,
nesse despejo,
mui
graciosa donzela,
que vós sois,
minha alma, aquela
que eu
busco e que desejo.
Obrou bem
a Natureza
em vos dar
tal condição
que amais
a discrição
muito mais
que a riqueza (VICENTE, 1975: 107).
Depois de casado, Brás
revela seu verdadeiro caráter, mostrando seu lado tirânico com Inês,
enclausurando-a em casa, “castrando-a” ao não lhe consentir exprimir opiniões
ou distrair-se. Isso corrobora a idéia desenvolvida por André Capelão em seu Tratado,
segundo a qual alguns amantes
antes de receberem da mulher o fruto de
seus esforços, parecem usar boa-fé nas promessas que fazem com
ternas palavras (...), mas uma vez obtida a paga por suas fadigas, viram
casaca; a duplicidade que têm no coração, antes dissimulada, começa a aparecer,
e a infeliz mulher, ingênua e crédula demais, acaba mortalmente
lograda pelo engenho ardiloso” (CAPELÃO, 2000:
225).
Não foi apenas o caráter
tirânico e a miséria em que se encontrava o que dissimulou Brás da Mata. Também
sua “valentia” foi uma espécie de máscara que caiu quando rumou para o Norte da
África onde queria fazer-se cavaleiro. Tudo isso, quando vem à tona, significa
para Inês o fim dos ideais preconcebidos que havia construído sobre o caráter
dos fidalgos, cavaleiros e escudeiros:
Inês –
(...) cuidei que fossem cavaleiros
fidalgos e
escudeiros,
não cheios
de desvarios,
e em suas
casas macios
e na
guerra lastimeiros (VICENTE, 1975: 120).
André Capelão afirmou em
seu Tratado que o “o amor é afetado quando a mulher considera que o
amante é covarde em combate” (CAPELÃO, 2000: 217). No que diz respeito à Inês,
não podemos falar efetivamente em amor, ao menos na concepção de Capelão, mas é certo
que, do encantamento e da fantasia em relação à figura cortês do cavaleiro,
parece que nada sobra no imaginário da jovem. Não poderia ser diferente. Em
casa o que ela tinha era um marido “ditador”, mas fora do lar o que ele de fato
mostrou ser foi um covarde e incapaz de realizar obras de valor. Isso se
confirma com a chegada da carta que trazia a notícia da morte do “escudeiro”:
Moço –
Esta carta vem d’Além,
creio que
é de meu senhor.
Inês -
Mostrai cá, meu guarda-mor,
veremos o
que i vem.
Lê Inês
Pereira a carta, a qual diz:
“E não vos
maravilheis
de coisa
que o mundo faça
que sempre
nos embaraça
com
coisas. Sabei que,
indo seu
marido fugindo
da batalha
para a vila,
a meia
légua de Arzila,
o matou um
mouro pastor” (VICENTE, 1975: 121).
Com o personagem
de Brás da Mata, Mestre Gil, “se impiedosamente desmascara o escudeiro parasita
e miserável, mas presunçoso, fanfarrão e covarde, distingue-o claramente do
verdadeiro fidalgo, cujo modelo Inês salienta” (CRUZ, 1990: 134). Além de
servir para satirizar a figura do falso
cavaleiro, o primeiro esposo de Inês funciona como uma ponte que a leva a uma
mudança de postura frente aos valores do mundo em que está inserida. Como vimos
anteriormente, movida pela ilusão de se casar com homem “avisado”, Inês, no início
do auto, despreza o primeiro pretendente: o rude Pêro Marques, filho de lavradores ricos, mas que peca pela
rusticidade. Sua linguagem revela a timidez e a ignorância, além de marcar a
sua inocência, aspecto fundamental para o desfecho da peça. No processo de
caracterização por meio da linguagem, os seus traços mais flagrantes são evidenciados,
gerando o repúdio da jovem. Seu discurso denuncia a sua ingenuidade, ora exagerando
na formalidade, ora indicando a sua forma provinciana de se expressar, como na carta que envia à pretendente:
“Senhora
amiga Inês Pereira:
Pêro
Marques, vosso amigo,
que ora
estou na nossa aldeia,
mesmo na
vossa merceia
me
encomendo. E mais digo,
digo que
benza-vos Deus,
que vos
fez de tão bom jeito;
bom prazer
e bom proveito
veja vossa
mãe de vós.
E de mi
também assi,
ainda que
eu vos vi,
estoutro
dia de folgar,
e não
quisestes bailar,
nem cantar
presente mi...” (VICENTE, 1975: 91-92).
Sua boa
condição financeira não atrai a jovem, que o despreza e o critica em função de sua rusticidade. Ela critica-lhe inclusive o caráter de
homem correto, pois o camponês respeitava os valores de uma ordem que a
personagem não compreendia. Vendo-se só com a moça, Pêro Marques achou melhor
ir-se para que a reputação dela não fosse maculada. Inês, sem que ele perceba,
pensa alto:
Inês –
(Quão desviado este está!
todos
andam por caçar
suas damas
sem casar,
e este ...
tomade-o lá! (VICENTE, 1975: 98).
A ingenuidade do camponês,
que primeiramente é motivo de escárnio por parte da moça, curiosamente, no
final é vista como algo extremamente conveniente: somente depois de Inês passar
pela infeliz experiência do primeiro matrimônio é que valoriza esta característica
de Pêro Marques. Afinal, é a
ingenuidade deste que permite a ela “dar rédea solta à sua viva sensualidade” (KEATES, 1988: 96). Se o papel de Brás da
Mata contribui para evidenciar a rebeldia de Inês Pereira, o do rústico
contribuiu para explicitar as artimanhas e o processo de transformação que esta
sofre.
É com Pêro Marques, que em
romaria transporta a esposa às costas ao local onde ela iria se encontrar com o
amante ermitão, que a figura do marido ingênuo e enganado atinge a expressão
máxima. Mas o tipo do corno parvo não foi iniciado com ele, e sim com o marido
de Constança. Este é um personagem que, embora ausente fisicamente de grande
parte do texto, tem presença muito marcante ao longo do mesmo, o qual se inicia
com a sua partida e finaliza com o seu regresso. É ainda um personagem cuja
importância e simbologia residem precisamente na sua ausência, caso contrário,
não haveria conflito dramático e o tema da farsa não poderia ser desenvolvido.
Ainda que tenha decidido
embarcar em uma viagem à Índia – à semelhança de grande parte dos homens de sua
época, ávidos de fortuna e fama –, deixando a esposa em casa apenas com uma
criada, revela-se um homem preocupado com o bem-estar e com a felicidade de Constança,
posto que a deixa provida dos bens necessários para a subsistência durante sua ausência:
“Leixou-lhe para três anos / trigo, azeite, mel e panos” (VICENTE, 1975:
30). O Marido representa todos aqueles que são, por um lado, aventureiros e
ambiciosos, participando de viagens longas e arriscadas com o intuito de
conquistar fortunas ou vantagens futuras de outra espécie e, por outro,
crédulos e ingênuos, depositando confiança nas esposas que ficavam sós,
acreditando nos sentimentos que elas asseguraram ter experimentado durante o
período de afastamento. Podemos dizer que esse personagem, a quem Gil Vicente
delega poucas falas no auto, condensa em si os riscos e os aspectos negativos
dos Descobrimentos. Como ele mesmo afirma à esposa, “lá há fadigas, / tantas
mortes, tantas brigas, / e p’erigos descompassados” (VICENTE, 1975: 50);
ainda assim, regressou com vida. Porém, sem a riqueza pretendida e merecida:
Ama –
Porém vindes muito rico?
Marido –
Se não fora o capitão,
eu
trouxera o meu quinhão
um milhão,
vos certifico (VICENTE, 1975: 51).
Como bem destaca Paul Teyssier, no Auto da Índia “os heróis do
Oriente são reduzidos às dimensões da humanidade mediana” (TEYSSIER, 1982: 64),
isso porque, como vimos, o marinheiro safa-se ao final, mas seu retorno à terra
é inglório: as vantagens dos negócios são praticamente nulas, visto que o
capitão se apoderou de grande parte do que a tripulação conquistara, e foi
traído pela mulher, que se entregou aos homens que a procuravam (Castelhano e
Lemos). Neste auto, Gil Vicente, além de mostrar o outro lado das viagens
(aquele que não é sinônimo de vitórias e glórias), de certo modo rompe com a
figura do cavaleiro: já agora quem parte é o marinheiro, saído do povo, da
arraia-miúda, que chega até o rio de Meca para pelejar e roubar.
Já na Farsa de Inês Pereira, além de assistirmos a
uma ruptura com a figura do escudeiro valente (como salientamos anteriormente),
observamos que seus principais personagens masculinos refletem muito bem o
momento histórico de Portugal, à medida que um representa a decadência de uma
classe ligada diretamente à nobreza – Brás da Mata, o escudeiro à míngua – e o
outro, a ascensão de uma classe que poderíamos denominar de pré- burguesa – Pêro Marques, o rico lavrador.
Os
personagens masculinos que aqui retratamos, mais que evidenciar os caracteres
das protagonistas, dão margem à sátira que Gil Vicente imprime nas duas obras,
ora focalizando o discurso eloqüente daqueles que, tentando ocupar o
espaço-corpo disponível (leia-se mulher/casa)
em busca de prazer, comida e moradia, pretendem tirar proveito da empresa conquistadora
– de que são exemplos principalmente Castelhano e Lemos –, ora focalizando a figura
do corno parvo “merecedor de sua cornamenta”.
Esses personagens também
desconstroem o preconceito relativo à inferioridade da mulher, uma vez que
estas é que são, ou aprendem a ser espertas, ludibriam, quando os homens pensam
que o fazem. Embora esta perspectiva esteja diretamente ligada à tradição do olhar
negativo para com as mulheres, a da criação do estereótipo da mulher como Eva tentadora,
tão abundantemente divulgado pela literatura clerical da Idade Média (mas não
só) e até mesmo pelo Tratado de André Capelão.
Na primeira parte do Tratado do amor cortês, à
mulher são dispensadas inúmeras lisonjas, entretando, em sua segunda parte, a
classe feminina é apresentada como possuidora de todos os vícios e defeitos:
são mentirosas, hipócritas, inconstantes, invejosas, avaras.
André Capelão faz diversos
julgamentos que difamam as mulheres e não excetuam nem
mesmo as pertencentes às
camadas mais altas da sociedade, justamente as que inicialmente figuram como
modelo de conduta no livro.
---
Fonte:
Andreza Barboza Nora: “Quanto en caso de amores”: a relação (extra)conjugal em três autos de Gil Vicente”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Portuguesa. Orientadora: Professora Doutora Maria do Amparo Tavares Maleval). Rio de Janeiro, 2008.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível digitalmente em: www.dominiopublico.gov.br
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível digitalmente em: www.dominiopublico.gov.br
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